segunda-feira, 28 de abril de 2025

Travelling - Chantal Akerman no CCB



Num primeiro contacto com a exposição as salas introdutórias refletem de modo claro qual o cariz dos assuntos dali para a frente abordados nas restantes divisões através da exibição de duas curtas metragens. A mostra é inundada por uma dimensão labiríntica presente desde a separação dos diversos compartimentos, passando pela disposição dos conjuntos de obras de arte num só espaço e mais implícita ainda pelo exagero de experiência sensorial.

Numa das projeções acima referidas, realizada a partir de um projetor, uma jovem recém dona de casa interpreta um papel desinibido que se pode equiparar ao de uma estudante deslocada a habitar um quarto alugado pela primeira vez. A trama desenvolve-se em torno da elaboração das suas tarefas domésticas que realiza apenas na cozinha: cozinhar, comer e limpar. A ação é exclusivamente acompanhada pelo cantarolar aleatório da atriz, ao que se juntou em voz off o surgimento de algumas onomatopeias adjacentes ao manuseamento dos adereços de cena. Evidenciando uma certa imaturidade no jogo entre a infantilidade e a responsabilidade que se vivem durante o período de transição para a vida adulta e autónoma, compreende-se que num duelo ambíguo entre ambas, estas atitudes se complementam unanimamente. A obra permite uma reflexão sobre o facto de nos momentos comuns das nossas rotinas nos sentirmos ainda mais sensíveis aos debates interiores que sempre nos acompanham. No fundo quem peca é perturbado pelas memórias do seu passado, enquanto que a ansiedade sobre o dia seguinte atinge quem não peca.


A obra que se segue, num lugar adiante, uma projeção de aspecto semelhante apresentava uma elegante jovem adulta que, trajada apenas por um par de cuecas largas, se prosta diante de um espelho de porta no seu roupeiro, justapondo-se pela retaguarda relativamente ao único plano utilizado durante o vídeo. Esta, ao analisar preponderantemente o reflexo do seu corpo, põe-se a descrevê-lo dos pés à cabeça utilizando uma linguagem sincera e transparente. Estando de pé e adoptando uma postura natural e descontraída, apalpa superficialmente cada parte que descreve, incluíndo o seu cabelo selvagem preso por uma mola num penteado solto.



Um corpo prostrado sobre uma cama forrada a lençóis cor-de-rosa, ao fundo de um estúdio T0 habitado por uma jovem mulher, devora uma peça de fruta à medida que lança o seu olhar predominantemente sobre a câmera e perturba de modo atrevido a atenção do espectador. Um carácter fulminante e intruzivo da intérprete que pouco demonstra durante os takes, mas que é compensado com uma vista panorâmica de toda a divisão, inglobando cada elemento de mobiliàrio, dos mais supérfluos aos mais utilitários. Em constante rotação de 360 graus sobre o mesmo eixo, o plano captado incluí a globalidade do espaço onde é realizado o filme que mostra de entre outros uma secretária de trabalho, uma pia daquela de época, uma cómoda alta, um fogão com forno embutido, uma mesa de refeições, um baú, uma estante e um cabide, todos eles dispostos de forma abrupta.




Patentes na sala mais centralizada face aos restantes trabalhos destacam-se 24 televisores cúbicos, erguidos dobre altos plintos, que projetam a cores e acompanhados das respectivas sonoridades variados filmes em loop dispostos aleatóriamente, dos quais alguns de repetem. Neles podem observar-se habitantes da Europa de leste durante os seus dias em imagens captadas de forma anónima e expontânea durante o horário noturno e uma época fria. Assim, das imagens carregadas de um ambiente sombrio os focos de atenção caem sobretudo nos olhares desprevenidos e outsiders destes então figurantes, vestidos de roupas quentes e acessórios de lã, que deambulam pelas suas cidades. Ora sentados numa estação de comboios aguardando o primeiro da manhã, ora em compridas filas de espera de acesso a centros de apoio, a pouca luz visível vem de candeeiros que acusam o elevado grau de nevoeiro e geada. Apesar da interessante componente estética do amontoado de informação visual, as telas duplicadas, certos cenários destoantes e o confuso efeito sonoro resultante da sobreposição de inúmeras sonoridades, fazem deste lugar contemplativo algo fatídico e desinteressante.


Uma sala acolhedora com o chão totalmente forrado a linóleo agrega a suspensão de cinco placas de acrílico, translúcidas e suspensas por cabos de aço, nas quais são projetados, num formato de dupla face, individualmente e desde o tecto, trechos de um filme capturado em veloz andamento sob uma estrada desértica montanhosa. Repleta de pequenos detalhes afincadamente trabalhados, esta mostra coletiva simboliza uma viagem exótica mas nem por isso paradisíaca, atendendo à presença de elementos que demonstram aflição, crime e miséria. É patente um contraste invocativo da consciência sobre a constante necessidade de alerta e socorro em zonas conflituosas, ainda que se mantenham conservadas. As cores são bastante neutras pois veêm-se exclusivamente elementos orgânicos, desde pedaços de céu azul, núvens escuras acentuadas terras argilosas com pouca vegetação e muralhas em pedra. Mais imponente que o próprio conteúdo visual é a trilha sonora, composta também por cinco colunas correspondentes às telas, emitem simultâneas captações que impelem uma passagem para a atmosfera da obra. Enumerando os barulhos de que são compostas, podem ouvir-se dos mais bonitos sons às mais assustadoras manifestações de ondas sonoras, são eles: o mar, o vento, trovoada, cavalos, pássaros, águias, rãs, cães, sirenes, sinos, segredos, tiroteios, bombas, gritos aflitos, cantos espirituais e o som dos pneus do próprio carro. O caminhar pela sala é fortemente convidativo sendo que práticamente não existem ângulos mortos da peça.




Opressão, conquista, desleixo, autenticidade e mimetismo humano seriam as palavras-chave que resumiriam respectivamente as obras descritas.