Diego Velázquez, Las Meninas (1656), Museu do Prado, Madrid
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O reflexo é um elemento muito recorrente na pintura, algo que sempre fascinou o ser humano durante milénios. O espelho é um objecto que transcende a sua própria invenção. Antes de haver espelhos, as pessoas observavam o seu reflexo na água ou em superfícies polidas. O espelho como nós o conhecemos, feito de vidro, foi inventado no final da Idade Média e era um objecto de luxo, pois a qualidade do seu reflexo era superior a todos os espelhos anteriores. Durante o Renascimento este tornou-se um objecto recorrente em retratos, especialmente da nobreza e mais tarde da burguesia. Para além de ser um símbolo de status, o espelho na pintura era também uma forma de mostrar o chamado “ângulo morto” numa determinada cena. Este ângulo é o que se encontra atrás de nós, se olharmos de frente para uma pintura como se esta fosse uma janela. Nele podemos normalmente ver o pintor e o resto do quarto que não pôde ser representado na pintura e era quase como uma segunda assinatura por parte do pintor.
Um bom exemplo disto é o célebre retrato do casal Arnolfini, de Jan van Eyck, em que o pintor aparece representado no espelho convexo no centro do quadro. Este estilo foi imitado por vários pintores durante séculos, incluindo Velazquez na sua obra Las Meninas em 1656. No entanto o curioso nesta pintura é que o espelho ao centro não representa o autor mas sim quem está a ser pintado, numa subversão do que vemos na obra de van Eyck.
Jan van Eyck, Casal Arnolfini (1434), National Gallery, Londres
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Apesar à primeira vista parecer apenas mais um retrato da corte espanhola no reinado de Filipe IV, Las Meninas tem deixado observadores perplexos pela sua composição pouco convencional e algo misteriosa que levanta questões sobre a realidade e ilusão na cena representada.
Umas das mais interessantes é a do filosofo Michael Foucault, no seu livro The Order of Things (1966). Segundo Foucault este quadro é a representação de uma representação clássica. Uma pintura de uma pintura dentro de uma pintura.
The spectacle he [Velasquez] is observing is thus doubly invisible: first, because it is not represented within the space of the painting, and, second, because it is situated precisely in that blind point, in that essential hiding-place into which our gaze disappears from ourselves at the moment of our actual looking. And yet, how could we fail to see that invisibility, there in front of our eyes, since it has its own perceptible equivalent, its sealed-in figure, in the painting itself?”
Foucault, 1966 in The Order of Things
Qualquer observador de Las Meninas concorda que se está perante um retrato, mas a verdadeira questão é de quem, ou do quê. Numa primeira observação pode parecer que o objecto central é a princesa e o seu séquito, apresentados numa cor mais clara e com maior detalhe, mas existem muitas mais personagens que normalmente não estariam num retrato, como por exemplo o pintor.
Velasquez representou-se em Las Meninas e ocupa um plano re reverência. O lado esquerdo inteiro da pintura é uma tela que Velasquez está a meio de pintar, mas não a vemos. O importante nesta cena não é a pintura em si, mas o acto de pintar e o autor. Por este motivo Las Meninas pode ser apenas um elaborado auto-retrato, que espelha a vida e o trabalho de Velasquez na corte, perto da princesa e rodeado de espectadores que o observam enquanto trabalha.
Numa observação mais profunda Las Meninas é caracterizado não por aquilo que representa, mas sim pelo que está ausente. A obra apresenta um complexo diálogo de olhares, em que todas as personagens olham para um único ponto: nós. As personagens parecem fixar o olhar no observador, que se transforma no objecto observado. Ao olhar o quadro, o público passa a fazer parte deste diálogo e, de certa forma, passa a fazer parte do quadro. No entanto, segundo Foucault o espelho é a chave para entender esta obra. As personagens não olham para o publico, mas sim para algo que, segundo a perspectiva da obra, se encontra atrás de nós. Algo que à primeira vista parece desconhecido por se encontrara no “ângulo morto” mas que o espelho no fundo da sala nos revela: o casal real, D. Filipe IV e a sua esposa D. Maria Ana. Isto explica o olhar reverente por parte de algumas personagens, como a princesa, e Velasquez estaria a pintar um retrato real. Os espectadores assumem o papel dos soberanos enquanto pousam para o retrato e a tela que Velasquez pinta é nossa.
Ainda assim, muitos especulam que o reflexo que vemos no espelho não é do casal, mas sim de um dos quadros do atelier do pintor e que tal pode ser provado pela perspectiva sala representada. Neste caso o foco da obra permanece um mistério.
Quer contenha um espelho, ou não, um quadro apresenta sempre um reflexo. O pintor assume a posição de espelho e a partir da sua obra apresenta-nos uma versão da sua realidade que pode ser mais ou menos distorcida, verdadeira ou não. Velasquez mostra-nos, não só uma perspectiva de um acontecimento, mas várias. Las Meninas representa vários retratos num só. É ao mesmo tempo um auto-retrato, uma cena do quotidiano da corte espanhola e um retrato real.
Referências:
-Michael Foucault (1966)The Order of Things: An Archaeology of the Human Sciences (Les mots et
les choses: Une archéologie des sciences humaines)
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