segunda-feira, 20 de maio de 2024

(M1 - 15194)

Exposição de pintura

Luis Guerra: “Múmias ou como homenagear um corpo”
Estúdios Victor Cordon, Lisboa
24 fevereiro até 17 Maio 2024


Curadoria de Carlota Lagido

É só sair da Faculdade e virar duas vezes à direita. Poucos passos depois, com atenção para não deixar derrapar as solas na polida calçada, chegamos. Estranhamos deixar o sol e entrar na penumbra. Esperamos uns segundos até a retina se ajustar. Perguntamos se podemos entrar para ver a exposição do Luís Guerra e o sorriso da vigilante oferece-nos as boas-vindas aos estúdios Vitor Cordon, autorizando-nos com leveza. Entramos como que num útero.

Dificilmente dissocio o efeito que o espaço expositivo tem na obra. É, neste caso, flagrante e absolutamente simbólica esta ligação. Um estúdio de dança que acolhe uma exposição de pintura de um bailarino. O denominador comum não podia ser mais óbvio. Trata-se do corpo. O corpo como sagrado a homenagear.


E o ritual da vida e da morte, como forma de celebrar uma existência alargada desse corpo.

A exposição encontra-se no átrio de entrada dos Estúdios Vitor Cordon e compõe-se de 8 grandes telas com aproximadamente 2 metros por 1 metro que se dispõem em dois grupos de três elementos frente a frente nas paredes laterais, e mais uma em cada lateral do arco que dá acesso ao resto do edifício e que fica em frente à entrada - como dois guardiões a observar quem passa.


Estão todas penduradas a uma altura que estimo em 3 metros, o que lhes confere monumentalidade, e desencostadas das paredes, o que nos transmite leveza e suspeita sobre o suporte, uma vez que a tela suspensa se assemelha a papel. Efetivamente, as duas telas junto ao arco (no segundo momento da minha visita, onde captei a imagem acima, uma das telas havia sido removida) são papel e as restantes telas de pintura, tendo assim sido, a meu ver, bem conseguida uma ilusão de homogeneização dos trabalhos e unidade no conjunto das obras.





Destaco o poder da imagem, que neste caso específico, nos oferece uma extensão de permanência do corpo para além da sua extinção. Como um vestígio que nos transporta ao antigo Egito e nos traz de volta ao presente, à contemplação e à valorização do nosso corpo enquanto elemento finito por um lado, mas transcendente por via da imagem impressa, por outro.




Refiro imagem impressa, porque efetivamente, se tratam de telas de pintura em grande formato mas tendo por base monotipia, que é uma técnica de impressão de apenas uma tiragem. Sobre este detalhe pode-se então dizer que o material se relaciona com o conteúdo da obra de forma eficaz, já que também cada um dos nossos corpos é único e singular, não existindo registo de outro semelhante.

 



As marcas impressas são coloridas e acompanham-se de alguns traços a grafite e lápis de cor. As formas são indefinidas e incompletas, deixando o vazio do papel estabelecer uma relação de vestígio, de transformação, de presença e de ausência.

Podemos ver, na maior parte das peças, a representação dos corpos sem limites definidos e os braços cruzados na frente do apenas sugerido peito. É este simulacro que nos transporta para a morte e nos traz para a (nossa) vida.



São os elementos monumentalidade, escala, vestígio indefinido, posição de braços, branco do papel a invadir o registo, que me dão a aproximação ao que é do túmulo. Posso até referir o silêncio que me atravessou.

Identifico esta contemplação e este silêncio como sentimentos do desenho enquanto processo, o que me leva a atentar nos detalhes de cada mancha e à descoberta das ténues e discretas linhas de grafite que por ali dançam. Entro no trabalho e perco-me nas inúmeras surpresas que de longe não havia percecionado.

A escala obriga a uma primeira visão distanciada, a uma leitura do todo, mas a ligação com a obra levou-me a aproximar o meu próprio corpo e a percorrê-la num ato de fruição e curiosidade que congelou o relógio e me levou ao tempo presente. É sempre esta a melhor sensação que trago de uma fruição artística. O momento do atravessamento que a obra faz no meu corpo e as imagens e sensações que ficam a ressoar na minha mente.



Este trabalho faz parte de um ciclo de mostras que o artista tem vindo a realizar, entre as quais destaco o espetáculo “Almada Negreiros, o bailarino” a que tive o privilégio de assistir na Fundação Calouste Gulbenkian no dia 30 de Outubro de 2023.

O Luís é um artista nosso e do mundo todo. O mundo todo é dele também.                                                 

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