quinta-feira, 19 de maio de 2022

Palavra para libertar - O caos poético de Pasolini

Este ano celebra-se o centenário de nascimento do dramaturgo, poeta e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. Em Lisboa, a Culturgest assinalou a data trazendo para o palco o texto Orgia, encenada por Nuno M. Cardoso e apresentada entre os dias 7 e 9 de abril.

Para quem ainda não conhece a obra de Pasolini, uma referência inesquecível do cinema italiano do século XX, a peça Orgia segue a estética existente na dramaturgia do autor, ao apresentar um relato que passa de um lirismo insatisfeito às pulsões violentas em segundos. 

Encenada durante uma hora e meia na penumbra, a peça decorre num espaço cénico que retrata um lugar escuro, aparentemente húmido, circunscrito por um tipo de lama argilosa, na qual as personagens rastejam durante a performance. No prólogo observamos um homem (Albano Jerónimo), já morto, e que encara com insistente silêncio toda a plateia. Em seguida ele partilha os seus pensamentos, na tentativa de explicar entre o passado e o presente, como foram os momentos que antecederam ao seu suicídio.

Antes do início do espectáculo - (Marcação do Prólogo) Foto: Mariana Faria.


Este homem que vos fala pendurado de uma corda, com os ossos do pescoço partidos e já frio, foi aquele que se costuma dizer, um homem como todos os outros. Não foi poeta nem doido, nem miserável, nem drogado. Esteve com todos os outros do lado do poder (…)

Na orbita do poder há por isso a liberdade, a liberdade mais verdadeira, a dos animais, de quem não entra em choque com a sua própria existência (…)

Aceitei sem nenhuma reserva que existisse o poder, e adaptei-o com todo o conformismo necessário (…)

Fui mesmo daqueles que na sua liberdade não conheceu nem o amor, nem caridade, nem outras dificuldades da consciência… mas a paz deixa rastros sangrentos como a guerra (…)

Então como é que pude viver em paz, num período de paz no mundo? (…)

Eu fui um homem diferente em vida. É esta razão pela qual me perguntei como pude viver em paz no lado da ordem. É simples: escondendo de mim mesmo e dos outros a minha diversidade (…)

Tem a diversidade o direito a permanecer igual a si mesma? (…)

O que é então a diversidade se ela mesma não se tornar diferente de si própria? (…)

O que deve fazer quem é diferente? Negro, judeu, monstro… o que és obrigado a fazer?*

Sua mulher (Beatriz Batarda) encontra-se deitada em meio à lama onde quase não a podemos ver, ou talvez essa figura feminina não exista em todas as suas dimensões. Quando o diálogo entre os dois tem início, acompanhamos a relação mórbida e masoquista deste casal, que coloca em causa a hipocrisia da sociedade em que vive, através de questões associadas ao poder, ao desejo, à identidade, ao sexo e à solidão. Há uma simbiose de encanto e desprezo nesta relação. As palavras, em muitos momentos agressivamente proferidas pelo homem, acompanham-no na sua travessia pelo lodo pantanoso. A mulher, resignada, remexe e empurra alguns pedaços desta massa argilosa, carregando-os aleatoriamente no seu restrito vazio. Na espiral de submissão e dor, homem e mulher revelam ao público toda a intimidade e a origem dos seus pensamentos mórbidos.

Orgia - Foto: Raquel Balsa -  Culturgest.

Orgia - Foto: Raquel Balsa -  Culturgest. 

Orgia - Foto: Raquel Balsa -  Culturgest.
                  

Orgia - Foto: Raquel Balsa -  Culturgest.

Em Orgia é impossível ficar-se indiferente. Neste jogo de vida e de morte, as contradições estão sempre presentes, e o casal, aparentemente cansado, reflete a opressão do mundo social. É possível recordar Michel Foucault quando este refere que “é por isto precisamente que em cada momento da história a dominação se fixa num ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até nos corpos”. Esta afirmação encontra eco nas ideias do filósofo Jacques Rancière, ao defender que o teatro como prática comunitária propõe, através de seus vários signos, diferentes perceções, fazendo com que o espectador não esteja restrito a um papel passivo, mas que construa, através do objeto artístico, novas descodificações e transformações. Compreender para transformar é uma das possíveis propostas de Orgia.

Ao longo da encenação, as palavras ferem, enquanto os corpos se arrastam nas suas angústias e desencadeiam um conjunto de emoções no espectador. A atuação carregada de múltiplos sentidos traduz a realidade deste homem e desta mulher que clamam em êxtase os seus pensamentos atormentados, envoltos na densa névoa que também nos encobre. A música reforça o tom trágico da narrativa e nos transporta, juntamente com a desconstrução deste espaço cénico, para uma estética lírica do caos, potencializando o pensamento sobre as questões associadas às relações humanas. 

Este é o teatro da Palavra de Pasolini, que desafia o especador a questionar os seus referenciais sobre a autoridade existente nos microespaços sociais ou sobre o poder exercido nos lugares de assimetria, o qual entra em conflito com a diversidade existente em cada um de nós.



Referências:

Foucault, M. (1984). Microfísica do poder. Graal. Pp.16-17.

Rancière, J. (2010). O espectador emancipado. Orfeu Negro. Pp. 7-36.

*É possível ouvir o prólogo de Orgia através do link: https://www.culturgest.pt/pt/media/vortice-palavra/#Prologo

 




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