INTENTIO AUTORIS E
INTENTIO MEDIATORIS
A seguinte reflexão nasce posteriormente a uma visita na
coleção permanente da Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa e foca-se,
principalmente, na analise do método expositivo seleccionado para as obras de
Arte Antiga (Egípcios, Romanos, Sumeriano, Chineses, Indianos e da Europa
Ocidental do Renascimento e do Iluminismo).
A Primavera:
Homenagem a Jean Goujon. Alfred-Auguste Janniot. Roma, 1919-1924.
Além da
bilheteira, ao lado da entrada, econtra-se esta maravilhosa escultura de
Janniot, realizada entre o 1919 e o 1924. Segundo quanto referido no site da
Gulbenkian, a obra adquiriu celebridade durante a Exposição
Internacional das Artes Decorativas e Industriais Modernas (Paris, 1925) por ter conseguido conciliar a estética
clássica da antiguidade com as fantasias e as novas modalidades expressivas do
século XX. Trata-se portanto de uma escultura que mídia duas épocas, dois
estilos, duas estéticas (que são éticas) mas aqui, em vez de mediar, inicia o
discurso expositivo proposto pela Fundação. Iluminada de cima, como se fosse a
luz Divina que diretamente a valoriza, me comunicou palavras como
“grandiosidade”, “épico” e “clássico”. O espaço, completamente vazio, apenas
compartilhado com os empregados e o balcão da bilheteira, evidencia
ulteriormente estas sensações, sendo as figuras mais altas e imponentes do que
os homens ao seu redor. Embora sendo valorizada teóricamente pelas suas
qualidades intermédias entre o “clássico” e o “novo”, parecem aqui muito mais
evidenciadas a sua beleza e a sua postura formal, típicamente grega e romana.
Estátua funerária.
Egito, Império
Médio, XI dinastia (c. 2000 a. C.)
Ao entrar na efectiva
coleção, segue uma série de estatuas e de pequenos itens das casas egípcias,
categoricamente isoladas do contexto físico-espacial do museu, bem como do
contexto cultural no qual eram não só elementos decorativos, mas símbolos duma
civilização. É complicado re-construir uma atmosfera antiga de mais 2000 anos,
mas pareceu-me ainda que o objectivo da exposição fosse aquelo de valorizar a
“grandiosidade” e o “valor” (mais económico do que cultural) das peças
propostas. Não havia alguma descrição dos objectos, nem alguma descrição além
da data e do nome das obras. As estatuas, bem como os garfos e as facas, os
copos e os vasos, mostravam exclusivamente as suas qualidades estéticas,
protegidas por vitrinas de vidro, as quais ulteriormente limitavam a passagem.
As salas mantenham uma atmosfera asséptica e estéril, na qual é difícil
imaginar um diálogo efectivo com as obras em exposição diferente duma passiva e
visiva admiração. A luz ainda estabelece uma aura sagra e divina, a qual afasta
a dimensão humana das obras, a qual pertence não só aos visitantes, mas também
aos autores das obras mesmas.
Mas é nesta sala que o
horror venceu a maravilha. Essa fotografia poderia ser tirada numa qualquer
loja de productos pela casa. Todo bem arrumado e organizado visa preencher o
espaço disponível mas, apesar da proximidade entre os objectos expostos, é possível
sentir uma incrível distância. A tapeçaria, bem como a roupa exposta, são
elevados à “arte” por vetrinas e pequenos pedestais neutros. Uma vez ainda
estamos convidados a admirar as qualidades estéticas dos objectos, mas não a
reflectir sobre o valor social dos mesmos. Que relação haviam com a gente da
própria época? Quem eram as pessoas que vestiam aquelas maravilhosas túnicas?
Porque tal estética era tão valorizada pelos povos Orientais? Nenhuma resposta.
Mas o problema não é de fundo a resposta; mas o facto que nessa exposição
parece não ser posta alguma pergunta. Os objectos (de utilização comum) parecem
seleccionados pelas suas beleza, característica que certamente alterava o
destino e a estética dos mesmos mas que, à distância de milhares de anos, sem
dúvida deixa emergir significados e necessidades inconscientes dos povos que os
produziram.
Sala do mobiliário do XVI-XVII século.
O pouco interesse no
inquietar os visitantes é mais uma vez evidenciado na imposição do mesmo método
expositivo a qualquer objecto. A exposição parece portanto dividida em
categorias estritamente físicas: “mesas”, “vasos”, “copos”, “pinturas” etc...
colocadas segundo uma narração da arte principalmente de ordem cronológica e
linear. Poucas obras, de facto, ganharam um aprofundamento específico e eram,
na maioria dos casos, pinturas, ou seja, Belas Artes. Embora com pedestais, os
objectos não parecem reconhecidos enquanto resultados duma experiência
artística, mas como materiais de grande valor económico. Pergunto-me, portanto,
qual era o objectivo desta coleção? As peças são incríveis, cheias de detalhes
e narrações que contam do dia-a-dia de antigos povos, mas a quantidade de objectos
expostos cria um (não-)lugar na qual é difícil perceber a real posição social
dos itens, ou das pinturas, ou das esculturas expostas nas épocas
correspondentes. A coleção, em fim, foi criada no 1956 e portanto não tinha
modo de conhecer as problemáticas educativas que os museus hoje afrontam; mas,
além disso, representa hoje um dos “clássicos” museus no qual se pode só ver,
sem aprender, que seja suporte duma escola na qual se pode só aprender, sem
ver.
Apesar de todo, é
correcto evidenciar que a Fundação hoje financia muitos projectos artísticos,
portanto é preciso endereçar essa recensão exclusivamente para a sua coleção
permanente.
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