Depois de ver o espetáculo, fiquei vários dias a pensar em como uma obra clássica pode ser tão revolucionária. O que Daniel Gorjão fez não foi apenas uma adaptação – foi uma reinvenção completa daquilo que entendemos como teatro e dança. E o mais incrível? Tudo parece tão óbvio quando visto no palco. Por que é que nunca tínhamos visto um Lago dos Cisnes assim antes?
A relação com o público era diferente de tudo o que já tinha experienciado. Normalmente, nos espetáculos de dança, ficamos ali sentados, maravilhados com a técnica, mas distantes. Aqui, era impossível manter essa distância. Quando Inês Cóias olhava diretamente para a plateia enquanto dizia “vocês também sabem o que é isso”, era como se estivesse a falar com cada um de nós individualmente. Não havia como fugir – estávamos todos dentro daquele lago juntos.
Decidi ir ver este espetáculo com a intenção de observar como se trabalha a recriação de um clássico. Fui com essa curiosidade, claro, mas saí com muito mais. No contexto do meu percurso no mestrado em Educação Artística, interessa-me perceber como os dispositivos cénicos podem educar, provocar, transformar. E este espetáculo é, sem dúvida, um exemplo disso. Não há aqui didatismo. Há partilha. E talvez seja essa a forma mais eficaz de ensinar: não impor uma verdade, mas abrir espaço para que cada pessoa encontre a sua, dentro da experiência coletiva.
Para perceber o quão ousado é este Lago dos Cisnes, talvez seja útil recuar até à versão original, estreada em 1877 no Teatro Bolshoi, com música de Piotr Ilitch Tchaikovsky. O bailado clássico conta a história da princesa Odette, transformada em cisne por um feitiço, e do príncipe Siegfried, que se apaixona por ela. É uma narrativa de amor, tragédia e redenção, marcada por uma coreografia exigente e pela música intensa de Tchaikovsky, que se tornou um marco na história do ballet. Ao longo do tempo, O Lago dos Cisnes tornou-se símbolo de virtuosismo técnico e idealização estética – tudo o que, de certa forma, este espetáculo de Gorjão põe em causa.
Aqui, não há tutus nem linhas perfeitas. Há corpos reais, com marcas, hesitações e um desejo visceral de comunicar. Em vez da cisne perfeita, vemos uma multiplicidade de identidades e formas de estar no mundo, sem amarras a um enredo pré-definido. Esta nova versão desmonta o mito da perfeição e devolve-nos uma pergunta muito mais inquietante: o que é que fazemos com as nossas próprias fragilidades? Conseguimos aceitá-las? Mostrar-nos aos outros com as nossas falhas à vista?
Acho que o que mais me marcou foi perceber como o espetáculo falava sobre solidão numa sala cheia de gente. As cenas em que os intérpretes tentavam se conectar, mas sempre havia algo no meio – um movimento que não sincronizava, um olhar que não se encontrava, um abraço que não se completava. Quantas vezes não nos sentimos assim no dia a dia? Cheios de gente à nossa volta, mas ainda assim tão sozinhos?
Essa dimensão política do espetáculo – embora subtil – é inegável. Ao dar espaço a corpos diversos, a movimentos que falham, a vozes que tremem, a peça afirma que a cena contemporânea deve ser um reflexo plural do mundo, e não uma vitrine polida daquilo que é considerado “excelente” segundo cânones ultrapassados. Essa abertura estética e emocional aproxima-se muito da ideia de arte como espaço de escuta e de empatia – mais do que como forma de entretenimento.
E depois havia aqueles momentos de pura alegria. Quando Zé Couteiro começou a dançar sozinho, completamente fora do ritmo, mas com um sorriso tão genuíno que era impossível não sorrir com ele. Era como se, por alguns instantes, todos os padrões tivessem sido esquecidos e só restasse o puro prazer de se mover. Porque no fundo, não é disso que se trata a dança?
O trabalho de som merece outro destaque. As vezes em que ouvíamos os próprios intérpretes a respirar pesado, os pés a arrastar no chão, até os sons dos seus estômagos a roncar. Tudo isso nos lembrava que aqueles eram corpos reais, não máquinas de performance perfeita. E quando, no final, ouvimos as gravações das primeiras tentativas deles durante os ensaios – os erros, as gargalhadas, as frustrações – era como se nos mostrassem todo o processo, não apenas o produto final.
Acho que o que este espetáculo me ensinou foi que a arte não precisa ser perfeita para ser poderosa. Na verdade, é muitas vezes nas imperfeições que encontramos a verdade mais profunda. Quando Batata tentava fazer um movimento e não conseguia, mas tentava outra vez, e outra vez, aquilo era mais bonito do que qualquer pirueta perfeita. Porque era real. Era humano.
E no final das contas, não é isso que todos procuramos? Algo que nos fale da nossa humanidade compartilhada? Algo que nos lembre que, por mais que nos sintamos diferentes, estranhos, fora do padrão, não estamos sozinhos nisso?
Daniel Gorjão e a sua equipa criaram mais do que um espetáculo. Criaram um espaço onde todos os corpos – e todas as histórias que esses corpos carregam – são bem-vindos. E talvez seja isso que o teatro deva ser: não um templo da perfeição, mas um lugar onde podemos nos ver refletidos, em todas as nossas versões, e dizer “sim, eu também sou assim”.
Porque, no fundo, O Lago dos Cisnes de Daniel Gorjão não é sobre cisnes. É sobre nós. E sobre o imenso lago que cada um carrega cá dentro. Depois de ver esta peça, nunca mais vou olhar para um lago – ou para um espelho – da mesma maneira. E se isso não é o poder da arte, não sei o que é.