quinta-feira, 3 de novembro de 2022

A (i)materialidade e a (des)alienação

“Na natureza, os animais comunicam com códigos naturais, os humanos comunicam com códigos arbitrários

(…)

Mas nós também somos animais e fazemos parte da natureza.

(…)

O bombardeamento de linguagem arbitrária de signos retiram-nos a capacidade de ler os signos naturais (…) É arbitrária porque depende das características do(s) grupo(s) em questão (…) Os símbolos arbitrários são criados pelos linguísticos (…) Um sistema de símbolos é um código, se for cultural é arbitrário.

(…)

A evolução linguística, a dimensão material e ideal do signo, veio influenciar o pensamento humano (…) E assim somos seres culturais. Só conseguimos estabelecer uma relação e essa relação depende do observador e a sua linearidade (…) Essa ligação entre palavras, linearidade, reflecte a nossa condição enquanto humanos.

(…)

Tudo aquilo que é arbitrário é cultural. Tudo o que é necessário, essencial, é natural (…) Sobre o corpo natural construímos um corpo cultural.

(…)

A este afastamento da natureza chama-se alienação. Somos alienados pela cultura”.

– Excertos de conversas em sala de aula.

 

Enquanto crescia num pátio de um bairro em Lisboa[1], percorri de bicicleta vezes sem conta o circuito quadrangular que dividia o bloco de casas ao centro da fileira de casas circundante, fiz as três covinhas no chão para jogar ao berlinde, desenhei e saltei no chão a macaca e a sirumba, cortei ervas daninhas e flores coloridas para fazer sopas e decorar bolinhos de terra e esmaguei-as para extrair líquidos de experiências científicas coloridas. Nestas brincadeiras, quando caía, deixava o meu sangue na terra e levava-a (à Terra) para casa comigo nos joelhos.

Um dos vizinhos tinha uma oficina com grandes máquinas de ferro de onde saíam pequenos cartões com letras. Eu não podia ir para o meio das máquinas, era perigoso. Então ficava ali à entrada, perto da guilhotina, a sentir o cheiro da tinta e a brincar com as aparas de papel que agrafava para fazer blocos, ou carimbava com os tipos de chumbo para personalizar os meus cartões de visita.

Os percursos da vida e as nove mudanças de casa seguintes afastaram-me da morada dos cartões, e, de mim. Foi preciso regressar a essa casa do pátio e a outra oficina para me reencontrar. À excepção de quando abria um livro e o seu cheiro me transportava para esse lugar no tempo e no espaço, não voltei a sentir a fragância da tinta com notas metálicas e essência de petróleo que envolve uma oficina tipográfica.


 


Logótipo desenhado por Maria João Worm, gravura posteriormente serigrafada (2010).


O meu reencontro com a (minha) natureza coincide com a ingressão no curso de auto-edição[2] da Oficina do Cego[3], uma associação de artes gráficas tradicionais e artesanais. Da primeira vez que lá entrei, e em todas as seguintes, inalei a materialidade da tal fragância que me eleva a um estado de leveza, serenidade, que me faz regressar à sensação de que estou no momento certo no local certo. Como se fosse accionado um interruptor de ‘reconexão’ com o meu caminho, que descola o ponteiro de uma bússola interior que trago no peito, aponta de novo o Norte e me faz despertar para o que sou.

Em vez de tocar as tecnologias apenas com as digitais das pontas dos dedos, num teclado ou rato de computador, voltei a tocá-las com as mãos inteiras, a abraçá-las com os braços e o corpo todo, os pulmões, os joelhos, o coração.

Já para o final desse curso, num dia feriado de descanso dos trabalhadores, originalmente dia dos tipógrafos, fiz questão de aproveitar para adiantar trabalho e finalizar a impressão da minha publicação. Enquanto pedalava na prensa e dava umas garfadas no almoço esfolei o joelho, mas foi um dos momentos de maior sensação de realização pessoal. Parecia que estava na bicicleta a dar voltas ao pátio.

 


[1] Programa da RTP2 dedicado aos pátios e vilas de Lisboa, construções urbanas precárias que tiveram origem a partir da segunda metade do século XIX, e que se destinavam a alojar os operários atraídos pelo trabalho fabril devido à revolução industrial. Pátios e Vilas em Lisboa – Parte I: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/patios-e-vilas-em-lisboa-parte-i/

[2] O Curso de Auto-Edição da Oficina do Cego oferece formação transversal que alia a aquisição e aplicação prática de competências em artes gráficas – segundo o lema "aprender, fazendo" – ao conhecimento das práticas editoriais, contextualizando a sua história e as múltiplas tendências actuais. Orientado para profissionais e estudantes de artes, designers, professores e outros interessados pela edição de autor e pelas artes gráficas em geral. Programa do 9º C.A.E.O.C. (2021-2022): https://www.oficinadocego.pt/wp-content/uploads/2021/09/programa-AE-21_22-2.pdf

[3] A Oficina do Cego é uma associação sem fins lucrativos onde se juntam pessoas que partilham o interesse na utilização de técnicas tradicionais de impressão: como a tipografia de caracteres móveis, a gravura, a fotografia ou a serigrafia, de cianotipia, pop-up e encadernação. https://www.oficinadocego.pt/




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