terça-feira, 25 de novembro de 2025

A infância como forma de olhar o mundo: O principezinho

 “O Principezinho” 

A infância como forma de olhar o mundo


Sempre ouvi dizer que O Principezinho era um daqueles livros que acompanhava as pessoas durante toda a vida, mas durante anos não consegui entender porquê. Na minha cabeça, era apenas uma história para crianças, um conto infantil com o qual nunca me identifiquei nem conseguia decifrar, e talvez por isso eu não conseguisse ver nada de especial nele quando era mais nova. A verdade é que, na correria para crescer ou para entender, eu própria tinha perdido aquela forma de olhar o mundo que o livro tanto celebra: a curiosidade, o encantamento e a simplicidade com que as crianças observam o mundo.

Revisitar o livro em adulta (que na realidade foi ainda em adolescente) foi quase como limpar os óculos. De repente, tudo aquilo que me parecia óbvio e até de certa forma aborrecido, começou a ganhar profundidade. Percebi que a história não fala de infância no sentido mais literal da palavra, mas de um estado de espírito que vamos perdendo sem reparar: a capacidade de fazer perguntas sem receios, de valorizar o essencial e de não deixar que o “ser adulto” nos gele o olhar.



A realidade é que acho que é exatamente por experiências como a minha que as pessoas acabam por falar sempre deste livro, porque acredito que seja exatamente quando crescemos, ou melhor, porque crescemos que conseguimos perceber o limiar entre a simplicidade da narrativa e aquilo que ela nos quer dizer nas entrelinhas.


A história de Saint-Exupéry

Le Petit Prince, começa por introduzir um piloto que despenhou a sua avioneta no deserto, enquanto tenta arranja-la, um pequeno rapaz, que vem de outro planeta, vem ao seu encontro e pergunta se lhe consegue desenhar uma ovelha. A partir daí começa a contar a sua história pelos planetas que viajou e da sua terra natal, e assim se desenvolve a narrativa.


A viagem do príncipe pelos planetas surge como uma alegoria ao mundo dos adultos, uma viagem observacional onde cada pessoa que o príncipe encontra, representa para mim a cegueira que se apoderou de cada personagem (o rei, o bêbado, o vaidoso, o homem de negócios, etc), perdidos nas suas próprias obsessões e demasiado preocupados com os seus egoísmos e vaidades absurdas, incapazes de refletir sobre eles. No fundo a narrativa faz-nos olhar para estas personagens como um reflexo da sociedade, como somos formatados a preocupar-nos com aquilo que possuímos, escondemos  e controlamos, sem sermos capazes de viver com aquilo que verdadeiramente importa.


Em oposição a estas personagens, surgem outras que se distinguem por não serem adultos e não humanos (a raposa, a rosa), que nós caracterizamos como símbolos opostos à superficialidade humana. “O essencial é invisível aos olhos” , dito pela raposa, sumariza bastante bem aquilo que estas personagens representam: a dimensão essencial. Na lógica da vida adulta, nós devemos medir o nosso sucesso em produtividade e resultados, mas a realidade acontece entre nós pessoas, os vínculos criados e a nossa disponibilidade de estarmos vulneráveis para criar esses laços, que requerem tempo, paciência, cuidado, presença, coisas que não se vêem mas que permanecem em nós como um pequeno puzzle da nossa vida que é feito sim destas pequenas coisas.

Vejo que há uma certa sensibilidade nas crianças de sentir importância em coisas que os adultos só vêem insignificância, há um filtro que vai crescendo connosco que ainda não existe para elas, que não as deixa cegar. 


Percebi então que a infância não é apenas uma fase da vida, é uma forma de ver. E talvez o maior desafio seja não deixar que o tempo apague essa lente mais sensível, mais livre e mais verdadeira, que penso que na altura nem sejamos capazes de a ver. 

