sexta-feira, 24 de maio de 2024

Cruz - Filipe, Modo de ver

 M1 - Recensão (Artes Visuais)


Cruz-Filipe. Modo de ver


Galeria do piso inferior

Fundação Calouste Gulbenkian


23 Fev - 15 Abr 2024

10:00 - 18:00 (Encerra à terça)



Introdução


Esta exposição da análise retrospetiva da obra do pintor e artista Cruz-Filipe apresenta pinturas realizadas desde a década de 1970, onde estão incluídas dez telas inéditas pintadas a partir de 2015 e outros trabalhos onde é notória a ligação harmoniosa da pintura com a fotografia.

Pensada e organizada juntamente com o artista, a exposição apresenta 57 pinturas que traçam a evolução desde os anos de 1970, até à sua última tela, pintada em 2020. As dez telas de pinturas inéditas, abordam a temática da natureza/paisagem.

 

Ao contrário de muitos artistas seus contemporâneos, Ricardo da Cruz-Filipe apresenta-se como pintor autodidata. “Convivi com grandes pintores, como o Júlio Pomar ou o Noronha da Costa. Eles eram verdadeiros pintores, eu fazia pintura”. 

Nascido em Lisboa em 1934, Cruz-Filipe diplomou-se no Instituto Superior Técnico em 1957, tendo sido ali professor-assistente entre os anos de 1958 e 1968. Dedicou toda a sua vida profissional ao setor da eletricidade, nomeadamente às questões económicas, ao planeamento, à organização e à gestão de empresas, tendo sido ainda diretor de uma companhia de seguros e administrador da Eletricidade de Portugal (EDP). Paralelamente, criou toda uma obra visual, onde ligou a pintura com a fotografia. O seu trabalho ganhou destaque em finais dos anos de 1960, mais concretamente a partir de 1969, quando expôs pela primeira vez uma série de pinturas sobre telas fotossensibilizadas, técnica esta, em que Cruz-Filipe foi pioneiro em Portugal. 

“Só pintava aos sábados e aos domingos e quando não tinha trabalho para fazer. Nunca fui só pintor. Dedicava-me aos quadros quando tinha esse tempo livre, mas por isso mesmo demoravam e fazia poucas mostras desse trabalho”, conta o artista que chegou a ser professor de engenharia de António Guterres. A primeira exposição pública aconteceu na Galeria Pórtico, em 1957, da qual resta um quadro que abre a presente exposição, intitulado Música de Câmara (1955). Foi o culminar de um gesto que começou cedo. “Desde pequeno que desenhava para o meu irmão, inspirando-me nos filmes de cowboys e no cinema pelo qual me fui interessando”, conta.


Anos mais tarde, já no fim da década de 1960, adota a técnica da tela fotossensível, que confere uma poética própria ao seu trabalho artístico. Esta pintura sobre telas fotossensibilizadas, são aplicadas em telas especialmente preparadas com um revestimento sensível à luz, permitindo, assim, que uma imagem seja gravada sobre a tela, através de um processo fotográfico. Depois deste processo em que a imagem é revelada e impressa na tela, o artista procede à pintura, adicionando detalhes, cores e texturas. 

Esta técnica combina elementos da fotografia e da pintura, permitindo ao artista criar obras de arte únicas que incorporam não só a precisão da imagem através da fotografia como, aliado a esta, a subjetividade da pintura.

Um segundo ciclo inicia-se por volta de 2005, com o predomínio de registos fotográficos sobre paisagens e apontamentos da natureza – mar, céu, terra, atmosferas líquidas e sublimadas, árvores, nuvens – retrabalhados pictoriamente. Como na fase anterior, caracterizada pela constante presença de fragmentos do corpo humano, a imagem é reconstituída e unificada através da pintura. Em ambos os ciclos encontramos a mesma atitude estética e o mesmo desejo de provocar o olhar do observador, trazendo-lhe alguma inquietação.

Se a pintura, no peso histórico e conceptual que o artista lhe atribui, ocupou o primeiro plano da sua obra, a fotografia permanece num lugar imerso, neste seu modo especial de ver a arte.


Descrição geral


Num primeiro olhar, o visitante fica submerso nas diferentes direções para as quais estas telas apontam. O território visual é representativo e amplo. Há alusões à pintura barroca e neoclássica, mas também um cruzamento inusitado com o surrealismo e o impressionismo. O que se vê é, no entanto, mais singular e diz respeito a uma utilização indefinida da fotografia metamorfoseada em pintura. “A criação de imagens foi sempre uma necessidade de expressão contínua”: é desta forma que Ricardo da Cruz-Filipe (1934) descreveu, a sua obra e o seu percurso ligado às artes visuais, iniciado há mais de 70 anos. O espectador é acolhido numa experiência imersiva que ultrapassa as fronteiras da percepção convencional. Localizada na galeria de exposições temporárias do piso 01, a distribuição das pinturas convida a explorar os recantos das várias salas e mergulhar na mente do criador.

O artista português que acaba de completar 90 anos de idade, identifica o seu processo como criador de imagens, que agora se dá a ver, nesta exposição, de forma antológica. É uma narrativa visual, consolidada ao longo de décadas, na história da arte contemporânea portuguesa.

