domingo, 27 de novembro de 2016

4.56.20 JOÃO TABARRA - SOLAR, GALERIA DE ARTE CINEMÁTICA- VILA DO CONDE

     
4.56.20.
JOÃO TABARRA
SOLAR, GALERIA DE ARTE CINEMÁTICA - VILA DO CONDE

foto 1




 
A exposição 4.56.20 do artista João Tabarra patente em Vila do Conde, a qual tive o prazer de percorrer numa visita guiada pelo autor na companhia de Nicole Brenez, historiadora e investigadora com quem João Tabarra já tinha colaborado anteriormente no seu último trabalho intitulado Biotope. (e que continuam atualmente a desenvolver projetos), é uma instalação site specific na qual o rigor da montagem e a extrema atenção ao detalhe estão, como sempre presentes na obra deste autor.
Nicole Brenez desafiou João Tabarra a trabalhar sobre o negativo do trailer do filme Numero Deux de Jean Luc Godard (datado de 1975) material esse que foi encontrado na sua caixa original em negativo. Mais tarde, depois de ter tomado contacto com o ensaio de Nicole  “Under Reconstruction” (de 2012) (sobre a utilização do negro na obra de Godard.) o autor propôs-lhe a utilização das 7 questões referidas nesse ensaio, derivando-as para o seu trabalho , continuando no entanto a usá-las como modo de questionamento do cinema e da imagem, no contexto da sua investigação.

Numa entrevista concedida por João Tabarra em 2014 da série ”If you walk the Galaxies” realizado por Cláudia Marques Santos(1) o autor coloca em evidência a necessidade de pedir tempo ao recetor, ao público. É precisamente esta a primeira premissa que proponho para percorrer as várias salas desta instalação: a de nos convocarmos para esse tempo necessário para uma “imersão” na obra. A convocação desse tempo é em si mesmo um ato poético, um ato de resistência face ao esmagamento do conceito espaço/tempo presente na contemporaneidade.
É claro o rigor que o artista dedicou ao mais ínfimo pormenor da montagem, ao nível das projeções e das transições sonoras que ocorrem de sala para sala. A tensão que é criada com essas transições sonoras acentua o percurso e o espaço, enquanto instalação, unindo todo o processo. De salientar por exemplo a construção de pequenas passagens entre as salas que facilitam a receção, permitindo a perceção imediata ao espectador da narrativa continua quer em imagem quer ao nível do som.

foto2  Montagem da Instalação 

Foto 3 Montagem da Instalação
 
Foto 4 Montagem da Instalação
 
 
As 7 frases do texto de Nicole Brenez são ao mesmo tempo uma afirmação e um questionamento, fato que é explorado por João Tabarra para inquirir sobre as possibilidades do cinema, do seu peso e da sua força, utilizando a linguagem e as ferramentas do próprio cinema como forma de o questionar face ao momento atual ,em que as imagens se encontram submergidas na linguagem do espetáculo. Ao trabalhar sobre as imagens de um trailer e não do filme na sua totalidade, o autor centra a sua atenção na imagem, a qual não possuindo ainda a narrativa de um filme, não contando qualquer história, adquire força própria, abrindo um vasto campo de possibilidades de exploração, na melhor tradição do cinema experimental do qual “Tom Tom The Piper’s Son” de Ken Jacobs é certamente um dos expoentes.
A primeira imagem da instalação, a qual poderá funcionar como introdução, é sintomática: um filme onde uma menina escreve num quadro a frase ”Avant d’être née, j’etais mort”, (antes de ter nascido, eu estava morta) filme esse que apenas pode ser visto através de um vidro, como se de uma montra se tratasse obrigando o espectador a usar a sua própria sombra como acesso ao mesmo. A imagem é replicada no ecrã ouvindo-se o som da estática como fundo sonoro.” Romper a cadeia de representação” é a questão levantada neste 1.º filme, no qual o autor nos convoca de forma irreversível para um processo de fragmentação/desfragmentação, fim e reinício que nos acompanha ao longo de todo o percurso expositivo, mantendo assim o ”modos operandi” de Jean Luc Godard.
 