Penso muito nisso, especialmente este ano, cada vez que entro numa sala de aula para ensinar aquilo que eu acho que sei sobre arte e criatividade a “pequenos artistas”, vejo naquelas crianças uma imaginação que eu não fui capaz de ter. Sempre que levo um exercício para trabalhar em aula, vejo que sou eu a receber novas formas de o interpretar, coisas que estavam mesmo à frente do meu nariz, mas eu não consegui ver, talvez por também eu ser um adulto e já ter ganho o medo de errar. A realidade é que as crianças não precisam de explicações para poder imaginar, desenham sem medo de errar, imaginam atmosferas completamente diferentes da nossa sem pensar se são realistas, tudo aquilo que passa na cabeça delas é produto de uma imaginação que anda à solta, sem amarras e julgamentos, ao contrário de nós adultos, que temos quase de pedir permissão para imaginar…


Chega a uma altura, que eu não sei explicar quando, onde nos dizem que cobras não engolem elefantes e que o desenho não está bem feito ou não está realista, e de pouco em pouco o nosso artista interior vai se encolhendo até se moldar completamente dentro de uma forma retilínea, como um funcionário pronto para receber ordens.



A imagem da jiboia, mais do que a rosa ou a raposa, é para mim a parte que mais me impacta, e também por ser a primeira página acho que isso diz muito sobre o livro. O símbolo mais subtil de como nós usamos a nossa imaginação, a metáfora perfeita para aquilo que acontece com a nossa criatividade: a capacidade de ver para além da forma, de imaginar o impossível (a prática artística real, a que nasce por impulso). Este brilho que se mantém vivo nas crianças apenas porque ainda não lhes ensinaram a duvidar do impossível, que se torna muito difícil para nós de imaginar, quando vivemos agarrados às possibilidades, ao exato e ao realista.


Enquanto artista, ou alguém que tenta criar, considero que pertença a um grupo reduzido de adultos que se sente na obrigação quase vital de não deixar esta chama da imaginação que nasce em criança apagar-se, e por isso, hoje mais do que nunca, vou à procura de novas formas de a alimentar, num esforço constante de me reencontrar com este primeiro mundo artístico tão basilar em mim, mas mesmo assim pergunto-me “Quantos elefantes deixei de ver, porque fiquei presa à silhueta do chapéu?”.


Hoje em dia quando penso em novos projetos, ou melhor, em criar, consigo perceber que o maior desafio é o constante reaprender a ver, libertar-me das expectativas, deixar de criar para mostrar, e começar a criar para ver, tal como as crianças que usam as arte para explorar o desconhecido, deixar a arte fazer perguntas em contradição a usá-la como uma resposta, como temos tendência a fazer com tudo quando crescemos. 

Como última nota, gostaria de mencionar as ilustrações do autor no livro. Acho que é assim que as pessoas nas livrarias pensam num livro como algo infantil, através das ilustrações. Acredito que pensam ser impossível um livro para adultos ter tantos desenhos, mas Saint-Exupéry mais uma vez quebra as regras que a vida adulta impõe (especialmente na época em que foi lançado pela primeira vez) e oferece-nos de forma pequena, leve e imperfeita uma arte sem grandiosidade mas transformadora, uma arte que nos abre as portas ao significado. 






A emoção prioriza a forma e ao olhar para estas imagens sinto uma sinceridade expressiva que a mim me cativa bastante, relembra-me que é preciso ter a sensibilidade para continuar a imaginar e é aqui que volto quando preciso de me relembrar de ver o invisível.



blah blah

"Para mim, esta é a mais bela e mais triste paisagem do mundo. É a mesma paisagem da página anterior, mas eu voltei a desenhá-la para vocês a verem melhor. Foi aqui que o principezinho fez a sua aparição na Terra e, depois, desapareceu. Fixem bem esta paisagem para a poderem reconhecer se um dia fizerem uma viagem a Africa e forem ao deserto. Se passarem por este sítio, suplico-vos: não tenham pressa, fiquem um bocadinho à espera mesmo por baixo da estrela! Se vier um menino ter con-vosco, um menino que se está sempre a rir, com cabelos cor de ouro e que nunca responde quando se lhe faz uma pergunta, já sabem quem ele é. E então, por favor, sejam simpáticos! Não me deixem assim triste: escrevam-me depressa a dizer que ele voltou..."



segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Rodolphe Töpffer, ou rabiscos com significados


Rodolphe Topffer é o professor de literatura e caricaturista nascido em Geneva, na Suíça, mesmo no final do século XVIII que desempenhou um papel fundamental na invenção daquilo a que hoje chamamos a Banda Desenhada. Foram as suas inovações no século XIX que definiram muitas das estratégias narrativas que ainda usamos na criação de histórias que recorrem às imagens como principal vocabulário.