O título da exposição, Modo de ver, foi escolhido pelo artista que recorreu a uma expressão usada por Susan Sontag em On Photography. Na grande maioria, revela-se a técnica em que se notabilizou e que utiliza telas fotossensíveis, colocando estas criações num lugar híbrido, entre a pintura e a fotografia. Ao deambularmos neste universo pictórico, entramos necessariamente num lugar onde a cultura visual é repleta de metáforas vivas e de contemplações sobre o mundo. Da utilização do óleo e depois do acrílico sobre este tipo de telas, o artista português distingue-se por um processo transformativo de imagens, que começa nas montagens de fotografias projetadas em telas e que são tratadas cromaticamente numa espécie de pós-produção da imagem.

Desde o momento em que se entra na galeria, é muito evidente que Cruz-Filipe desafia as normas estabelecidas, optando por uma abordagem que oscila entre o surreal e o provocativo. As obras expostas são meras representações visuais, onde a realidade se funde com o imaginário.

Sobre esta obra, presente na imagem, em cima, dá-se pelo nome de Point d’orgue, de 1994,

O preto ocupa toda a tela ou quase, e aqui só se vêem duas mãos, mãos masculinas, mãos de poder, sob um céu atormentado. Cruz-Filipe constrói assim um universo fantasmagórico, onírico e perturbador: as suas fantasias tomam forma em figuras antigas, vestem-se com os adornos da história da arte para melhor assombrar as mentes e evitar que sejam esquecidas. De todas as pinturas presentes nesta exposição, esta é sem dúvida aquela que mais me intriga e provoca o olhar. Sendo uma composição abstrata, pode ser interpretada de diversas maneiras, uma vez que a arte abstrata permite que o observador encontre significados pessoais. Se traduzirmos o título da obra, encontramos uma simples palavra - destaque. Rapidamente confirmamos que o que se encontra em destaque, que sobressai e que provoca o observador, são as mãos. Uma posição respeitadora, de alguém com algum estatuto. Juntamente com a mancha preta que ocupa quase toda a tela, encontramos na parte superior, uma mancha que simboliza um céu de tempestade. Posso concluir que o poder que simboliza a posição das mãos está atormentado por uma natureza inquieta.

"Point D'orgue", como muitas obras abstratas, convida o observador a mergulhar na experiência estética e a refletir sobre as emoções e impressões que a obra desperta, sem estar limitado a uma interpretação única ou específica.


Como escreve o ensaísta Bernardo Pinto de Almeida, num texto presente no catálogo da exposição, “cada quadro requer a execução lenta de um processo construtivo”, meticulosamente pensado, através de um processo que trabalha as imagens de forma digital. “Baseado na pintura, na fotografia e na colagem – composto assaz complexo que lhe trouxe grande originalidade –, esse processo, sendo absolutamente construtivo, foi realizado quando os dispositivos digitais não conheciam ainda lugar próprio e estavam na maioria por inventar, o que jamais o impediu de ser quase um pioneiro dos processos contemporâneos da apropriação da imagem e do seu uso indiscriminado”, salienta no mesmo texto. O seu trabalho, explica por seu lado a curadora da retrospectiva Ana Vasconcelos, aproxima-o de Richard Hamilton, Robert Rauschenberg ou Gerhard Richter, mas em Portugal é pioneiro e único.

“Cruz-Filipe é herdeiro de uma matriz pop, mas foi um outsider porque insistiu na pintura, quando estava toda a gente a derivar para uma arte conceptual e quando a fotografia ganhou outra dinâmica. Ele continuou a trabalhar na imagem a partir da apropriação, recorrendo a imagens de revistas, frames de filmes e detalhes de outros quadros”, salienta. Numa tradição que trabalha o recorte e a transfiguração, as suas criações empregam uma complexa justaposição de imagens de pormenores retirados de pintura antiga, com particular destaque para a pintura italiana e flamenga dos séculos XVI e XVII, e um trabalho imagético em que o artista faz ligações, revela, deturpa ou oculta.

Um elemento distintivo da exposição é a interação entre as obras e o ambiente circundante. Cruz-Filipe desafia a tradicional separação entre o observador e o objeto observado. Essa abordagem dinâmica amplia os horizontes da percepção, desafiando os visitantes a questionar a sua própria compreensão do mundo ao seu redor.

Além disso, “Modo de Ver” revela uma profunda introspecção por parte do artista em relação à condição humana. As obras exploram temas universais, como identidade, alienação e espiritualidade, através de uma lente pessoal e intimista. Ficamos com a sensação de que entramos numa jornada emocional, explorando os cantos mais sombrios e luminosos da psique humana.

No entanto, apesar da profundidade conceitual das obras, a exposição também oferece momentos de pura estética visual. As composições apresentam destreza, em relação à técnica, impressionante, com uma paleta de cores rica e uma atenção minuciosa aos detalhes. Essa combinação da forma ao conteúdo, cativa os sentidos, garantindo que mesmo os visitantes menos conhecedores da arte contemporânea, encontram sempre algo que lhes prende o olhar.

Em última análise, a exposição "Modo de Ver" de Cruz-Filipe transcende as limitações tradicionais da arte, oferecendo uma experiência que desafia, inspira e enriquece. Ao explorar os limites da percepção e da expressão, o artista convida os espectadores a questionar suas próprias perspectivas e a abraçar a complexidade do mundo ao seu redor.



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