4.56.20.
JOÃO TABARRA
SOLAR, GALERIA DE ARTE
CINEMÁTICA - VILA DO CONDE
foto 1 |
A exposição 4.56.20 do artista João Tabarra patente em Vila
do Conde, a qual tive o prazer de percorrer numa visita guiada pelo autor na
companhia de Nicole Brenez, historiadora e investigadora com quem João Tabarra
já tinha colaborado anteriormente no seu último trabalho intitulado Biotope. (e
que continuam atualmente a desenvolver projetos), é uma instalação site specific na qual o rigor da
montagem e a extrema atenção ao detalhe estão, como sempre presentes na obra
deste autor.
Nicole Brenez desafiou João Tabarra a trabalhar sobre o
negativo do trailer do filme Numero Deux de Jean Luc Godard (datado de 1975) material
esse que foi encontrado na sua caixa original em negativo. Mais tarde, depois
de ter tomado contacto com o ensaio de Nicole “Under Reconstruction” (de
2012) (sobre a utilização do negro na obra de Godard.) o autor propôs-lhe a
utilização das 7 questões referidas nesse ensaio, derivando-as para o seu trabalho
, continuando no entanto a usá-las como modo de questionamento do cinema e da
imagem, no contexto da sua investigação.
Numa entrevista concedida por João Tabarra em 2014 da série ”If you walk the Galaxies” realizado por
Cláudia Marques Santos(1) o autor coloca em evidência a necessidade
de pedir tempo ao recetor, ao público. É precisamente esta a primeira premissa
que proponho para percorrer as várias salas desta instalação: a de nos
convocarmos para esse tempo necessário para uma “imersão” na obra. A convocação
desse tempo é em si mesmo um ato poético, um ato de resistência face ao
esmagamento do conceito espaço/tempo presente na contemporaneidade.
É claro o rigor que o artista dedicou ao mais ínfimo pormenor
da montagem, ao nível das projeções e das transições sonoras que ocorrem de
sala para sala. A tensão que é criada com essas transições sonoras acentua o
percurso e o espaço, enquanto instalação, unindo todo o processo. De salientar
por exemplo a construção de pequenas passagens entre as salas que facilitam a
receção, permitindo a perceção imediata ao espectador da narrativa continua
quer em imagem quer ao nível do som.foto2 Montagem da Instalação |
Foto 3 Montagem da Instalação |
Foto 4 Montagem da Instalação |
As 7 frases do texto de Nicole Brenez são ao mesmo tempo uma
afirmação e um questionamento, fato que é explorado por João Tabarra para inquirir
sobre as possibilidades do cinema, do seu peso e da sua força, utilizando a
linguagem e as ferramentas do próprio cinema como forma de o questionar face ao
momento atual ,em que as imagens se encontram submergidas na linguagem do
espetáculo. Ao trabalhar sobre as imagens de um trailer e não do filme na sua
totalidade, o autor centra a sua atenção na imagem, a qual não possuindo ainda
a narrativa de um filme, não contando qualquer história, adquire força própria,
abrindo um vasto campo de possibilidades de exploração, na melhor tradição do
cinema experimental do qual “Tom Tom The
Piper’s Son” de Ken Jacobs é certamente um dos expoentes.
A primeira imagem da instalação, a qual poderá funcionar como
introdução, é sintomática: um filme onde uma menina escreve num quadro a frase
”Avant d’être née, j’etais mort”,
(antes de ter nascido, eu estava morta) filme esse que apenas pode ser visto
através de um vidro, como se de uma montra se tratasse obrigando o espectador a
usar a sua própria sombra como acesso ao mesmo. A imagem é replicada no ecrã
ouvindo-se o som da estática como fundo sonoro.” Romper a cadeia de representação”
é a questão levantada neste 1.º filme, no qual o autor nos convoca de forma
irreversível para um processo de fragmentação/desfragmentação, fim e reinício
que nos acompanha ao longo de todo o percurso expositivo, mantendo assim o ”modos
operandi” de Jean Luc Godard.