Tal como o seu pai, o Rodolph Topffer também começou por ter a ambição de se tornar um pintor paisagista, mas uma fraca acuidade visual afastou-o da pintura e encaminhou-o para uma carreira como romancista. Nessa mesma ocasião começou a fazer experiências com estórias contadas em imagens. Mas estas experiências fazia-as em privado, ou revelando-as apenas para entreter alguns dos seus alunos.

Foi o genial Johann Wolfgang Goethe (provavelmente o maior génio que a literatura alemã ofereceu ao mundo), que mantinha amigos em comum com Topffer, que o convenceu a publicar estas experiências. Goethe muito admirou as possibilidades narrativas das invenções de Topffer. Numa carta a um dos seus amigos comuns datada de Janeiro de 1831, Goethe escreve que Topffer “brilha de talento e espírito. Algumas das suas páginas são insuperáveis… Topffer está sózinho e é o único talento de que me lembro com esta originalidade”. Mas acrescenta ainda “se ele ao menos escolhesse um assunto menos frívolo no futuro e organizasse as suas ideias, ele criaria coisas que ultrapassam todas as nossas expectativas”.

Apesar de todas as declarações de originalidade que Goethe lhe atribui, talvez valha a pena apontar a influência que o romance pioneiro de Lawrence Sterne, The Life and Opinions of Tristram Shandy, exerceu sobre as ideias de Rodolph Topffer. A mistura do satírico e do absurdo, assim como a experimentação com a passagem do tempo na narrativa de Sterne parecem ter estado na génese de algumas das inovações de Rodolph Topffer.

E talvez seja justamente o modo inovador como Topffer traz o tempo e o movimento para os seus desenhos que o separa de toda a anterior tradição da caricatura e do cartune (se é que este termo possa já aqui ser usado).


Mas o objectivo deste texto não é traçar uma biografia e análise completas da obra de Topffer. É antes dar sequência aos textos que tenho vindo a escrever para este blogue e que focam a divisão entre os nossos rabiscos (os traços semi-conscientes que vamos deixando, sem fazer caso disso, nas margens dos nossos cadernos ou nos espaços vazios dos toalhetes de papel de um restaurante) e os objectos de arte pelos quais aceitamos responsabilidade. E o Rodolph Topffer deixa-nos muitas pistas para continuarmos o namoro com este tema (pelo menos, assim eu acho). É que Rodolph Topffer foi também o primeiro teórico da Banda Desenhada e publicou dois livros que tentavam explicar e ensinar as suas descobertas na caricatura e na arte narrativa. Em 1842, o
Essai d’Autographie, e em 1845 o Essai de Physiognomie. É neste segundo volume que Topffer vai explorar a semiologia da caricatura e debruçar-se sobre o modo como a produção mais ou menos acidental de linhas e a combinação surpreendente de traços fisionómicos (elementos de rostos e corpos) produzem o seu próprio sentido e criam valor simbólico e narrativo reconhecíveis pelo leitor.


O livro arruma nas suas páginas dezenas ou centenas de cabeças e rostos, todos eles plenos de significado e valor simbólico, embora produzidos de forma mais ou menos acidental e com muito pouco acabamento nos seus traços e detalhes. Por mais longe que estas figuras (ou linhas) estejam das intenções iniciais do seu criador (ou por mais imperfeitas que as consideremos), elas transportam uma personalidade e carácter próprios impossíveis de se separarem da imagem. Criaram significado e vida própria.


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COMO RESSIGNIFICAR CIDADES COLONIALISTAS?

