«Neste fim de século, os monstros proliferam: vemo-los por todos os lados, no cinema, na banda desenhada, em gadgets e brinquedos, livros e exposições de pintura, no teatro e na dança. Invadem o planeta, tornando–se familiares.
Cessarão, muito em breve, de nos parecer monstruosos e ser-nos-ão
até simpáticos, como já acontece a tantos extraterrestres das séries de
televisão. Havemos de falar então da “monstruosidade banal”, como se fala agora
da “violência banal” — o que constitui, precisamente, uma aberração.
(...)
Esta atitude é sinal da grande dúvida que assaltou o homem
contemporâneo quanto à sua própria humanidade.»
– in 'Monstros', de José Gil (2006), editado pela Relógio d'Água.
Usamos constantemente algum tipo de máscara[1],
ou temos de lutar constantemente para ir retirando as máscaras que de alguma forma
se colam ao nosso rosto, escondendo quem realmente somos e alimentando a ideia
de que somos outra coisa.
Nos últimos tempos, em pouco tempo, vi nas salas de cinema um
Portugal que, envolto em mitos e magias, manifesta as suas tradições escondido
por detrás de máscaras, máscaras de demónios, ao som de ladainhas.
Cada uma destas abordagens coloca-se num ponto de vista diferente,
fazendo retratos de família e deste(s) lugar(es) com filtros que iluminam as
trevas e conferem densidades de grão próprias, de acordo com cada visão.
As consequências dessas tradições, desses costumes, desta
portugalidade, também diferem de acordo com a lente que as capta. Mas, ainda
assim, com aspectos em comum e comuns até com quem nunca tenha vivido nessas
aldeias do Portugal rural, onde esses costumes (e demónios), aparentemente, se
mantém mais vivos.
Tem-se perdido a tradição, o contacto, os ensinamentos, as mezinhas[2],
as mesas de família e as próprias famílias.
À medida que os velhos se vão parece que levam consigo as tradições. Não porque as queiram para si, mas porque os mais novos não as tomam
para eles, como suas, do plural família, do plural comunidade, do plural
humanidade.
'No País de Alice'[3],
(2021) onde Rui Simões tenta mostrar as maravilhas de Portugal, os caretos são apresentados
de forma bem-disposta, irónica e interessante, contextualizados e adaptados aos
tempos modernos.
«Este ritual festivo que é também caracterizado pelo convívio
entre vizinhos, amigos e familiares, foi num contexto passado, de que dá conta
a memória dos residentes mais velhos na aldeia, protagonizado essencialmente
pelos rapazes e homens solteiros, cujo alvo eram as jovens raparigas e mulheres
solteiras, tendo, portanto, uma função propiciatória, de passagem e de
comportamento erótico-sexual.
Hoje, a festa é participada por “caretos” de idade e estado civil “variado” e já não apenas pelos rapazes solteiros, havendo até participação dos mais pequenos, a que chamam “facanitos” e de raparigas envergando fatos de “careto” dos pais, tios ou irmãos. A participação das raparigas é relativamente tolerada e permitida(...)»[4]
Os 'Restos do Vento’[5],
(2022) de Tiago Guedes, trouxeram de um passado fictício (?) restos do “vento
do deserto” e levaram toda a magia e graça que estas figuras, mascaradas com
rostos de demónios, ainda poderiam ter em mim. O mesmo tipo de demónio continua
aqui a ser o protagonista de uma tradição pagã, mas com uma máscara diferente e
numa vila não identificada do interior de Portugal. Aqui, em vez de madeira e
lata, o demónio usa uma máscara de ritidoma (casca de árvore), ou um saco de
sarapilheira enfiado na cabeça. Tive dificuldade em permanecer sentado até ao passar
toda a ficha técnica, a lista de testemunhas de que tudo o que acabara de ver
era apenas ficção. Tive de levantar-me da cadeira, sair da sala, encarar os
outros rostos humanos e tentar entender que máscaras usavam. Humanos, demónios,
ingénuos, altruístas, cruéis, frios?
O que faria se um filho meu desaparecesse? E se morresse? E se
tivesse morto alguém? Que máscara colocaria, para me proteger, para me esconder.
Para o proteger e esconder? Para me ajudar a desempenhar que papel, de que
personagem? E se tivesse o dom de uma alma viva? Se conseguisse ver e cheirar
coisas de outras dimensões? Fingiria não o ter? Renegaria os dons e
ensinamentos de gerações anteriores?
‘Alma Viva’[6],
(2022) de Cristèle Alves Meira, disfere o derradeiro golpe nesta minha auto-denominada
trilogia de demónios mascarados. Um sucedâneo de careto, de demónio, ou de ser
vivo, que tem como missão incomodar, passa a correr por uma menina que caminha sozinha
pela rua da aldeia tentando assustá-la. A menina que transporta consigo o
espírito da avó e o dom de falar com os mortos, sugere ou, avisa-o: “– Pára quieto”.
Estes demónios terrestres são, de facto, ‘apenas uma brincadeira’ de um ritual tradicional
da aldeia, que a apedreja e excomunga, que pretere o ser dotado, que prefere um
demónio mascarado em detrimento de uma criança que perpetua os conhecimentos da
matriarca de uma família que tenta fazer o funeral e o luto de um ente
estigmatizado pelas idiossincrasias da própria tradição.
Há uns tempos, há pouco tempo, uma descendente da mesma nossa avó veio,
à casa em que outrora essa avó vivia e onde agora estou, dizer-me que os
males da sua vida jaziam na máquina de costura e no móvel onde esta estava
sobre, que uma espécie de médium lhe tinha dito, que a tal máquina e móvel deveriam
ser deitadas ao lixo para que a sua vida pudesse prosseguir sem percalços. Eu
anuí. Sem querer males para ninguém, deixei ir os objectos, a memorabilia,
símbolos da tradição e ensinamentos da nossa avó, serem levados como se de lixo
se tratasse.
Caretos de Podence | Mascarado de ‘Restos do Vento’ | A avó ao espelho, em ‘Alma Viva’.
[1] Na
Grécia Antiga apenas os homens podiam actuar e usar as máscaras de teatro.
Afinal, elas representavam tanto a tragédia quanto a comédia. Além de
acessório, as máscaras são usadas também como representação folclórica e
cultural. No entanto, as máscaras de teatro carregam outros simbolismos. Um
exemplo histórico é a utilização das máscaras negras no teatro da Grécia
Antiga. Com efeito, elas representavam significados tanto na tragédia quanto na
comédia. Após isso, passaram a ser usadas como adereços teatrais. https://segredosdomundo.r7.com/mascaras-de-teatro/
[2] Remédio
caseiro. https://dicionario.priberam.org/mezinha
[3] 'No País de
Alice' | Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=rIvg8qO9cCI
[4] Caretos de
Podence https://www.caretosdepodence.pt/ritual
[5] 'Restos
do Vento' | Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=QpC-q7qWXPA
[6] 'Alma
Viva' | Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=m9774j9p_eY
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