quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A poética de Manoel de Barros e a invenção das palavras

Uma didática da invenção

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c)Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro
Etc
Etc
etc
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
II
Desinventar objetos. O pente, por exemplo
Dar ao pente funções de não pentear
Até que ele fique à disposição de ser uma begônia
Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.
VI
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a voz
dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos
O verbo tem que pegar delírios.
IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz.
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
X
Não tem altura o silêncio das pedras.
Os trechos acima apresentam partes do poema "uma didática da invenção” retirado do Livro das Ignorãças do poeta brasileiro Manoel de Barros, nascido no Mato Grosso do Sul, Brasil, em 1916. Formado em Direito no Rio de Janeiro, posteriormente, em meados de 1960, muda-se para sua fazenda no Pantanal onde dedica-se a criação de gado. Como poeta, consagra-se ao longo das décadas 1980 e 1990 afirmando para o mundo sua poética singular e de estilo único, expandindo a linguagem para outros campos possíveis e imagináveis.
    A partir dos trechos deste poema em questão e de sua escrita própria e única, busco, atravessando os conceitos de Manoel de Barros, reflexões do campo da palavra; da linguagem e sua ressignificação; e da escrita como gesto de manifestação como mecanismo para percebemos o mundo em que vivemos. Mais ainda, o modo como o poeta "desutitliza" e "decompõe" os processos convencionais de construção poética, sobretudo, uma re-invenção do funcionamento da linguagem e de seu papel enquanto representação do real.  (2009, pg 125. Espaço e linguagem na poesia de Manoel de Barros: uma constante (des)aprendizagem. DIAS, Maria Heloísa Martins).
    Ao propor outro modo de observação das coisas e do entorno ao tentar desaprender, ressignificar e desnomear tudo aquilo que já existe, desafia o próprio processo de aprendizagem das coisas como são e como foram definidas desde o princípio. Ao sugerir dar ao pente as "funções de não pentear", propor em como "pegar na voz de um peixe" ou mesmo "usar palavras que não tenham idioma", instiga trazer com seu operar poético, a potência que existe por entre as frestas do dizer, do falar e do escrever. O interesse está no processo de “desnomear” as coisas para amplificar nossa capacidade de pensar/estar no mundo, desafiar aquilo que já tem nome; propor a experiência que vai contra a lógica e falar de um lugar onde a concepção do corpo-objeto-mundo, possa expandir. Apresentar as infinitas camadas que existem para além de seu nome. O que o define ? Cor. Forma. Função. O que representa. O que causa. Do que é feito. A palavra como lugar expandido de possibilidades e de constante desconstrução.
    Ao inventar um vocabulário inabitual e extraordinário, Manoel se apropria de palavras e as "deslimita" para além de suas definições inventadas a priori. Trata-se de desacomodar aquilo já conhecido, já dito ou falado. A poesia acontece ao reconstruir o modos-operandi dos signos linguísticos enquanto atravessa o mundo concreto e sua casualidade, o cotidiano e o banal, evidenciando o simples em uma escrita da mais sofisticada.


                                            "[(...) Outro desafio que sua poesia desperta é o que concerne à metalinguagem, procedimento constantemente posto em cena pelo poeta. A fusão visceral entre o real e a linguagem, palavras e coisas, colocadas numa sintaxe especial, impulsiona a poesia à auto-reflexividade, ou seja, a um espaço em que o dizer re-afirma sua própria feitura, explicitando-se como processo. Tornar a palavra uma coisa manipulável como um brinquedo e transformar as coisas existentes numa linguagem desconcertante se interpenetram no espaço da poesia. Assim, tanto em relação à língua enquanto instrumento do poético quanto em relação à realidade social retratada, o intuito é o mesmo: virar do avesso as convenções, criar o despropósito, que, para o poeta, “é mais saudável do que o solene”. Diz o poeta: “(Para limpar das palavras alguma solenidade – uso bosta.)” (2000, p.43)]." (2009, pg. 129. Espaço e linguagem na poesia de Manoel de Barros: uma constante (des)aprendizagem. DIAS, Maria Heloísa Martins).

    Para concluir com a citação acima, da tese "Espaço e linguagem na poesia de Manoel de Barros: uma constante (des)aprendizagem", ao falar da poética de Manoel, a escritora costura, essencialmente, os conceitos trazidos para a discussão desta publicação. O virar-do-avesso as convenções literárias é o que move o fazer do artista que, em sua poética, traduz o cotidiano e a própria vida em palavras inventadas e desaprende constantemente o próprio fazer, o próprio gesto criador. O ato poético acontece em cada suspiro perceptível que se dá na construção da palavra-língua-desejo-desenho. A escrita falando de si e a linguagem se desfazendo em poesia palavriada. O ato da escrita em sua maior potência em constante tecitura e desconstrução.


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