No dia 31 de outubro de 2025, um grupo de arquitetos vinculados à Universidade de Columbia, em Nova Iorque, percorreu a zona de Belém em uma procissão pública performática como parte do projeto “TA-CHIM: Weighing a City's Colonial Legacies”, integrante da 7ª Trienal de Arquitectura de Lisboa.

Com o objetivo de documentar os vestígios da colonização de Macau na cidade, a  performance teve início no Padrão dos Descobrimentos, com a identificação, no centro do mosaico da Rosa dos Ventos, das rotas, datas e sítios da expansão imperial portuguesa. Em seguida, a procissão dirigiu-se ao Jardim da Praça do Império, onde estão representados brasões de províncias e antigas colônias ultramarinas. No Jardim Botânico Tropical, destacou-se o Arco de Macau, construído para a Seção Colonial da Exposição do Mundo Português de 1940, evento em que foram erguidas réplicas de edificações típicas de cada colônia portuguesa e “nativos” dessas regiões foram trazidos a Lisboa para serem exibidos ao público durante os meses da exposição. A etapa seguinte ocorreu na praça situada em frente ao Museu e ao Planetário da Marinha: símbolos da ciência colonial que possibilitou o aprimoramento das navegações e, concomitantemente,  a expansão do projeto imperial português. A performance foi encerrada no MAC/CCB, onde há uma exposição do projeto “TA-CHIM”, com a recriação de uma tradicional placa festiva cantonesa que narra os legados marítimos entre Lisboa e Macau.

Além de documentar esses sítios e propor uma visão crítica sobre sua presença na cidade, explorando o peso figurado do passado colonial, o grupo também propôs a criação de novas epistemologias espaciais, tanto ao mobilizar uma cartografia de vestígios coloniais em Belém, quanto ao realizar medições com sensores biométricos. 

A inquietação expressa por este projeto reflete um movimento global de questionamento e rejeição de narrativas ultrapassadas contadas por monumentos públicos. Em junho de 2020, em Bristol, manifestantes antirracistas derrubaram a estátua de Edward Colston, traficante de escravos britânico, e a lançaram em um rio, em apoio ao movimento Black Lives Matter, que sucedeu o assassinato brutal de George Floyd em maio do mesmo ano. Em julho de 2021, em São Paulo, manifestantes pelo direito a melhores condições de vida para moradores das periferias urbanas incendiaram a estátua de Manoel de Borba Gato, que homenageava os bandeirantes paulistas, grupo responsável por ações de escravização, extermínio de populações indígenas e destruição de quilombos entre os séculos XVI ao XVIII. 

Tanto esses quanto outros protestos de mesma natureza tiveram ampla repercussão na época, incitando debates intensos e polarizados entre a defesa da preservação do patrimônio material e o imperativo de desarticular discursos ofensivos e protestar contra o preconceito por meio da supressão de imagens racistas e colonialistas. Apesar das divergências, tornou-se indiscutível a necessidade de repensar e refletir sobre a memória coletiva fabricada por monumentos públicos.

Afinal, a cultura visual parte do pressuposto de que há uma camada de significados e interpretações socialmente construídas e aceitas atribuídos aos elementos visuais. Nesse sentido, a exposição de imagens racistas e colonialistas nas cidades, sem que haja um processo coletivo de ressignificação, implica a perpetuação dessas narrativas, sobretudo quando, para além da manutenção dos monumentos, ações e discursos violentos e extremistas de cunho racista e xenofóbico ganham espaço nas redes sociais, na política e nas ruas. Assim, resta o questionamento: como é possível descolonizar espaços que carregam símbolos que reverenciam fatos e personalidades hediondas? Como ressignificar cidades colonialistas?

domingo, 23 de novembro de 2025

Michael Mapes: Searching for the Subject Beyond the Surface

Michael Mapes é um artista contemporâneo norte-americano reconhecido pelos seus retratos fragmentados que combinam práticas artísticas com processos inspirados na ciência. Formado em design, desenvolveu um interesse precoce pela relação entre sistematização visual e narrativa pessoal. Ao apropriar-se de métodos científicos, tais como catalogação, taxonomia, análise laboratorial ou técnicas de arquivo, cria retratos que se situam em territórios entre a arte, a ciência e a antropologia. 

