“Na natureza, os animais comunicam com códigos naturais, os humanos comunicam com códigos arbitrários
(…)
Mas nós também somos animais e fazemos parte da natureza.
(…)
O bombardeamento de linguagem arbitrária de signos retiram-nos a
capacidade de ler os signos naturais (…) É arbitrária porque depende das
características do(s) grupo(s) em questão (…) Os símbolos arbitrários são
criados pelos linguísticos (…) Um sistema de símbolos é um código, se for
cultural é arbitrário.
(…)
A evolução linguística, a dimensão material e ideal do signo, veio
influenciar o pensamento humano (…) E assim somos seres culturais. Só
conseguimos estabelecer uma relação e essa relação depende do observador e a
sua linearidade (…) Essa ligação entre palavras, linearidade, reflecte a nossa
condição enquanto humanos.
(…)
Tudo aquilo que é arbitrário é cultural. Tudo o que é necessário,
essencial, é natural (…) Sobre o corpo natural construímos um corpo cultural.
(…)
A este afastamento da natureza chama-se alienação. Somos
alienados pela cultura”.
– Excertos de conversas em sala
de aula.
Enquanto crescia num pátio de um bairro em Lisboa[1],
percorri de bicicleta vezes sem conta o circuito quadrangular que dividia o
bloco de casas ao centro da fileira de casas circundante, fiz as três covinhas
no chão para jogar ao berlinde, desenhei e saltei no chão a macaca e a sirumba,
cortei ervas daninhas e flores coloridas para fazer sopas e decorar bolinhos de
terra e esmaguei-as para extrair líquidos de experiências científicas
coloridas. Nestas brincadeiras, quando caía, deixava o meu sangue na terra e
levava-a (à Terra) para casa comigo nos joelhos.
Um dos vizinhos tinha uma oficina com grandes máquinas de ferro de
onde saíam pequenos cartões com letras. Eu não podia ir para o meio das
máquinas, era perigoso. Então ficava ali à entrada, perto da guilhotina, a
sentir o cheiro da tinta e a brincar com as aparas de papel que agrafava para
fazer blocos, ou carimbava com os tipos de chumbo para personalizar os meus
cartões de visita.
Os percursos da vida e as nove mudanças de casa seguintes
afastaram-me da morada dos cartões, e, de mim. Foi preciso regressar a essa
casa do pátio e a outra oficina para me reencontrar. À excepção de quando abria
um livro e o seu cheiro me transportava para esse lugar no tempo e no espaço,
não voltei a sentir a fragância da tinta com notas metálicas e essência de
petróleo que envolve uma oficina tipográfica.
Logótipo desenhado por Maria João Worm, gravura posteriormente serigrafada (2010).
O meu reencontro com a (minha) natureza coincide com a ingressão no curso de auto-edição[2] da Oficina do Cego[3], uma associação de artes gráficas tradicionais e artesanais. Da primeira vez que lá entrei, e em todas as seguintes, inalei a materialidade da tal fragância que me eleva a um estado de leveza, serenidade, que me faz regressar à sensação de que estou no momento certo no local certo. Como se fosse accionado um interruptor de ‘reconexão’ com o meu caminho, que descola o ponteiro de uma bússola interior que trago no peito, aponta de novo o Norte e me faz despertar para o que sou.
Em vez de tocar as tecnologias apenas com as digitais das pontas
dos dedos, num teclado ou rato de computador, voltei a tocá-las com as mãos
inteiras, a abraçá-las com os braços e o corpo todo, os pulmões, os joelhos, o
coração.
Já para o final desse curso, num dia feriado de descanso dos
trabalhadores, originalmente dia dos tipógrafos, fiz questão de aproveitar para
adiantar trabalho e finalizar a impressão da minha publicação. Enquanto pedalava
na prensa e dava umas garfadas no almoço esfolei o joelho, mas foi um dos
momentos de maior sensação de realização pessoal. Parecia que estava na
bicicleta a dar voltas ao pátio.
[1] Programa
da RTP2 dedicado aos pátios e vilas de Lisboa, construções urbanas precárias
que tiveram origem a partir da segunda metade do século XIX, e que se
destinavam a alojar os operários atraídos pelo trabalho fabril devido à
revolução industrial. Pátios e Vilas em Lisboa – Parte I: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/patios-e-vilas-em-lisboa-parte-i/
[2] O Curso
de Auto-Edição da Oficina do Cego oferece formação transversal que alia a
aquisição e aplicação prática de competências em artes gráficas – segundo o
lema "aprender, fazendo" – ao conhecimento das práticas editoriais,
contextualizando a sua história e as múltiplas tendências actuais. Orientado
para profissionais e estudantes de artes, designers, professores e outros
interessados pela edição de autor e pelas artes gráficas em geral. Programa do
9º C.A.E.O.C. (2021-2022): https://www.oficinadocego.pt/wp-content/uploads/2021/09/programa-AE-21_22-2.pdf
[3] A Oficina do Cego é uma associação sem fins lucrativos onde se juntam pessoas que partilham o interesse na utilização de técnicas tradicionais de impressão: como a tipografia de caracteres móveis, a gravura, a fotografia ou a serigrafia, de cianotipia, pop-up e encadernação. https://www.oficinadocego.pt/
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