Foto 5 Avant d'être née, j'etais mort |
Proporcionar um momento de reflexão” é uma questão levantada
num dos filmes instalados na 1.ª sala, composto por material que normalmente
não é utilizado na montagem cinematográfica final (banda sonora e filme virgem)
e pelos números 3, 4 e 5 que aparecem de forma aparentemente aleatória. Aqui o
autor utiliza o som como se uma imagem fosse, construindo em jeito de melodia
um discurso e uma imagem com sons da própria película ao passar na máquina de
projetar. Por outro lado também se apropria do texto original que pudemos
escutar como um discurso que anuncia o que poderá ser um filme, operando
minuciosamente no corte de palavras, frases e na sua reorganização, devolvendo
ao espetador mais uma vez a possibilidade de interrogar imagem e imagem/cinema.“On peut regarder… pour voir l’incroyable… Et
c’est quoi l’incroyable? L’incroyable c’est ce qu’on ne voit pas” diz a voz
de Sandrine. As imagens adquirem assim peso de representação e exploração no
campo cinematográfico. Nesta mesma sala, do outro lado, “respondendo” a outra
das questões colocadas “Construir um lugar para as imagens que ainda não
sabemos como produzir” uma mulher idosa cortando uma cenoura, num loop apenas quebrado por um sobressalto
na imagem. De resto… apenas estática. Estes dois filmes dialogam na mesma sala.
Começamos igualmente a perceber a importância do rasto sonoro que acompanha
todo o percurso da instalação, sobretudo quando entramos na sala seguinte. Aí a
questão colocada “Simbolizar o modo como a ideologia obscurece o mundo” é interpretada
com um filme em que decorrem dois momentos da mesma ação, no entanto
“separados” pela utilização de tempos diferentes, no quais podemos ver Sandrine
masturbando-se. Os dois filmes mostram a mesma ação com a diferença de um
movimento do braço de Sandrine no filme mais pequeno, o qual se por um lado introduz
um elemento de instabilidade face ao loop
da projeção maior, por outro introduz igualmente um gesto de uma grande beleza
formal. Nesta instalação, a (im)possibilidade da intimidade e a sua
interrogação é levada ao limite: uma
imagem intimista e privada é “invadida” pelo som de pássaros, primeiramente
usados como elemento sedutor e melódico, como num conto encantado. Esse som é
desenvolvido num crescendo ao qual se juntam gritos das crianças, sons de rua e
do interior da casa e atinge o auge até se tornar insuportável a existência de
intimidade entre essas 4 paredes. O restante espaço expositivo é contaminando
por essa teia sonora sem que nunca se torne intrusivo. É sem dúvida uma das
propostas mais bem conseguidas de toda a exposição, e um exemplo de como o
artista, segundo as suas palavras ”através da técnica de produção e montagem tento
criar um ritmo próprio, no qual o prolongamento dos gestos e do som abre a
possibilidade de construção de um espaço de estudo complementar. Pedir tempo,
oferecer tempo…”. Ou segundo as palavras de Nicole Brenez “perceber que a
imagem trabalha ininterruptamente em rede com tantas outras”.
Nicolo Brenez e João Tabarra |
Numa possível última imagem desta instalação duas crianças,
numa varanda olham para algo que não vemos num momento de aparente simplicidade:
ouvem-se as palavras: “Le cinema aussi…
il montre ça”.Em conversa com o autor e com Nicole Brenez é referido que “uma
das maiores forças deste trabalho é todo o processo de
fragmentação/reconstrução e reunião de um discurso, o qual, depois dessa
reconstrução, lhe dá um novo sentido. Esse novo sentido permite-nos continuar a
afirmar a não inocência das imagens”. É, pois, este, o território de
interrogação, de abertura de possibilidades, de exploração onde todas as
perguntas são elas próprias hipóteses narrativas numa continuidade infinita do
estudo das imagens.
Foto 7 Le cinema aussi...il montre ça... |
NOTA
1 Entrevista Completa “If you walk the galaxies- João Tabarra )
https://www.youtube.com/watch?v=yJ_laMLcsmk
As
fotos 2, 3 ,4 , 6 e 7 pertencem ao arquivo pessoal de João Tabarra
e foram gentilmente cedidas pelo artista
FB
Novembro 2016
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