Cada obra assenta no conceito de “ADN biográfico” e apresenta-se como uma “autópsia visual” da identidade, como método de exposição das múltiplas camadas que compõem um indivíduo. Mapes desafia a noção tradicional de retrato enquanto representação unificada, mostrando um corpo de fragmentos que o espectador é convidado a reconstruir.

Mapes desconstrói e reconstrói identidades. Dedica-se à investigação da forma como percebemos a memória, os dados pessoais e a representação do indivíduo. Inspirando-se em procedimentos forenses e biológicos, reinterpreta retratos históricos, transformando-os em arquivos visuais complexos. Reunindo pequenos fragmentos, desde fotografias, recortes, cápsulas, etiquetas, fios de cabelo, entre outros elementos simbólicos, cada fragmento é organizado como se fosse uma grande amostra laboratorial.


Entre os seus trabalhos mais significativos encontram-se as séries Human Studies, Dutch Masters e Specimen Portraits.
Nos Human Studies, o artista desmonta fotografias e reorganiza-as em centenas de pequenos elementos (frascos, alfinetes entomológicos, etiquetas e objetos diversos), que evocam práticas laboratoriais. Estes fragmentos, organizados com precisão, sugerem que a identidade é um conjunto de dados, memórias e vestígios que nunca se apresentam na sua totalidade.
Na série Dutch Masters, Mapes revisita retratos históricos da pintura holandesa. Em vez de os reproduzir fielmente, analisa e reconstrói a imagem original para revelar aquilo que a tradição pictórica esconde. A desconstrução de obras canónicas permite questionar a própria história da arte, salientando como cada retrato transporta consigo convenções, escolhas e omissões.

Nos Specimen Portraits reforça a ideia de identidade como objeto de estudo. Cada retrato funciona como uma caixa-arquivo, onde a pessoa é transformada num conjunto de indícios cuidadosamente organizados. Trata-se de um processo que ultrapassa a superfície da imagem para explorar os mecanismos sociais, biográficos, materiais e simbólicos que contribuem para a construção do eu. Assim, Mapes não apenas questiona o que vemos, mas sobretudo o que não vemos quando olhamos para um retrato.


“Blauw Girl” (2018), pinning foam, insect pins, photographs, specimen containers, glass vials, fabric samples, acrylic paint, beads, human hair, doll hair, gelatin capsules, canvas, cotton thread, and rope



“Dutch Agatha” (2019), photographs, fabric samples, painted photographs, botanical specimens, spices, tea, tobacco, coffee, cast resin, clay, thread, hair, insect pins, capsules, specimen bags, and magnifying boxes



“Clelia” (2021), prints, photo prints, costume jewelry, fabric, hair, dried flowers, specimen bags, insect pins, gelatin capsules, thread, misc printed elements


Detail of “Clelia” (2021), prints, photo prints, costume jewelry, fabric, hair, dried flowers, specimen bags, insect pins, gelatin capsules, thread, misc printed elements



“Still Life specimens P4” (2021), archival prints, insect pins, map pins, magnifying boxes, specimen bags, dried fruit, and seeds


Detail of “Still Life specimens P4” (2021), archival prints, insect pins, map pins, magnifying boxes, specimen bags, dried fruit, and seeds

A busca do que existe “para além da superfície” revela uma dimensão crítica central na obra de Michael Mapes. Ao recusar a simplicidade da imagem plana, o artista expõe a complexidade da identidade humana e demonstra que o sujeito é sempre mais do que a sua aparência. As suas obras desafiam o espectador a reconsiderar a relação entre representação e verdade, sugerindo que a essência do indivíduo não reside num rosto, mas nas múltiplas camadas invisíveis que o compõem. Mapes transforma o retrato num processo de investigação, convidando-nos a participar na procura incessante pelo que permanece oculto.


