domingo, 27 de novembro de 2016

Fever Room - Apichatpong Weerasetakhul

 



   No âmbito da 16ª edição do Festival Temps d’Image foi apresentada, nos passados dias 29 e 30 de Outubro no São Luiz Teatro Municipal, uma projecção-performance com o título Fever Room, um dos mais recentes trabalhos do cineasta e artista tailandês Apichatpong Weerasetakhul. Com estreia mundial no dia 4 de Setembro do ano passado, no Asian Arts Theatre em Gwangiu na Coreia do Sul, esta foi a útlima oportunidade para o ver na Europa, pelo menos por agora. Este é o primeiro trabalho que Apichatpong aprontou para uma sala de teatro, algo fora do seu contexto de trabalho e que suscita já alguma curiosidade no espectador.

    Um frequentador do São Luiz, ou pelo menos alguém que já lá tenha ido uma vez e tenha percebido o espaço, apercebe-se, aquando da entrada para a sala, de que o caminho tomado não será o que se espera usualmente. A suspeita de que algo de diferente se passará é, à partida, ligeiramente sugerida. Logo através da luz do corredor que dá acesso ao local de apresentação, Apichatpong dá-nos as boas-vindas ao imaginário do espectáculo. Num corredor com as luzes principais do tecto apagadas, através de uns candeeiros de luz mais fraca colocados no chão, somos guiados  como num subterrâneo a um espaço escuro que notoriamente não tem cadeiras suficientes para o público presente e tendo assim que usar o chão percebemos que o conforto de uma cadeira almofadada não vai estar presente durante os 80 minutos do espectáculo. A nossa consciência do espaço fica assim atordoada, deixando-nos por um lado indefesos, em relação à nossa condição de espectadores, mas por outro libertos dos preceitos e preconceitos que envolvem o assistir a um espectáculo num teatro e à nossa posição no espaço de apresentação de cinema. Ficamos então mergulhados na escuridão necessária à experiência e somos induzidos numa espécie de estado de vigília que só é possível quando dormimos e sonhamos, quando não controlamos os acontecimentos conscientemente e de forma activa. Tal como quando dormimos, a passividade do corpo nos permite ter acesso aos sonhos e às relações mais profundas da nossa experiência enquanto seres vivos e pensantes, em que nada disso pode ser controlado, assim é a posição em que ficamos aquando da entrada para este espectáculo.


    Surgindo no seguimento do seu último filme, Cemetery of Splendor (trailler aqui), o cineasta nascido em Hong Kong, coloca-nos no meio (talvez literalmente) dos assuntos que habitam o seu imaginário e que vão sendo recorrentes no seu trabalho. Assim como neste último filme, Fever Room está minado pela mistura das memórias do próprio Apichatpong e dos dois protagonistas do filme, Jenjira (Jen) e Banlop (Itt), que protagonizaram também Cemetery of Splendor. Esta mistura permite que sejamos inseridos em camadas de realidade e ficção que normalmente habitam os trabalhos do realizador. As coisas não se separam da sua história individual e colectiva e da memória que carregam e das relações mais profundas que estabelecem connosco. Assim, tal como em Cemetery of Splendor tudo se desenvolve através desta relação dos actores com as memórias do cineasta em Khon Kaen, onde cresceu. Os dois actores partilham as suas memórias através dos seus sonhos, num estado de sono profundo. Jen enquanto aguarda uma operação a uma doença que sabemos no filme anterior e Itt, um militar, que sofre de uma doença de sono provocada pelo distúrbio causado aos antepassados que habitam o local de umas obras protagonizadas pelo estado de ditadura militar no lugar do hospital em que se encontram. Numa descrição de um lugar que está prestes a desaparecer às mãos desse estado ditatorial tailandês, o estado de sono, desprovido naturalmente da visibilidade de luz é o mote para o contacto da interioridade inconsciente quando sonhamos. O sonho torna-se o lugar de refúgio de uma realidade decadente e em constante colapso. A abordagem, que se aparenta ligeira, em relação ao estado político tailandês, que transita de um filme para o outro, faz-nos questionar o adormecimento em relação  a medidas de construção política no presente e o impacto que estas trazem para a nossa história colectiva.


http://www.nanterre-amandiers.com/en/2016-2017-season/fever-room/
http://www.kfda.be/en/program/fever-room
 

