segunda-feira, 14 de junho de 2021

Os Familiares Corpos Estranhos de MÃO-DE-OBRA

Em duas ocasiões diferentes, tive a oportunidade de visitar a mais recente exposição de António Bolota, com curadoria de Bruno Marchand, na Culturgest, a primeira das quais teve a fortuna de ser guiada pelo próprio artista. MÃO-DE-OBRA é uma seleção de peças produzidas entre 2006 e a atualidade. 

Formado em Engenharia Civil, António Bolota utiliza materiais que conhecemos do mundo da construção para criar objetos que solicitam uma experiência refrescante, de contacto e de familiaridade, que contrasta com o respeito pela grandes dimensões e com a forma impactante com que estes corpos atravessam o espaço. 


O caráter conciso da exposição e a atenção ao intervalo entre as peças transmitem uma clareza e uma simplicidade que lhes permite respirar e permanecer serenas na sua monumentalidade despretensiosa. O poder sintético com que MÃO-DE-OBRA foi concebida é a sua maior força. Permite-nos viver estes objetos de uma forma limpa e sem ruído. A frieza da luz e paredes brancas que os envolvem confere-lhes um caráter de corpo estranho ao espaço, interpolador, cortante e divisivo. 

Na primeira sala, surge uma enorme estrutura, um telhado com telhas marselha (marcadas com uns curiosos símbolos) suportado por longas vigas de madeira. Esta particularidade torna-o ondulado desde a esquina mais próxima da sala até ao ponto mais longínquo da divisão, perto do teto. 



Sem Título, 2006


Com o seu beiral a apenas cerca de 30 centímetros do chão, surge em nós a curiosidade de espreitar por debaixo deste mar de telhas. Neste momento, apercebemo-nos pela primeira vez de um dos aspetos mais consistentes das peças ao longo de toda a exposição - a presença dos dois lados -. Este telhado, como quase todos os objetos em causa, apresenta nitidamente dois lados distintos. Se na primeira sala o vemos em toda a sua monumentalidade, numa entrada mais discreta à frente no corredor principal, é nos dado acesso às suas traseiras. Vemos claramente toda a estrutura que o suporta, as longas vigas, a luz que passa por entre as telhas e os pequenos bichinhos, como as marias-café, que lhes ficaram coladas. Toda a peça ganha uma nova vida e um novo mistério.





Sem Título, 2021


Um efeito análogo mas atingido de uma forma bem diferente pode ser encontrado na sala anexa à primeira. Ao fundo, vemos uma estrutura maciça que nos é apresentada como um muro de pedra seca suspenso numa viga de aço. O artista conta-nos uma poética regra quando se constrói um muro como este: quando se retira uma pedra do monte para a colocar no muro, não se pode voltar atrás. A pedra tem de encontrar o seu sítio na obra. 

Mais uma vez, a peça encontra-se a poucos centímetros do chão e surge a curiosidade sobre o outro lado. Deitando-nos e deslizando por debaixo do muro (sensação curiosa a do momento em que damos conta de que estamos sob várias toneladas de pedra), chegamos a uma pequena sala sem saída, com apenas uma fonte de luz amarelada e não muito forte. Há então uma leve sensação claustrofóbica e em que o respeito pela dimensão da peça se faz sentir de um modo bem mais direto. Porém, é também neste lado que surge a deceção. Afinal, não se trata de um muro de pedra seca. A pedra está coberta por uma argamassa amarelada, e o que esta retira de simplicidade à peça não consegue ser justificado com o interesse pela textura diferente que vemos e tocamos. 


Voltando ao corredor principal, ao virar da primeira esquina, avistamos mais uma enorme estrutura. Desta vez, uma espécie de serpente de betão e aço que ziguezagueia por entre os pilares de tijolo do corredor. Somos confrontados por um sereno paradoxo entre dimensão e leveza, algo que é aqui alcançado também através de um útil conhecimento da Física. 



Sem Título, 2021

Numa observação mais próxima, percebemos que a estrutura está suportada por três braços de aço que se enterram nos pilares a cada curva. A cor laranja-terra conferida ao betão parece querer assemelhar-se à dos pilares, e essa diferença de tom, esse desfasamento, ajuda a criar um diálogo de estranheza e de não pertença ao espaço. Como se se quisesse infiltrar no espaço, mas não o conseguindo completamente. Essa estranheza é ainda mais evidente quando sabemos que as obras foram construídas em específico para estes espaços. É também de notar o pormenor dos padrões pictóricos naturais criados pela oxidação que  surgem nas longas placas de aço que suportam o betão.