Fisiologias do Som

A relação entre música e corpo sempre despertou interesse tanto na arte como na ciência. Na semana passada vi que um dos aspetos mais intrigantes dessa ligação é a forma como o ritmo musical pode dialogar directamente com os nossos batimentos cardíacos. A métrica que usamos para medir o andamento de uma música (BPM, batimentos por minuto) é a mesma utilizada para medir a frequência cardíaca, o que torna o paralelismo particularmente significativo. Num adulto saudável, o coração em repouso bate geralmente entre 60 e 100 bpm, uma faixa que curiosamente se cruza com muitos dos tempos musicais mais populares.




A psicologia da música tem mostrado que a preferência por certos ritmos pode estar ligada à nossa própria fisiologia. Muitas pessoas tendem a preferir músicas com tempos entre 70 e 100 ciclos por minuto, valores muito próximos da frequência cardíaca de repouso. Esta tendência foi observada num estudo de 1996, que propôs que os ouvintes podem sentir uma espécie de familiaridade corporal com ritmos que ecoam o seu próprio batimento. Outro estudo demonstrou que, durante o exercício, a preferência por músicas mais rápidas aumenta, quanto mais acelerado o coração, mais procuramos ritmos que acompanhem essa aceleração. Parece existir uma espécie de diálogo fisiológico entre o corpo e o ambiente sonoro.


Além da preferência, há evidências de que o tempo musical pode efetivamente influenciar o ritmo cardíaco. Músicas significativamente mais rápidas do que o batimento basal provocam aumentos mensuráveis da frequência cardíaca. Uma revisão mais recente deste estudo reforça esta ideia ao analisar como ritmos externos podem sincronizar ritmos internos como respiração e pulsação, embora os efeitos sejam mais marcantes em contextos de música ao vivo do que gravada. Isto sugere que a presença física do som, e talvez mesmo a dimensão performativa, amplifica a capacidade da música de influenciar o corpo.


No campo do desporto e do bem-estar, esta relação tem aplicações diretas. Experiências com caminhadas em passadeiras mostram que músicas rápidas podem elevar a frequência cardíaca e alterar a variabilidade cardíaca, modulando o esforço percebido. Em atletas, experiências com música interativa, ou seja, músicas que se ajustam em tempo real ao batimento cardíaco, demonstraram melhorias no desempenho e na forma como o esforço é sentido. Já no contexto de relaxamento, músicas com tempos mais lentos são frequentemente usadas para induzir calma, estabilizar a respiração ou criar um ambiente sonoro que desacelere o corpo.


Para os estudos de cultura visual, esta ligação tem implicações conceptuais interessantes. O ritmo cardíaco pode ser pensado como um “metrónomo interno” que, quando cria ressonância com o metrónomo externo da música, produz uma experiência sinestésica: o corpo sente aquilo que o ouvido organiza. A preferência musical pode então ser interpretada como expressão corporal, uma estética que nasce tanto da identidade fisiológica como da cultural. Tal como somos atraídos por certas imagens devido ao seu ritmo visual, somos atraídos por certos sons porque dialogam com o ritmo que carregamos dentro de nós. Esta dimensão incorporada da experiência musical aproxima o estudo da cultura visual de reflexões sobre corpo e perceção.

Ainda assim, nem todos os estudos chegam às mesmas conclusões. A sincronização rítmica não é uma regra universal e depende de múltiplos factores: o contexto, o tipo de música, a atenção da pessoa que está a ouvir e as suas diferenças individuais, desde condicionamento físico até emoções e enquadramento cultural. 


Refletindo sobre esta informação, a meu ver permanece clara a ideia de que música e batimento cardíaco estão envolvidos numa relação que é tanto biológica como cultural. Quando ouvimos música, não estamos apenas a interpretar sons através da mente, mas estamos também a responder com o corpo. Antes de compreendermos a música, sentimo-la.


