Rei Lear no Chapitô
Encenação José C. Garcia
Interpretação: Carlos Pereira, Susana Nunes e Tiago Veiga
De 1 a 23 Março 2025
No Chapitô, Lisboa.
A Companhia do Chapitô apresentou mais uma vez a sua inconfundível assinatura teatral em Rei Lear, uma reinvenção ousada e criativa da tragédia de William Shakespeare. Esteve em cena de 1 a 23 de março de 2025, no acolhedor espaço da tenda do Chapitô, esta versão desconstrói e reinterpreta um dos textos mais densos da dramaturgia universal com humor, engenho e uma impressionante economia de meios.
A encenação, assinada por José C. Garcia, parte de uma abordagem que privilegia o corpo do ator e a simplicidade dos elementos cénicos, num registo que podemos associar ao “Teatro Pobre”, mas com a marca muito própria do Chapitô: uma comédia física, quase clownesca, que ressignifica os grandes dramas humanos através da lente do absurdo e do riso.
O texto original, escrito por volta de 1605, passado numa Grã-Bretanha lendária, é reduzido com mestria a uma hora e meia de espetáculo. Ainda assim, a narrativa permanece clara, dinâmica e surpreendentemente fiel na sua essência. A história do rei que enlouquece após entregar o reino às filhas erradas mantém o seu peso simbólico, mas ganha novas camadas de interpretação graças ao jogo cénico constante entre o trágico e o cómico.
A simplicidade cénica é um dos pontos mais marcantes. O papel – literalmente folhas A4 – transforma-se em tudo: cenário, adereço, elemento simbólico. Um pedaço de papel pode representar a tempestade, uma mala ou o mapa do reino. Essa versatilidade criativa convida o público a imaginar, a preencher os vazios e a participar ativamente na construção do espetáculo.
As cenas de sangue são feitas de forma muito criativa. Em vez de usarem efeitos realistas, os atores usam papel vermelho e também lã vermelha que sai de uma pistola de papel ou de um olho. Isso torna as cenas fortes, mas também cómicas, mantendo o estilo simples e imaginativo do espetáculo.
Os atores assumem uma multiplicidade de papéis sem recurso a mudanças de figurinos nem de caracterização. Apenas com modulações vocais, alterações de postura corporal e expressividade, dão corpo a um vasto número de personagens. Este exercício de transformação constante não só mantém o ritmo, como sublinha a versatilidade dos intérpretes e a força do trabalho coletivo.
Os figurinos são reduzidos ao essencial, permitindo que as roupas sejam transformadas em elementos dramáticos, como na cena hilariante em que um ator se “disfarça” de carneiro ao vestir a própria roupa de maneira distinta. Este humor físico é um dos trunfos da companhia, que sabe equilibrar o riso fácil com momentos de reflexão e beleza poética.
A iluminação é discreta mas precisa, criando ambientes distintos com poucos recursos. A música, maioritariamente clássica e usada apenas em pontos-chave, pontua os momentos trágicos sem dramatismo excessivo.
Apesar da ausência de uma folha de sala, o espetáculo é acessível e eficaz na comunicação. A clareza narrativa e o trabalho dos atores tornam a experiência fluída mesmo para quem não conhece a obra original. A receção do público foi entusiástica: risos constantes durante a peça e uma ovação final entusiasmante. Mesmo num dia de tempestade em Lisboa, a sala apresentava cerca de 80% de lotação, prova do prestígio da companhia e da fidelidade do seu público.