terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Memento, de Christopher Nolan (2000)

film noir de Christopher Nolan, baseado no conto do irmão Jonathan Nolan, publicado posteriormente na Esquire Magazine, deve o impacto que teve na cultura cinematográfica à sua estrutura narrativa, incomum nos filmes do seu género, de cujos típicos elementos mantém a figura central do detective que tenta solucionar um crime que lhe é próximo. As personagens intervenientes não deixam de ser apresentadas como ambíguas, instalando um carácter de dúvida perante as suas acções, da parte do espectador que acompanha os relatos na primeira pessoa do protagonista investigador. 
Também o tema da memória é recorrente no género, ainda que no caso de Memento o protagonista Leonard Shelby não sofra de uma amnésia comum, que o impediria de relembrar-se da sua vida anterior a um hipotético acidente, ou incidente, mas sofra da impossibilidade de criação de novas memórias posteriormente a esse acontecimento. Perante um sujeito incapaz de sentir a passagem do tempo, tida como a condição fundamental para o processamento do luto da sua esposa assassinada, e incapaz de gravar na memória o seu novo passado que vai construindo a cada vez que volta ao esquecimento, o realizador apresenta-nos uma narrativa estruturalmente dividida entre duas sequências, também estas subdivididas e fragmentadas para que se assemelhem a uma série de flashbacks, ou retalhos de memória. Há uma clara demarcação entre o enredo cronológico da acção e a sua narrativa. 
Na cena de abertura já se faz entrever uma parte essencial da sua estrutura, e é introduzido à partida um importante elemento que tanto serve de auxiliar à condição específica do protagonista, do tema da memória, como de elemento simbólico de outras questões do filme relacionadas com a dúvida gerada pelo potencial falseamento da memória ou a sua intrínseca falta de fiabilidade. A Polaroid introduz o problema do fotográfico como auxiliar de memória. Podemos ver como a cena de abertura mostra a polaroid no processo de auto-revelação de forma invertida, ecoando a condição de Lenny, e continua para nos mostrar a acção final do enredo, de trás para a frente, ecoando por sua ver uma das partes estruturais da narrativa. 
De forma resumida, o filme começa pelo início mas também pelo fim do enredo, sendo que o início é mostrado a preto e branco do sentido cronológico e o final é mostrado anacronicamente, no sentido contrário, a cor, em cenas alternadas. Estrutura escolhida para provocar no espectador os mesmos sentimentos de confusão e dúvida do protagonista, aproximando-o da condição deste, relatando os acontecimentos na primeira pessoa e disponibilizando a mesma informação para ambos. Nas cenas a preto e branco, do que seria a sequência ordenada cronologicamente, podemos considerar um carácter mais documental, próximo da entrevista, para conferir um determinado grau de objectividade ao relato subjectivo do sujeito, enquanto que às cenas a cores da sequência invertida fragmentada é-lhes conferido um carácter completamente subjectivo. Porém, à medida que ambos os extremos avançam na narrativa para o arco medial do enredo, estas características vão-se contaminando entre “sequências”, acabando convergir com a passagem do preto e branco para a cor na cena final, passagem feita inclusivamente numa polaroid. No entanto, ao longo do filme, nunca nos é dado uma visão completamente objectiva do universo do enredo, sendo que o conteúdo objectivo está sempre dependente da subjectividade do narrador. O espectador é colocado na mesma posição que o protagonista narrador, consciente de que a sua busca por uma verdade está tão dependente quanto possível das suas crenças e escolhas, sobre no que depositar a sua confiança. 
Ao longo do filme o narrador explica como a memória é falível, assume a possibilidade de tentativas de manipulação por parte de terceiros, e ainda que “a câmara não mente”. No entanto percebemos que a possibilidade daquele manipular-se a si próprio acaba por se concretizar, com auxilio ainda da câmara que não mente, introduzindo no seu sistema, até ali fiável, de apontamentos, fotografias e tatuagens que faz substituir a sua memória, a derradeira dúvida para o espectador que, ao contrário do protagonista, continuará a recordar-se de todas as suas acções. Que todo o material tido como certo e verdadeira está disponível para ser adulterado, sejam memórias, relatos escritos ou imagens fotográficas, parecendo ser a principal problemática do filme a questão de como seria possível viver com tal conhecimento.



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