Webgrafia:


pt.wikipedia.org/wiki/Batidas_por_minuto

pt.wikipedia.org/wiki/Coração

pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/8570336

pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16898279

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pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39781502

pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35457676

pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24767959

Entre Luzes e Margens: Retratos da Tóquio Noturna

 


fotografia de rua é uma prática que acompanha a comunidade, registando a cidade para além da superfície que o olhar comum alcança. É uma fotografia humana e crua, construída a partir do imprevisto, do encontro e da atenção ao quotidiano. Ao documentar pessoas, atmosferas e narrativas que muitas vezes passam despercebidas, este género fotográfico transforma a rua num espaço de observação profunda, onde cada gesto, luz ou sombra se torna parte de uma história maior: a vida urbana em toda a sua complexidade.

É neste contexto que surge o trabalho de Yusuke Nagata, fotógrafo de Tóquio cuja abordagem se inscreve nesta tradição de proximidade e autenticidade. Nagata dedica-se a observar a cidade de dentro, especialmente as zonas noturnas de Shinjuku, onde as fronteiras entre anonimato, vulnerabilidade e vitalidade se tornam particularmente evidentes. O seu olhar não procura o espetáculo, mas a verdade do momento. Ao aproximar-se das pessoas, ao conversar e permanecer nos lugares, o fotógrafo cria imagens que revelam camadas sociais e emocionais invisíveis no ritmo acelerado da cidade.


O seu projeto sobre os Toyoko Kids, adolescentes sem-abrigo de Kabukichō, exemplifica essa postura ética e sensível: mais do que documentar, Nagata testemunha. Paralelamente, a sua curiosidade técnica leva-o à experimentação, como na zine Beyond the Peephole, onde fotografa através de um olho mágico, distorcendo e reconstruindo a perceção do espaço urbano. A sua produção editorial inclui ainda 404 Not Found e ON THE SAME BOAT, publicações que reforçam a importância do objeto impresso como extensão da prática fotográfica.

Assim, o trabalho de Yusuke Nagata destaca-se por unir a essência da fotografia de rua humana, direta e observacional, a uma relação genuína com as comunidades que fotografa, produzindo imagens que expandem o entendimento do que significa viver e circular na cidade contemporânea.



sábado, 22 de novembro de 2025

A24, do independente ao influente

Em pouco mais de uma década, a A24 deixou de ser apenas uma distribuidora nicho para se transformar numa verdadeira força cultural. Provando que o cinema independente pode não só sobreviver no meio do domínio dos grandes estúdios, como também definir tendências, criar comunidade e gerar impacto global. 



Fundada em 2012 por Daniel Katz, David Fenkel e John Hodges, a A24 nasceu com uma missão simples e quase romântica, dar espaço a cineastas que queriam contar histórias fora dos modelos convencionais de Hollywood. No início, dedicaram-se apenas à distribuição, escolhendo filmes com uma voz autoral forte, obras pequenas, mas distintas.

Esta curadoria cuidadosa criou o primeiro pilar da identidade A24: a confiança. Cineastas independentes viram no estúdio um aliado que não só acreditava no seu trabalho, como sabia promovê-lo de forma criativa, entre o público, o nome A24 começou a funcionar como garantia de qualidade, ou, pelo menos, de originalidade.

O verdadeiro salto aconteceu quando a A24 se tornou também produtora. Nessa fase surgiram títulos que rapidamente entraram no imaginário cinéfilo global: MoonlightLady BirdHereditaryThe WitchThe Florida Project. De repente, a crítica falava da A24 como o novo farol do cinema de autor americano. Com Moonlight a conquistar o Oscar de Melhor Filme, ficou claro que o estúdio não era apenas “indie” , era relevante. E com Everything Everywhere All at Once a dominar a temporada de prémios, a A24 confirmou que podia competir, e vencer.




Hoje, a expressão “parece um filme da A24” já diz quase tudo. Há uma estética reconhecível, personagens vulneráveis, atmosfera densa, estranheza calculada, humor seco, risco criativo, liberdade formal. Mas mais do que isso, existe um ecossistema cultural em torno da marca, desde campanhas de marketing criativas, muitas vezes irónicas ou experimentais a presença digital forte, com humor inteligente e uma linguagem próxima do público jovem. Um filme da A24 não é apenas um filme, torna-se um símbolo de pertença, especialmente entre espectadores que querem escapar à lógica das franquias.




