sábado, 19 de novembro de 2022

Máscaras, Misticismos e Monstros

«Neste fim de século, os monstros proliferam: vemo-los por todos os lados, no cinema, na banda desenhada, em gadgets e brinquedos, livros e exposições de pintura, no teatro e na dança. Invadem o planeta, tornando–se familiares.

Cessarão, muito em breve, de nos parecer monstruosos e ser-nos-ão até simpáticos, como já acontece a tantos extraterrestres das séries de televisão. Havemos de falar então da “monstruosidade banal”, como se fala agora da “violência banal” — o que constitui, precisamente, uma aberração.

(...)

Esta atitude é sinal da grande dúvida que assaltou o homem contemporâneo quanto à sua própria humanidade.»

– in 'Monstros', de José Gil (2006), editado pela Relógio d'Água.

 

Usamos constantemente algum tipo de máscara[1], ou temos de lutar constantemente para ir retirando as máscaras que de alguma forma se colam ao nosso rosto, escondendo quem realmente somos e alimentando a ideia de que somos outra coisa.

Nos últimos tempos, em pouco tempo, vi nas salas de cinema um Portugal que, envolto em mitos e magias, manifesta as suas tradições escondido por detrás de máscaras, máscaras de demónios, ao som de ladainhas.

Cada uma destas abordagens coloca-se num ponto de vista diferente, fazendo retratos de família e deste(s) lugar(es) com filtros que iluminam as trevas e conferem densidades de grão próprias, de acordo com cada visão.

As consequências dessas tradições, desses costumes, desta portugalidade, também diferem de acordo com a lente que as capta. Mas, ainda assim, com aspectos em comum e comuns até com quem nunca tenha vivido nessas aldeias do Portugal rural, onde esses costumes (e demónios), aparentemente, se mantém mais vivos.

Tem-se perdido a tradição, o contacto, os ensinamentos, as mezinhas[2], as mesas de família e as próprias famílias.

À medida que os velhos se vão parece que levam consigo as tradições. Não porque as queiram para si, mas porque os mais novos não as tomam para eles, como suas, do plural família, do plural comunidade, do plural humanidade.

'No País de Alice'[3], (2021) onde Rui Simões tenta mostrar as maravilhas de Portugal, os caretos são apresentados de forma bem-disposta, irónica e interessante, contextualizados e adaptados aos tempos modernos.

 

«Este ritual festivo que é também caracterizado pelo convívio entre vizinhos, amigos e familiares, foi num contexto passado, de que dá conta a memória dos residentes mais velhos na aldeia, protagonizado essencialmente pelos rapazes e homens solteiros, cujo alvo eram as jovens raparigas e mulheres solteiras, tendo, portanto, uma função propiciatória, de passagem e de comportamento erótico-sexual.

Hoje, a festa é participada por “caretos” de idade e estado civil “variado” e já não apenas pelos rapazes solteiros, havendo até participação dos mais pequenos, a que chamam “facanitos” e de raparigas envergando fatos de “careto” dos pais, tios ou irmãos. A participação das raparigas é relativamente tolerada e permitida(...)»[4]

 

Os 'Restos do Vento’[5], (2022) de Tiago Guedes, trouxeram de um passado fictício (?) restos do “vento do deserto” e levaram toda a magia e graça que estas figuras, mascaradas com rostos de demónios, ainda poderiam ter em mim. O mesmo tipo de demónio continua aqui a ser o protagonista de uma tradição pagã, mas com uma máscara diferente e numa vila não identificada do interior de Portugal. Aqui, em vez de madeira e lata, o demónio usa uma máscara de ritidoma (casca de árvore), ou um saco de sarapilheira enfiado na cabeça. Tive dificuldade em permanecer sentado até ao passar toda a ficha técnica, a lista de testemunhas de que tudo o que acabara de ver era apenas ficção. Tive de levantar-me da cadeira, sair da sala, encarar os outros rostos humanos e tentar entender que máscaras usavam. Humanos, demónios, ingénuos, altruístas, cruéis, frios?

O que faria se um filho meu desaparecesse? E se morresse? E se tivesse morto alguém? Que máscara colocaria, para me proteger, para me esconder. Para o proteger e esconder? Para me ajudar a desempenhar que papel, de que personagem? E se tivesse o dom de uma alma viva? Se conseguisse ver e cheirar coisas de outras dimensões? Fingiria não o ter? Renegaria os dons e ensinamentos de gerações anteriores?

‘Alma Viva’[6], (2022) de Cristèle Alves Meira, disfere o derradeiro golpe nesta minha auto-denominada trilogia de demónios mascarados. Um sucedâneo de careto, de demónio, ou de ser vivo, que tem como missão incomodar, passa a correr por uma menina que caminha sozinha pela rua da aldeia tentando assustá-la. A menina que transporta consigo o espírito da avó e o dom de falar com os mortos, sugere ou, avisa-o: “– Pára quieto”. Estes demónios terrestres são, de facto, ‘apenas uma brincadeira’ de um ritual tradicional da aldeia, que a apedreja e excomunga, que pretere o ser dotado, que prefere um demónio mascarado em detrimento de uma criança que perpetua os conhecimentos da matriarca de uma família que tenta fazer o funeral e o luto de um ente estigmatizado pelas idiossincrasias da própria tradição.

Há uns tempos, há pouco tempo, uma descendente da mesma nossa avó veio, à casa em que outrora essa avó vivia e onde agora estou, dizer-me que os males da sua vida jaziam na máquina de costura e no móvel onde esta estava sobre, que uma espécie de médium lhe tinha dito, que a tal máquina e móvel deveriam ser deitadas ao lixo para que a sua vida pudesse prosseguir sem percalços. Eu anuí. Sem querer males para ninguém, deixei ir os objectos, a memorabilia, símbolos da tradição e ensinamentos da nossa avó, serem levados como se de lixo se tratasse.

 

Caretos de Podence | Mascarado de ‘Restos do Vento’ | A avó ao espelho, em ‘Alma Viva’.



[1] Na Grécia Antiga apenas os homens podiam actuar e usar as máscaras de teatro. Afinal, elas representavam tanto a tragédia quanto a comédia. Além de acessório, as máscaras são usadas também como representação folclórica e cultural. No entanto, as máscaras de teatro carregam outros simbolismos. Um exemplo histórico é a utilização das máscaras negras no teatro da Grécia Antiga. Com efeito, elas representavam significados tanto na tragédia quanto na comédia. Após isso, passaram a ser usadas como adereços teatrais. https://segredosdomundo.r7.com/mascaras-de-teatro/

[3] 'No País de Alice' | Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=rIvg8qO9cCI

[5] 'Restos do Vento' | Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=QpC-q7qWXPA

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