sábado, 6 de janeiro de 2018

Do Outro Lado do Espelho



MUSEU CALOUSTE GULBENKIAN
Galeria Principal

“Do Outro Lado do Espelho”, é uma exposição presente na Galeria Principal do Museu Calouste Gulbenkian, sob a curadora de Maria Rosa Figueiredo, a colaboradora mais antiga desta instituição, sendo este o seu último projecto antes de se reformar.

Enganei-me na porta e entrei na exposição do lado errado... a começar pelo final. Iniciei assim a minha viagem através dos múltiplos jogos de espelhos e ilusões ópticas existentes no espaço da exposição. Tentei procurar uma lógica para seguir um caminho, mas não a encontrei e decidi procurar o ponto de partida correto. 

Espelho na porta de saída | Biombo de espelhos da Galeria

No caminho, cruzei-me com um quadro de Luís Noronha da Costa (1942) que me despertou interesse. Ao aproximar-me dele, tive a sensação de já ter visto aquele lugar indefinido e infinito, criado pela sequência repetitiva de um reflexo nos espelhos, em direção a um ponto de fuga. Atrevi-me a dar-lhe um nome: “A Bailarina”, pois o quadro é Sem Título. Fascinou-me o mistério e o ambiente indefinido para onde esta imagem me conduz. 

Luís Noronha da Costa (1942) - Sem Título, não datado

O assunto abordado na exposição, é “a arte do Espelho” ou “o espelho na arte”, consoante o ponto de vista de cada um. O título, alusivo ao livro de Lewis Carroll (1832-1898) “Alice do Outro Lado do Espelho”, é muito apelativo dando-nos desde logo uma interpretação do seu conteúdo, mas também pode pecar por condicionar demasiado as expectativas do visitante.

A história de Alice Liddell, a protagonista do livro “Do Outro Lado do Espelho”, aprofunda esta procura de uma identidade, longe do contexto social; trata-se de uma “viagem” que relata uma transformação, uma passagem da infância para o caminho da maturidade e da autonomia. Atravessando o espelho, Alice abre a porta para um mundo desconhecido, iniciando um processo de autoconhecimento, confrontando-se com este ambiente surrealista de sensações e emoções. Alice mergulha num delírio onde tudo é muito bizarro e absurdo, como o mundo adulto pode parecer a uma criança.

O espelho é um instrumento poderoso, objecto de contemplação ou de análise da realidade, permite-nos ver para além daquilo que o nosso olhar alcança. Desde sempre um objecto fascinante para muitos artistas, sejam eles escritores, pintores, escultores, fotógrafos, cineastas..
É por isso muito interessante que a curadora tenha desenvolvido uma exposição inteiramente em torno deste objecto representado na arte das mais diversas formas. É um conceito muito versátil que me suscitou muita curiosidade em saber quais as obras e os autores escolhidos, visto existirem diversas possibilidades.

Apesar de todas as obras terem o espelho como ponto de encontro, cada uma tem a sua individualidade própria.

Ao iniciar novamente o meu percurso começando agora pela porta definida como a entrada principal, voltei a sentir-me inquieta pela falta de uma lógica condutora, fosse ela cronológica ou de qualquer outra ordem. Servi-me dos textos escritos nas divisórias das salas para me tentar enquadrar, mas mesmo assim continuei um pouco perdida, por não estar a conseguir encaixar as obras em cada uma das 5 secções encontradas pela curadora para organizar a exposição. De obra para obra existe um bloqueio na minha linha de pensamento, constantemente a ser interrompida a cada introdução de uma nova obra, sempre à procura de uma relação com o conceito descoberto na obra anterior, o que é de certa forma confuso, inquietante e perturbador.

Foi então que, tal como Alice Liddell, decidi libertar-me da lógica racional e seguir as minhas próprias associações e interpretações livremente, seguindo um roteiro motivado pelas das próprias obras. Segui desfrutando a ambiguidade existente na grande maioria das obras, escolhendo caminho entre a figuração e a abstracção, e emergido no conceito da exposição.

A exposição é composta por 69 obras (“número-espelho”) de artistas europeus e está dividida em 5 secções: Quem sou eu? O Espelho Identitário / O Espelho Alegórico / A mulher em frente ao Espelho: A Projecção do Desejo / Espelhos que Revelam e Espelhos que Mentem / O Espelho Masculino: Autorretratos e Outras Experiências.

Quem sou eu? O Espelho Identitário incide na questão da procura de uma imagem onde podemos identificarmo-nos enquanto sujeito. Isto levado ao extremo, resulta na coincidência entre o sujeito e a sua imagem, deixando de se distinguir os limites de ambos, como na fotografia de Cecília Costa (1971) – Isabel, série Pli, 2005.
Esta fotografia reflete a dualidade física e psicológica do ser humano. Ao interpretar aquela figura feminina, senti a vontade de fugir da realidade aparente e projetar-me na imagem refletiva. Talvez também pelo facto da figura se encontrar oculta para o espectador, exista o impulso de nos vermos no corpo daquela figura.