Foto 5 Avant d'être née, j'etais mort
 
Proporcionar um momento de reflexão” é uma questão levantada num dos filmes instalados na 1.ª sala, composto por material que normalmente não é utilizado na montagem cinematográfica final (banda sonora e filme virgem) e pelos números 3, 4 e 5 que aparecem de forma aparentemente aleatória. Aqui o autor utiliza o som como se uma imagem fosse, construindo em jeito de melodia um discurso e uma imagem com sons da própria película ao passar na máquina de projetar. Por outro lado também se apropria do texto original que pudemos escutar como um discurso que anuncia o que poderá ser um filme, operando minuciosamente no corte de palavras, frases e na sua reorganização, devolvendo ao espetador mais uma vez a possibilidade de interrogar imagem e imagem/cinema.“On peut regarder… pour voir l’incroyable… Et c’est quoi l’incroyable? L’incroyable c’est ce qu’on ne voit pas” diz a voz de Sandrine. As imagens adquirem assim peso de representação e exploração no campo cinematográfico. Nesta mesma sala, do outro lado, “respondendo” a outra das questões colocadas “Construir um lugar para as imagens que ainda não sabemos como produzir” uma mulher idosa cortando uma cenoura, num loop apenas quebrado por um sobressalto na imagem. De resto… apenas estática. Estes dois filmes dialogam na mesma sala. Começamos igualmente a perceber a importância do rasto sonoro que acompanha todo o percurso da instalação, sobretudo quando entramos na sala seguinte. Aí a questão colocada “Simbolizar o modo como a ideologia obscurece o mundo” é interpretada com um filme em que decorrem dois momentos da mesma ação, no entanto “separados” pela utilização de tempos diferentes, no quais podemos ver Sandrine masturbando-se. Os dois filmes mostram a mesma ação com a diferença de um movimento do braço de Sandrine no filme mais pequeno, o qual se por um lado introduz um elemento de instabilidade face ao loop da projeção maior, por outro introduz igualmente um gesto de uma grande beleza formal. Nesta instalação, a (im)possibilidade da intimidade e a sua interrogação  é levada ao limite: uma imagem intimista e privada é “invadida” pelo som de pássaros, primeiramente usados como elemento sedutor e melódico, como num conto encantado. Esse som é desenvolvido num crescendo ao qual se juntam gritos das crianças, sons de rua e do interior da casa e atinge o auge até se tornar insuportável a existência de intimidade entre essas 4 paredes. O restante espaço expositivo é contaminando por essa teia sonora sem que nunca se torne intrusivo. É sem dúvida uma das propostas mais bem conseguidas de toda a exposição, e um exemplo de como o artista, segundo as suas palavras ”através da técnica de produção e montagem tento criar um ritmo próprio, no qual o prolongamento dos gestos e do som abre a possibilidade de construção de um espaço de estudo complementar. Pedir tempo, oferecer tempo…”. Ou segundo as palavras de Nicole Brenez “perceber que a imagem trabalha ininterruptamente em rede com tantas outras”.
Nicolo Brenez e João Tabarra
 
 
Numa possível última imagem desta instalação duas crianças, numa varanda olham para algo que não vemos num momento de aparente simplicidade: ouvem-se as palavras: “Le cinema aussi… il montre ça”.Em conversa com o autor e com Nicole Brenez é referido que “uma das maiores forças deste trabalho é todo o processo de fragmentação/reconstrução e reunião de um discurso, o qual, depois dessa reconstrução, lhe dá um novo sentido. Esse novo sentido permite-nos continuar a afirmar a não inocência das imagens”. É, pois, este, o território de interrogação, de abertura de possibilidades, de exploração onde todas as perguntas são elas próprias hipóteses narrativas numa continuidade infinita do estudo das imagens.
Foto 7 Le cinema aussi...il montre ça...
 
NOTA 1 Entrevista Completa “If you walk the galaxies- João Tabarra ) https://www.youtube.com/watch?v=yJ_laMLcsmk
As fotos 2, 3 ,4 , 6  e 7 pertencem ao arquivo pessoal de João Tabarra e  foram gentilmente cedidas  pelo artista
FB
Novembro 2016

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