terça-feira, 15 de junho de 2021

INTENTIO AUTORIS E INTENTIO MEDIATORIS

 

 INTENTIO AUTORIS E INTENTIO MEDIATORIS

 

 

A seguinte reflexão nasce posteriormente a uma visita na coleção permanente da Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa e foca-se, principalmente, na analise do método expositivo seleccionado para as obras de Arte Antiga (Egípcios, Romanos, Sumeriano, Chineses, Indianos e da Europa Ocidental do Renascimento e do Iluminismo).




A Primavera:
Homenagem a Jean Goujon
. Alfred-Auguste Janniot. Roma, 1919-1924.

Além da bilheteira, ao lado da entrada, econtra-se esta maravilhosa escultura de Janniot, realizada entre o 1919 e o 1924. Segundo quanto referido no site da Gulbenkian, a obra adquiriu celebridade durante a Exposição Internacional das Artes Decorativas e Industriais Modernas (Paris, 1925) por ter conseguido conciliar a estética clássica da antiguidade com as fantasias e as novas modalidades expressivas do século XX. Trata-se portanto de uma escultura que mídia duas épocas, dois estilos, duas estéticas (que são éticas) mas aqui, em vez de mediar, inicia o discurso expositivo proposto pela Fundação. Iluminada de cima, como se fosse a luz Divina que diretamente a valoriza, me comunicou palavras como “grandiosidade”, “épico” e “clássico”. O espaço, completamente vazio, apenas compartilhado com os empregados e o balcão da bilheteira, evidencia ulteriormente estas sensações, sendo as figuras mais altas e imponentes do que os homens ao seu redor. Embora sendo valorizada teóricamente pelas suas qualidades intermédias entre o “clássico” e o “novo”, parecem aqui muito mais evidenciadas a sua beleza e a sua postura formal, típicamente grega e romana.

 


Estátua funerária. Egito, Império Médio, XI dinastia (c. 2000 a. C.)

 

Ao entrar na efectiva coleção, segue uma série de estatuas e de pequenos itens das casas egípcias, categoricamente isoladas do contexto físico-espacial do museu, bem como do contexto cultural no qual eram não só elementos decorativos, mas símbolos duma civilização. É complicado re-construir uma atmosfera antiga de mais 2000 anos, mas pareceu-me ainda que o objectivo da exposição fosse aquelo de valorizar a “grandiosidade” e o “valor” (mais económico do que cultural) das peças propostas. Não havia alguma descrição dos objectos, nem alguma descrição além da data e do nome das obras. As estatuas, bem como os garfos e as facas, os copos e os vasos, mostravam exclusivamente as suas qualidades estéticas, protegidas por vitrinas de vidro, as quais ulteriormente limitavam a passagem. As salas mantenham uma atmosfera asséptica e estéril, na qual é difícil imaginar um diálogo efectivo com as obras em exposição diferente duma passiva e visiva admiração. A luz ainda estabelece uma aura sagra e divina, a qual afasta a dimensão humana das obras, a qual pertence não só aos visitantes, mas também aos autores das obras mesmas.

Sala da tapeçaria Oriental

Mas é nesta sala que o horror venceu a maravilha. Essa fotografia poderia ser tirada numa qualquer loja de productos pela casa. Todo bem arrumado e organizado visa preencher o espaço disponível mas, apesar da proximidade entre os objectos expostos, é possível sentir uma incrível distância. A tapeçaria, bem como a roupa exposta, são elevados à “arte” por vetrinas e pequenos pedestais neutros. Uma vez ainda estamos convidados a admirar as qualidades estéticas dos objectos, mas não a reflectir sobre o valor social dos mesmos. Que relação haviam com a gente da própria época? Quem eram as pessoas que vestiam aquelas maravilhosas túnicas? Porque tal estética era tão valorizada pelos povos Orientais? Nenhuma resposta. Mas o problema não é de fundo a resposta; mas o facto que nessa exposição parece não ser posta alguma pergunta. Os objectos (de utilização comum) parecem seleccionados pelas suas beleza, característica que certamente alterava o destino e a estética dos mesmos mas que, à distância de milhares de anos, sem dúvida deixa emergir significados e necessidades inconscientes dos povos que os produziram.


Sala do mobiliário do XVI-XVII século.

O pouco interesse no inquietar os visitantes é mais uma vez evidenciado na imposição do mesmo método expositivo a qualquer objecto. A exposição parece portanto dividida em categorias estritamente físicas: “mesas”, “vasos”, “copos”, “pinturas” etc... colocadas segundo uma narração da arte principalmente de ordem cronológica e linear. Poucas obras, de facto, ganharam um aprofundamento específico e eram, na maioria dos casos, pinturas, ou seja, Belas Artes. Embora com pedestais, os objectos não parecem reconhecidos enquanto resultados duma experiência artística, mas como materiais de grande valor económico. Pergunto-me, portanto, qual era o objectivo desta coleção? As peças são incríveis, cheias de detalhes e narrações que contam do dia-a-dia de antigos povos, mas a quantidade de objectos expostos cria um (não-)lugar na qual é difícil perceber a real posição social dos itens, ou das pinturas, ou das esculturas expostas nas épocas correspondentes. A coleção, em fim, foi criada no 1956 e portanto não tinha modo de conhecer as problemáticas educativas que os museus hoje afrontam; mas, além disso, representa hoje um dos “clássicos” museus no qual se pode só ver, sem aprender, que seja suporte duma escola na qual se pode só aprender, sem ver.

Apesar de todo, é correcto evidenciar que a Fundação hoje financia muitos projectos artísticos, portanto é preciso endereçar essa recensão exclusivamente para a sua coleção permanente.

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