Cecília Costa (1971) – Isabel, série Pli, 2005

Neste núcleo sobre a ‘procura da identidade’, a peça Who Cares? (não datada) de Ana Jotta (1946) despertou a minha atenção. Com ironia e sentido de humor particular esta representação desafia e dá força ao argumento por trás da exposição. De forma inteligente, Ana Jotta, no lugar de um ser humano coloca um coelho em frente ao espelho, alusivo à história de “Alice Do Outro Lado Do Espelho”, que desvaloriza o que vê no reflexo.

Ana Jotta (1946) - Who Cares?, não datada

Do mesmo modo, o Espelho “No”, 2014 - peça de Stefan Bruggenmann (1975) inserida na secção Espelhos que Revelam e Espelhos que Mentem - leva-nos a pensar na questão da impossibilidade de refletir a realidade como ela existe, e quase se impõe como uma crítica à arte que o tenta fazer.
Contrariando as pinturas que representam o espelho, esta peça consiste na utilização de espelho real, pintado de uma forma minimalista, com a palavra “NO” inscrita no centro.

Stefan Bruggenmann (1975) - Espelho “No”, 2014

É uma peça em constante movimento refletindo as diferentes situações dos visitantes da exposição e as outras obras que a rodeiam, denunciando diversas situações na interacção das imagens com a palavra “NO” – um jogo muito interessante.

Na secção O Espelho Alegórico, os artistas recorrem à alegoria para representar vícios, virtudes, e outras qualidades ou conceitos abstractos. Aqui, o Espelho é encarado como uma metáfora de virtudes e defeitos, mas também do tempo que passa e que conduz ao envelhecimento e à morte inevitável, tendo sempre a mulher como intérprete.
Interessou-me particularmente a peça de Ana Vieira (1940-2016) – Toucador, 1973 – artista que admiro. Tornar presente um contorno para transmitir uma ausência – ideias muito presentes no trabalho de Ana Vieira. Trabalho este repleto de representações inventadas compostas por partes de objectos ou seres conjugados de forma a transmitir-nos uma presença espiritual ou uma vivência física. O facto de, mais uma vez, não vermos nenhum rosto, deixa espaço para que o espectador se possa revêr naquele contorno humano inserido num contexto intimista.
Existe também a possibilidade de contornarmos a peça e obtermos dois pontos de vista diferentes, consoante o lado do espelho que escolhemos.

Ana Vieira (1940-2016) – Toucador, 1973

A terceira sala é dedicada ao tema -  A mulher em frente ao Espelho: A Projecção do Desejo. Uma mulher em frente ao espelho demonstra a sua vontade de ser aceite, apreciada, admirada e até desejada pelo “outro”. Pode também representar muitas outros dilemas como o desejo de uma aparência melhorada, o confronto com as marcas do tempo, uma frustração perante a sua imagem, ou uma procura de identificação.

Privacidade, sedução, e libertação pretendem ser alguns dos temas na base das obras reunidas nesta sala.

Não podia passar indiferente à obra de Paula Rego (1935) - Preparando-se para o Baile, 2001-2002, com as suas figuras ambíguas e controversas. Neste quadro vislumbramos um quarto de vestir feminino, habitado por meninas e mulheres que se desvendam na sua relação com o espelho. Observamos várias personalidades diferentes, raparigas que se admiram ao espelho, outras que nem se atrevem ver-se nele, talvez por repudio, desinteresse ou frustração.

Paula Rego (1935) - Preparando-se para o Baile, 2001-2002

Espelhos que Revelam e Espelhos que Mentem. Nas obras escolhidas para esta secção, reparamos como os artistas fazem uso do espelho para criar ilusões de óptica, imagens ambíguas e misteriosas, que confundem o espectador e o fazem sonhar uma realidade paralela. As anamorfoses, muito usadas nos séculos XVIII e XIX, tal como mais adiante, os espelhos convexos como forma de explorar outras dimensões físicas; fazem-nos pensar na fragmentação da realidade e na ilusão da mesma, que se compõe aos nossos olhos.


No domínio da imaginação, estão incluídas nesta sala, várias obras inspiradas na “Alice de Do Outro lado do Espelho”, como a pintura de António Dacosta (1914-1990)  –  Sem título (Menina da Bicicleta), 1942: Alice passeia de bicicleta do outro lado do Espelho, e o às de Copas remete-nos para a Rainha de Copas – personagem de “Alice no País das Maravilhas”.