    O pressentimento de algo a descer da teia que encima o espaço de cena, indica-nos o inicio desta projecção-performance. Esta é feita através de quatro telas de projecção que se vão fazendo notar, subindo e descendo da parte superior da sala. O decorrer do espectáculo vai-nos emergindo com estas projecções que nos aparecem de frente, tal como no cinema, mas também  dos lados, assim como pelo som que vai saindo de todos os cantos da sala e que nem sempre tem uma coordenação directa com as imagens apresentadas. Assim permite-nos manter a memória activa em relação a imagens anteriores não dando espaço ao amolecimento da mente. Sensivelmente perto do final somos surpreendidos pela subida da “parede” à nossa frente e descobrimos que estamos colocados no palco do teatro e que sempre tivemos em presença oculta da plateia vazia. Depois da última imagem do filme, antes desta subida, nos deixar, uma rua à noite em que chove fortemente e existe um candeeiro exterior que tremelica, vemos uma espécie de réplica dessa imagem com um candeeiro semelhante colocado no meio da plateia que também tremelica. Não deixando cair a relação com as imagens do filme, e com uma certa mestria técnica de quem gosta de ter o controlo sobre as situações que produz, Apichatpong e a sua equipa técnica, apresentam-nos um espectáculo protagonizado por elementos técnicos utilizados na produção de efeitos cenográficos no teatro, um foco de luz com grande alcance e algumas máquinas de produção de fumo artificial. Somos colocados então num vórtice de luz que nos transporta para uma experiência sensorial hipnotizante em que nos sentimos a ser sugados para dentro daquele universo, como se de personagens do filme nos tratássemos. Os sonhos são a luz do estado de sono assim como a luz é a razão pela qual as imagens no cinema são possíveis.
    Esta performance mecânica, e estando a audiência em cima do palco, para além de um certo estado de êxtase em relação aos efeitos que vemos, retira-nos de algum modo a passividade enquanto espectadores de um filme e coloca-nos na posição de actores principais, testando a nossa capacidade de reacção a um acontecimento não muito comum numa sala de teatro.
Como o próprio refere, citado num artigo da revista Visão (ver aqui): “ Quando estamos a ver cinema podemos ser um pouco passivos, mas quando passamos para as artes visuais o nosso cérebro é activado. Aqui combinamos o activo e passivo.”


https://www.dropbox.com/sh/gjkiwam1fy2vjso/AAAAxkWORuaR9Q0vZotGMLXia/Nanterre%202016/By%20Martin%20Argyroglo/All?dl=0

https://www.dropbox.com/sh/gjkiwam1fy2vjso/AAAAxkWORuaR9Q0vZotGMLXia/Nanterre%202016/By%20Martin%20Argyroglo/All?dl=0


    Apichatpong propõe-nos a criar-mos a nossa própria maneira de estar na vigília do sono através da possibilidade de nos fazer sonhar naquele momento. Põe-nos, por assim dizer, num estado, tal como no filme, de sono profundo, num êxtase do sonho e de partilha colectiva daquele momento, enquanto a vida fora do teatro não pára e as construções que estão a ser feitas nos implicam a nós directamente. Assim como os rapazes no rio Mekong, também personagens do filme, que vêm os barcos passar e os que se aventuram numa viagem pelo rio. A vida não pára enquanto alguns seguem nela e outros olham apenas. Somos colocados perante um estado quase existencialista com apenas uma luz ao fundo do túnel (da sala). A luz não atravessa os corpos e o fumo toca-nos e mistura-se com a leveza que lhe é normal. Assim como as nossas memórias que se vão misturando com o decorrer da nossa existência e nos formam numa trama de relações infindas entre o passado e o presente e que nos fazem procurar um futuro incerto. Assim como o homem que anda na caverna com pouca luz à procura de alguma coisa, e que quando a cortina desce e temos a configuração da sala como a conhecemos primeiramente, e num ecrã de novo, vemos que dorme em cima de uma rocha na caverna em que estava (assim como nós estamos sentados no chão do palco do teatro), toma refúgio no sono, assim como Jen e Itt, nesse lugar de resistência secreta em que acedemos ao nosso íntimo inconsciente. 


http://bombmagazine.org/article/8429107/apichatpong-weerasethakul

http://www.kickthemachine.com/page80/page59/page69/index.html


    Esta intensa performance vai mais além das fronteiras normais do cinema. Utilizando todos os meios, lados e cantos que um teatro e o seu espaço tem à disposição move-se numa amplitude a 360º graus assim como as imagens dos sonhos quando dormimos. Num mundo em que forças invisíveis nos assolam a consciência entre a realidade mais prosaica das imagens que nos apresenta o filme, Apichatpong faz da sala do teatro a caverna de onde as imagens saltam da nossa memória e para ela e onde as sombras do passado vêm à vida outra vez, como catalisador febril na demanda da procura de um sentido no mundo e na vida.


https://www.dropbox.com/sh/gjkiwam1fy2vjso/AAAAxkWORuaR9Q0vZotGMLXia/Nanterre%202016/By%20Martin%20Argyroglo/All?dl=0


    O cineasta faz-nos assim um convite à recriação da maneira como abordamos as imagens e àquilo que elas nos trazem individualmente. Não podemos dormir na significação de algum modo ingénua com que primeiramente somos abordados pelas coisas. “Precisamos de nos libertar do significado das imagens.”, diz Apichatpong. Precisamos deixar que o sonho constantemente as reinvente e nos transporte para outros estados de consciência sobre nós e as nossas relações e construções no mundo .

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 Nota:
  • As imagens apresentadas são retiradas de diversas fontes online, presentes como legenda de cada imagem, devido à impossibilidade do espectáculo ser fotografado pela audiência.





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