Com crescimento vem inevitavelmente debate. A A24 já recebeu investimento significativo, ampliou equipas, diversificou produtos, comprou espaços culturais e até explora tecnologias emergentes. Tendo isso em conta, muitos questionam se a A24 ainda é verdadeiramente “indie”, ou se se tornou uma “marca” que capitaliza o imaginário indie. É possível escalar sem perder autenticidade?

A independência pode já não ser a mesma de 2012, mas a influência nunca foi tão grande.


sexta-feira, 14 de novembro de 2025

 Kodak: A Empresa que colocou o mundo a fotografar

    Poucas marcas conseguiram moldar o modo como vemos o mundo tanto quanto a Kodak. A empresa norte-americana, fundada no século XIX, não só democratizou a fotografia, como deu origem a uma nova linguagem visual que atravessou gerações.





    Hoje, mais de 140 anos depois, o nome Kodak continua a evocar o poder das imagens e a nostalgia dos “momentos Kodak” expressão que, durante décadas, simbolizou o prazer simples de captar um instante.

 

O visionário George Eastman


 

  A história começa com George Eastman, um jovem bancário de Rochester, Nova Iorque, apaixonado por tecnologia. Em 1880, Eastman decidiu simplificar o processo fotográfico, até então complexo e caro. Começou a fabricar placas secas de gelatina, uma inovação que substituía o pesado equipamento das câmaras tradicionais.

Três anos depois, juntou-se ao empresário Henry Strong e fundou a Eastman Dry Plate Company. O objetivo era claro: tornar a fotografia acessível a qualquer pessoa.

 

“You press the button, we do the rest”

 

    Em 1888, nascia a primeira câmara Kodak. Era pequena, leve e vinha carregada com um rolo de filme para 100 exposições. O utilizador só precisava de carregar num botãoo resto, garantiam os técnicos da empresa, seria tratado pela Kodak.

O lema publicitário“You press the button, we do the rest”  resumia a revolução. Pela primeira vez, fotografar deixou de ser privilégio de profissionais. Tornou-se um passatempo popular, ao alcance de famílias, viajantes e curiosos.

O nome “Kodak”, criado por George Eastman, foi escolhido por ser curto, fácil de pronunciar e visualmente marcante. “Começa e termina com um K, uma letra forte”, explicava o fundador.




 

O rolo de filme que mudou o mundo

 

    No ano seguinte, em 1889, a Kodak apresentou o primeiro filme transparente em rolo comercial. Foi essa inovação que permitiu o nascimento da indústria cinematográfica. Sem o filme Kodak, o cinema como o conhecemos talvez nunca tivesse existido.

Durante o século XX, a empresa tornou-se sinónimo de imagem: das câmaras domésticas às produções de Hollywood, dos registos médicos às missões espaciais. A tecnologia da Kodak esteve presente em tudoaté nas primeiras fotografias tiradas em Marte.

 

O desafio digital

 

    Mas o sucesso também trouxe complacência. Apesar de ter desenvolvido a primeira câmara digital em 1975, a Kodak hesitou em apostar nessa tecnologia por medo de comprometer o seu lucrativo negócio de filmes fotográficos.

Quando o digital se impôs, já era tarde. A empresa entrou em crise, perdeu terreno para concorrentes mais ágeis e acabou por se reestruturar profundamente na década de 2010.

Hoje, a Kodak procura reinventar-se como empresa tecnológica especializada em imagem, impressão e materiais avançados. O seu foco está em setores como a impressão comercial, a imagem industrial e as soluções sustentáveis.

 

O legado que perdura

 

    Mais do que uma marca, a Kodak representa uma ideia: a de que qualquer pessoa pode guardar o seu próprio olhar sobre o mundo.
Da simplicidade de uma câmara de 1888 às imagens que viajaram até Marte, a história da Kodak é, a história de todos nós, de como aprendemos a congelar memórias e a transformá-las em pedaços de eternidade.