Sem Título, 2021


Por fim, atingimos a última sala. Uma forma de cimento bloqueia parte da entrada. Uma "bolacha" de betão de 20 toneladas apoiada apenas sobre uma (pequena em comparação) esfera metálica que deforma o vinil do pavimento cumprimenta-nos ao entrar na sala e somos mais uma vez confrontados com essa impossibilidade, com esses dois lados dos objetos, a massa enorme do disco de betão suportada por uma esfera. Este paradoxo torna-se por demais evidente quando o artista nos convida a subir para cima da peça, e então sentimos uma estabilidade que surpreende. Em cima da peça, damos conta de mais um desfasamento entre a cor da sua superfície e a cor do chão.


Ao fundo, na mesma sala, encontra-se a peça mais pesada do conjunto da exposição - cinco altos caixotes de madeira amarela completamente cheios de areia -. Se podemos afirmar que a obra tem dois lados porque a sua dimensão nos dificulta a passagem de um lado para o outro, a própria morfologia dos caixotes confirma essa ideia - um, o primeiro que vemos, em que os caixotes formam uma parede única de madeira, uma muralha, que nos impede qualquer tipo de compreensão mais aprofundada sobre a forma destes objetos, e outro, que se apresenta menos "hostil" e que nos dá a ver o topo dos caixotes, bem como a sua forma. A areia que vai caindo de vez em quando por entre as frestas das tábuas dá a esta obra uma dimensão de mudança ao longo do tempo que torna o objeto vivo. Mais uma vez, o paradoxo.




Sem Título, 2021

No exterior, encontramos ainda uma última peça, uma enorme forma vertical forrada a tijoleira. De toda a exposição, esta peça parece ser a menos interessante. Surge desfasada em relação às restantes. Não apresenta dois lados nítidos, contrários, e não atravessa o espaço de nenhuma forma particular. Chega a confundir-se com a arquitetura do edifício e o facto de se distinguir de todas as outras nestes aspetos poderia eventualmente conferir-lhe um interesse maior, em vez de menor. No entanto, essa falta de oposição, de tensão em si própria (2 lados) e no espaço tornam-na um objeto bem mais resolvido e, portanto, menos propenso à experiência estética.




Sem Título, 2021

A maior fraqueza que se pode apontar a MÃO-DE-OBRA talvez seja a de que, sem o convite do próprio artista, o público não interage tanto com as peças. Não lhes toca, não passa por debaixo delas e não sobe para cima das mesmas.


Creio ser precisamente a 'familiaridade estranha' - essa proximidade com os materiais e os próprios objetos em justaposição com as suas grandes dimensões e formas aparentemente impossíveis ou, no mínimo, impressionantes - que constitui a maior força desta seleção de trabalhos e da forma como é apresentada. 

A presença dos paradoxos é constante, desde a relação proximidade-monumentalidade, à de leveza e peso, passando pela relação entre materiais mortos dando origem a objetos vivos. Se por um lado, conhecemos bem a areia, a madeira, o cimento, a pedra e o aço, por outro, não lidamos com eles numa base diária sob a forma de objetos enormes, suspensos em pilares ou atravessando uma sala de uma parede à outra. O muro que atravessa o fundo da segunda sala da exposição, não parece pertencer ao espaço de um museu da mesma forma que um busto ou uma tela; a serpente de blocos de betão que ziguezagueia pelo corredor principal não passa despercebida. 

No fundo, todos estes objetos interagem de uma forma muito precisa, serena e forte com o seu espaço, com a arquitetura do edifício, com o molde: «(...) para mim, a arquitetura é o molde. Depois o que eu lá ponho é um positivo. E o espectador está dentro do negativo, que é o molde». (Bolota, 2021)


Aberta ao público até 19 de Setembro, MÃO-DE-OBRA vale a pena visitar pelas suas contradições e proximidades táteis.


Website da exposição: https://www.culturgest.pt/pt/media/mao-de-obra/


Referência

Bolota, A. (2021). António Bolota em voz própria [vídeo]. Disponível em: <URL: https://www.culturgest.pt/pt/media/mao-de-obra/#voz-do-artista>



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