domingo, 23 de novembro de 2025

Fisiologias do Som

A relação entre música e corpo sempre despertou interesse tanto na arte como na ciência. Na semana passada vi que um dos aspetos mais intrigantes dessa ligação é a forma como o ritmo musical pode dialogar directamente com os nossos batimentos cardíacos. A métrica que usamos para medir o andamento de uma música (BPM, batimentos por minuto) é a mesma utilizada para medir a frequência cardíaca, o que torna o paralelismo particularmente significativo. Num adulto saudável, o coração em repouso bate geralmente entre 60 e 100 bpm, uma faixa que curiosamente se cruza com muitos dos tempos musicais mais populares.




A psicologia da música tem mostrado que a preferência por certos ritmos pode estar ligada à nossa própria fisiologia. Muitas pessoas tendem a preferir músicas com tempos entre 70 e 100 ciclos por minuto, valores muito próximos da frequência cardíaca de repouso. Esta tendência foi observada num estudo de 1996, que propôs que os ouvintes podem sentir uma espécie de familiaridade corporal com ritmos que ecoam o seu próprio batimento. Outro estudo demonstrou que, durante o exercício, a preferência por músicas mais rápidas aumenta, quanto mais acelerado o coração, mais procuramos ritmos que acompanhem essa aceleração. Parece existir uma espécie de diálogo fisiológico entre o corpo e o ambiente sonoro.


Além da preferência, há evidências de que o tempo musical pode efetivamente influenciar o ritmo cardíaco. Músicas significativamente mais rápidas do que o batimento basal provocam aumentos mensuráveis da frequência cardíaca. Uma revisão mais recente deste estudo reforça esta ideia ao analisar como ritmos externos podem sincronizar ritmos internos como respiração e pulsação, embora os efeitos sejam mais marcantes em contextos de música ao vivo do que gravada. Isto sugere que a presença física do som, e talvez mesmo a dimensão performativa, amplifica a capacidade da música de influenciar o corpo.


No campo do desporto e do bem-estar, esta relação tem aplicações diretas. Experiências com caminhadas em passadeiras mostram que músicas rápidas podem elevar a frequência cardíaca e alterar a variabilidade cardíaca, modulando o esforço percebido. Em atletas, experiências com música interativa, ou seja, músicas que se ajustam em tempo real ao batimento cardíaco, demonstraram melhorias no desempenho e na forma como o esforço é sentido. Já no contexto de relaxamento, músicas com tempos mais lentos são frequentemente usadas para induzir calma, estabilizar a respiração ou criar um ambiente sonoro que desacelere o corpo.


Para os estudos de cultura visual, esta ligação tem implicações conceptuais interessantes. O ritmo cardíaco pode ser pensado como um “metrónomo interno” que, quando cria ressonância com o metrónomo externo da música, produz uma experiência sinestésica: o corpo sente aquilo que o ouvido organiza. A preferência musical pode então ser interpretada como expressão corporal, uma estética que nasce tanto da identidade fisiológica como da cultural. Tal como somos atraídos por certas imagens devido ao seu ritmo visual, somos atraídos por certos sons porque dialogam com o ritmo que carregamos dentro de nós. Esta dimensão incorporada da experiência musical aproxima o estudo da cultura visual de reflexões sobre corpo e perceção.

Ainda assim, nem todos os estudos chegam às mesmas conclusões. A sincronização rítmica não é uma regra universal e depende de múltiplos factores: o contexto, o tipo de música, a atenção da pessoa que está a ouvir e as suas diferenças individuais, desde condicionamento físico até emoções e enquadramento cultural. 


Refletindo sobre esta informação, a meu ver permanece clara a ideia de que música e batimento cardíaco estão envolvidos numa relação que é tanto biológica como cultural. Quando ouvimos música, não estamos apenas a interpretar sons através da mente, mas estamos também a responder com o corpo. Antes de compreendermos a música, sentimo-la.


Webgrafia:


pt.wikipedia.org/wiki/Batidas_por_minuto

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