António Dacosta (1914-1990)  –  Sem título
(Menina da Bicicleta)
, 1942

O artista conhecido como um dos surrealistas portugueses, nesta pintura-colagem faz emergir um espelho de mão em forma de face vazada, com uma pequena régua onde vemos os dois olhos recortados. Ao mesmo tempo, o espelho tem também a forma do buraco da fechadura da porta, por onde podemos espreitar interpretando uma cena de um erotismo subtil, sinalizada pelo ás de copas. O quadro não me fascina pela mestria surrealista mas intriga-me pela a composição complexa, que nos dá várias dimensões físicas, e emocionais.
Com a presença do espelho, alternamos entre a bidimensionalidade e a tridimensionalidade, tentando entender o que vemos na imagem.

Ainda nesta sala, também me impressionou o díptico de Luís Noronha da Costa (1942) Sem título – Díptico, de 1984. O ângulo entre os dois planos pintados que compõem a obra, permite-nos acreditar na relação das duas imagens. Como se toda a composição fizesse sentido e nós podéssemos ter dois pontos de vista em simultâneo, enriquecendo o conteúdo do que observamos. Mais uma vez, somos forçados a preencher o vazio daquele corpo voltado de costas para nós e entrar naquela personagem, presa na moldura dos espelhos que se refletem um no outro.

À direita, Luís Noronha da Costa (1942) Sem título – Díptico, de 1984

No último conjunto, com o título O Espelho Masculino: Autorretratos e Outras Experiências, vemos agrupadas várias obras de artistas masculinos que utilizam o espelho como objecto central do seu trabalho, onde predomina o conceito de duplicação. Desde as representações mais clássicas que começam a recorrer ao espelho para conseguirem uma imagem mais fiel da realidade – antes da fotografia e do filme – até às obras mais próximas da contemporaneidade, com experiências conceptuais com recurso a espelhos. Além da presença de artistas como Jorge Molder, Daniel Blaufuks, ou Richard Hamilton, a desforra feminina acontece com Paula Rego (1935) no quadro Mãe, série O Crime do Padre Amaro, onde é recriada uma personagem masculina do Crime do Padre Amaro, romance de Eça de Queiroz, com uma saia. 

Paula Rego (1935no quadro Mãe,
série O Crime do Padre Amaro

O facto desta obra de Paula Rego estar na sala O Espelho Masculino: Autorretratos e Outras Experiências, juntamente com os artistas masculinos, não é por mero acaso. Achei curiosa a decisão, e pesquisei sobre as intensões das curadoras.
Paula Rego é uma artista defensora da liberdade da mulher face às convenções sociais, e neste sentido, é muito oportuno colocar uma pintura dela no meio dos pintores masculinos que afirmam ter uma relação com o espelho apenas por questões ciêntificas e analíticas, ou por questões práticas de auto-representação.
Neste quadro, Mãe, criteriosamente escolhido, a figura central feminina do quadro parece olhar para nós abstraindo-se da realidade que a rodeia. A figura masculina é ridicularizada, parecendo frágil e manipulada pelas mulheres, apresentando-se de saias e admirando-se ao espelho num acto de vaidade. A postura destas duas figuras em confronto, subverte os preconceitos de género existentes em relação à representação do espelho na arte.

Saí da exposição, pelo mesmo sítio por onde entrei, e senti ter feito um percurso consistente na travessia imaginária do espelho, entendendo por fim, as intenções da curadora. Acredito que o facto de não ter existido nenhuma ordem lógica para orientar a visita, pode bem ter sido o sucesso do envolvimento pessoal que estabeleci ao passar por este processo.

As 5 secções criadas e os textos à entrada de cada uma delas são apenas pistas baseadas na análise feita por Maria Rosa Figueiredo em colaboração com Ana Paula Rebelo Correia no desenvolvimento do conceito do espelho enquanto tema alegórico, e de Leonor Nazaré membro da equipa responsável pela Colecção Moderna da Fundação.

O jogo de espelhos na própria galeria da exposição, permite-nos ver o reflexo de algumas obras e descobrir outras coisas consoante o nosso posicionamento físico, além de incentivar o visitante à participação neste mundo fragmentado de reflexos, onde a sua imagem se mistura com a das figuras em exposição.

Também é de salientar o volume considerável de artistas nacionais representados nesta selecção, penso ser outro dos pontos fortes da exposição dando-nos referências de várias épocas diferentes.

Ao terminar a exposição, achei muito positivo o facto de haver espaço aberto para que seja o espectador a construir o caminho que pretende. Atrevi-me a fazer esse percurso sem grandes preconceitos de contexto histórico-sociais, baseando-me nos meus interesses e descobertas pessoais em cada obra, seguindo o meu instinto e deixando-me contaminar; Do mesmo modo que Alice Liddell fez quando atravessou o espelho e se libertou do contexto convencional onde vivia.

As obras que mais me fascinaram foram as mais ambíguas, as mais estranhas ou controversas, as que podem ser outras coisas para além da sua primeira aparência; as que nos suscitam dúvida sobre a realidade representada e simultaneamente a possibilidade de imaginarmos essa mesma realidade da forma que melhor nos serve.

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