sábado, 30 de dezembro de 2017

DO OUTRO LADO DO ESPELHO Fundação Calouste Gulbenkian


Onde o real se encontra com o imaginário... 


Crystal Girl no.69 (2012), Noé Sendas
   
     Espelho – este é, literalmente, o protagonista da exposição patente na Galeria de Exposições Temporárias da Fundação Calouste Gulbenkian. Dificilmente se imaginaria que se pudesse construir toda uma mostra à volta de um simples objecto, mas a verdade é que o espelho surge e repete-se na iconografia da arte europeia desde, pelo menos, o final da Idade Média, sendo amplamente explorado pelo universo artístico nos mais variados suportes, seja na pintura, na escultura, na fotografia ou no cinema, até à actualidade. Literal na sua abordagem, ou não estaria a sala expositiva dividida por superfícies espelhadas, Maria Rosa Figueiredo, curadora e conservadora do Museu há 44 anos, propõe ao visitante o que Alice experimentou há mais de um século atrás: “Let’s pretend the glass has got all soft like gauze, so that we can get through (…)” (Lewis Carroll, Through the Looking Glass and What Alice Found There, 1871). 

     Exaustiva mas assertiva, a exposição Do Outro Lado do Espelho explora os diferentes modos de representação deste objecto na obra de arte. Cruzando arte contemporânea com arte antiga e abrangendo um leque variado de suportes, ela leva-nos numa viagem pelo universo fragmentado da reflexão, onde não faltam referências e alusões ao mito de Narciso ou às aventuras da heroína de Lewis Carroll, para onde remete, intencionalmente, o título da mostra. Omnipresente, o assunto persegue-nos por todos os cantos, impondo perpetuamente o confronto e a auto-análise em súbitos encontros com o Eu que nos acompanha. Os espelhos que dividem o espaço expositivo, tanto devolvem a nossa imagem como deixam antever o que está para além, fazendo do observador agente activo (desperto pela curiosidade) e parte integrante da narrativa. 

        À entrada, a estátua em bronze La Femme au Miroir (1931) de Ernesto Canto da Maya faz as honras da casa e denuncia esse eterno gesto feminino que veremos representado em quase todas as obras. Mais adiante, um espelho de René Lalique (1899), pertencente ao fundo do Museu, emoldurado por duas serpentes que tentam o visitante a deliciar-se no reflexo que condenou Narciso e a atravessar o pórtico que capturou Alice. Apercebemo-nos então que a exposição está dividida em cinco núcleos temáticos: O Espelho Identitário; O Espelho Alegórico; A Mulher em frente ao Espelho; Espelhos que Revelam e Espelhos que Mentem; e O Espelho Masculino. Ao longo das 69 obras que compõem os diferentes núcleos, desfilam nomes como James Abbott McNeill Whistler, Jorge Varanda, Simon Vouet, Ana Vieira, Ambrose McEvoy, Paula Rego, Eduardo Luiz, Noé Sendas, Richard Hamilton, Daniel Blaufuks, entre outros. 

       Particularmente interessante no espaço dedicado ao espelho enquanto mediador na consciencialização do Eu, é o vídeo de Victor Kossakovsky, Svyato (2005): durante dois anos, o cineasta cobriu os espelhos da sua casa para que pudesse proporcionar ao seu filho a experiência única do primeiro confronto com a sua própria imagem. O filme, de cerca 30 minutos, mostra o espanto da criança perante a sua materialidade. O mesmo espanto manifestado por Henry Russel, a criança representada na pintura adjacente, do século XVIII, por George Romney. Verdadeira “armadilha de aparências”, o espelho foi sempre intérprete de várias analogias e atributo de diferentes alegorias no mundo das artes. Em O Espelho Alegórico, este aparece como metáfora de vícios e virtudes, da Vaidade à Prudência, da Ciência à própria morte. De destacar as iluminuras deste núcleo, em particular, O Livro de Horas de Afonso I d’Este, do início do século XVI, que representa a figura da Morte inserida na letra que dá início ao texto introdutório do Ofício dos Mortos: um esqueleto vestido de azul, segura um espelho evocando a efemeridade da vida humana. 

Imagem no Espelho (1974), Richard Hamilton
      Entre um Almada Negreiros e um painel de azulejos do século XVIII, atribuído ao Mestre P.M.P, o núcleo seguinte é presenteado com mais um vídeo que solta o sorriso a qualquer visitante – Mirrors of Bergman: de Kogonada, mostra excertos de filmes de Ingmar Bergman, nos quais mulheres se olham ao espelho. Imediatamente ao lado, em Espelhos que Revelam e Espelhos que Mentem, o mesmo objecto devolve-nos uma realidade inversa, que pode ser tão verdadeira quanto falsa. Aqui reside o irreal, o absurdo, o manipulado e o multiplicado. Algumas anamorfoses do século XVIII reforçam o sentido deste núcleo. Nele, incluem-se peças inspiradas, mais uma vez, no universo de Alice, como as pinturas de Eduardo Luiz e algumas fotografias de Cecília Costa e Noé Sendas, cuja Crystal Girl no.69 (2012) dá rosto ao cartaz da exposição. No final deste núcleo, um auto-retrato de Arpad Szenes (1930), no qual a cabeça do artista é representada pelo espelho que reflecte uma figura feminina, faz a ligação com o último espaço da mostra, dedicado ao universo masculino e ao uso que fazem do espelho, sobretudo como auxiliar dos seus auto-retratos, como é o caso de Jorge Molder, Richard Hamilton e Daniel Blaufuks. De destacar Mãe (1997) no centro deste núcleo, pintura a pastel de Paula Rego, única mulher neste rol, onde coloca o protagonista de O Crime do Padre Amaro olhando para o seu reflexo, enquanto experimenta uma saia. É com humor e alguma ironia que as mulheres dão lugar aos homens, num espaço habitualmente associado à intimidade feminina. À saída, são poucos os que reparam no grande espelho que reflecte as últimas impressões da exposição...

Sem comentários:

Enviar um comentário