terça-feira, 25 de novembro de 2025

A infância como forma de olhar o mundo: O principezinho

 “O Principezinho” 

A infância como forma de olhar o mundo


Sempre ouvi dizer que O Principezinho era um daqueles livros que acompanhava as pessoas durante toda a vida, mas durante anos não consegui entender porquê. Na minha cabeça, era apenas uma história para crianças, um conto infantil com o qual nunca me identifiquei nem conseguia decifrar, e talvez por isso eu não conseguisse ver nada de especial nele quando era mais nova. A verdade é que, na correria para crescer ou para entender, eu própria tinha perdido aquela forma de olhar o mundo que o livro tanto celebra: a curiosidade, o encantamento e a simplicidade com que as crianças observam o mundo.

Revisitar o livro em adulta (que na realidade foi ainda em adolescente) foi quase como limpar os óculos. De repente, tudo aquilo que me parecia óbvio e até de certa forma aborrecido, começou a ganhar profundidade. Percebi que a história não fala de infância no sentido mais literal da palavra, mas de um estado de espírito que vamos perdendo sem reparar: a capacidade de fazer perguntas sem receios, de valorizar o essencial e de não deixar que o “ser adulto” nos gele o olhar.



A realidade é que acho que é exatamente por experiências como a minha que as pessoas acabam por falar sempre deste livro, porque acredito que seja exatamente quando crescemos, ou melhor, porque crescemos que conseguimos perceber o limiar entre a simplicidade da narrativa e aquilo que ela nos quer dizer nas entrelinhas.


A história de Saint-Exupéry

Le Petit Prince, começa por introduzir um piloto que despenhou a sua avioneta no deserto, enquanto tenta arranja-la, um pequeno rapaz, que vem de outro planeta, vem ao seu encontro e pergunta se lhe consegue desenhar uma ovelha. A partir daí começa a contar a sua história pelos planetas que viajou e da sua terra natal, e assim se desenvolve a narrativa.


A viagem do príncipe pelos planetas surge como uma alegoria ao mundo dos adultos, uma viagem observacional onde cada pessoa que o príncipe encontra, representa para mim a cegueira que se apoderou de cada personagem (o rei, o bêbado, o vaidoso, o homem de negócios, etc), perdidos nas suas próprias obsessões e demasiado preocupados com os seus egoísmos e vaidades absurdas, incapazes de refletir sobre eles. No fundo a narrativa faz-nos olhar para estas personagens como um reflexo da sociedade, como somos formatados a preocupar-nos com aquilo que possuímos, escondemos  e controlamos, sem sermos capazes de viver com aquilo que verdadeiramente importa.


Em oposição a estas personagens, surgem outras que se distinguem por não serem adultos e não humanos (a raposa, a rosa), que nós caracterizamos como símbolos opostos à superficialidade humana. “O essencial é invisível aos olhos” , dito pela raposa, sumariza bastante bem aquilo que estas personagens representam: a dimensão essencial. Na lógica da vida adulta, nós devemos medir o nosso sucesso em produtividade e resultados, mas a realidade acontece entre nós pessoas, os vínculos criados e a nossa disponibilidade de estarmos vulneráveis para criar esses laços, que requerem tempo, paciência, cuidado, presença, coisas que não se vêem mas que permanecem em nós como um pequeno puzzle da nossa vida que é feito sim destas pequenas coisas.

Vejo que há uma certa sensibilidade nas crianças de sentir importância em coisas que os adultos só vêem insignificância, há um filtro que vai crescendo connosco que ainda não existe para elas, que não as deixa cegar. 


Percebi então que a infância não é apenas uma fase da vida, é uma forma de ver. E talvez o maior desafio seja não deixar que o tempo apague essa lente mais sensível, mais livre e mais verdadeira, que penso que na altura nem sejamos capazes de a ver. 

Penso muito nisso, especialmente este ano, cada vez que entro numa sala de aula para ensinar aquilo que eu acho que sei sobre arte e criatividade a “pequenos artistas”, vejo naquelas crianças uma imaginação que eu não fui capaz de ter. Sempre que levo um exercício para trabalhar em aula, vejo que sou eu a receber novas formas de o interpretar, coisas que estavam mesmo à frente do meu nariz, mas eu não consegui ver, talvez por também eu ser um adulto e já ter ganho o medo de errar. A realidade é que as crianças não precisam de explicações para poder imaginar, desenham sem medo de errar, imaginam atmosferas completamente diferentes da nossa sem pensar se são realistas, tudo aquilo que passa na cabeça delas é produto de uma imaginação que anda à solta, sem amarras e julgamentos, ao contrário de nós adultos, que temos quase de pedir permissão para imaginar…


Chega a uma altura, que eu não sei explicar quando, onde nos dizem que cobras não engolem elefantes e que o desenho não está bem feito ou não está realista, e de pouco em pouco o nosso artista interior vai se encolhendo até se moldar completamente dentro de uma forma retilínea, como um funcionário pronto para receber ordens.



A imagem da jiboia, mais do que a rosa ou a raposa, é para mim a parte que mais me impacta, e também por ser a primeira página acho que isso diz muito sobre o livro. O símbolo mais subtil de como nós usamos a nossa imaginação, a metáfora perfeita para aquilo que acontece com a nossa criatividade: a capacidade de ver para além da forma, de imaginar o impossível (a prática artística real, a que nasce por impulso). Este brilho que se mantém vivo nas crianças apenas porque ainda não lhes ensinaram a duvidar do impossível, que se torna muito difícil para nós de imaginar, quando vivemos agarrados às possibilidades, ao exato e ao realista.


Enquanto artista, ou alguém que tenta criar, considero que pertença a um grupo reduzido de adultos que se sente na obrigação quase vital de não deixar esta chama da imaginação que nasce em criança apagar-se, e por isso, hoje mais do que nunca, vou à procura de novas formas de a alimentar, num esforço constante de me reencontrar com este primeiro mundo artístico tão basilar em mim, mas mesmo assim pergunto-me “Quantos elefantes deixei de ver, porque fiquei presa à silhueta do chapéu?”.


Hoje em dia quando penso em novos projetos, ou melhor, em criar, consigo perceber que o maior desafio é o constante reaprender a ver, libertar-me das expectativas, deixar de criar para mostrar, e começar a criar para ver, tal como as crianças que usam as arte para explorar o desconhecido, deixar a arte fazer perguntas em contradição a usá-la como uma resposta, como temos tendência a fazer com tudo quando crescemos. 

Como última nota, gostaria de mencionar as ilustrações do autor no livro. Acho que é assim que as pessoas nas livrarias pensam num livro como algo infantil, através das ilustrações. Acredito que pensam ser impossível um livro para adultos ter tantos desenhos, mas Saint-Exupéry mais uma vez quebra as regras que a vida adulta impõe (especialmente na época em que foi lançado pela primeira vez) e oferece-nos de forma pequena, leve e imperfeita uma arte sem grandiosidade mas transformadora, uma arte que nos abre as portas ao significado. 






A emoção prioriza a forma e ao olhar para estas imagens sinto uma sinceridade expressiva que a mim me cativa bastante, relembra-me que é preciso ter a sensibilidade para continuar a imaginar e é aqui que volto quando preciso de me relembrar de ver o invisível.



blah blah

"Para mim, esta é a mais bela e mais triste paisagem do mundo. É a mesma paisagem da página anterior, mas eu voltei a desenhá-la para vocês a verem melhor. Foi aqui que o principezinho fez a sua aparição na Terra e, depois, desapareceu. Fixem bem esta paisagem para a poderem reconhecer se um dia fizerem uma viagem a Africa e forem ao deserto. Se passarem por este sítio, suplico-vos: não tenham pressa, fiquem um bocadinho à espera mesmo por baixo da estrela! Se vier um menino ter con-vosco, um menino que se está sempre a rir, com cabelos cor de ouro e que nunca responde quando se lhe faz uma pergunta, já sabem quem ele é. E então, por favor, sejam simpáticos! Não me deixem assim triste: escrevam-me depressa a dizer que ele voltou..."