Motivado pelo arquivo de imagens “Arquivo do Design Não-Alinhado”, aproximei-me de práticas de comunicação gráfica populares. Refiro-me a produções, muitas vezes pintadas à mão, como panfletos, flyers, letreiros improvisados, preçários, tabuletas de tascas, cartazes de festas e muitas outras peças criadas com os materiais disponíveis. Interessei-me especialmente pela tipografia vernacular presente nesses elementos.
A palavra vernacular pode significar “doméstico”, “nativo” ou “do lugar”, algo que pertence a uma comunidade. Estas práticas são, por isso, não académicas, mas inspiradas na experiência e no saber popular. É evidente que são desenvolvidas por uma comunidade sem imposições externas, constituindo uma linguagem não institucional, que surge da necessidade de comunicar com poucos recursos e de resolver um problema visual de forma prática e imediata. Daí resultarem composições tão genuínas e espontâneas.
Talvez os exemplos mais claros de tipografia vernacular em Portugal se encontrem nos preçários e letreiros feitos à mão em mercados e feiras. Estes apresentam, em geral, uma identidade mais vincada e tradicional: demonstram destreza caligráfica e são habitualmente desenhados com marcadores sobre papéis de cores vibrantes e contrastantes.
Ainda assim, os casos que mais me suscitam interesse são os mais improvisados e espontâneos, exemplos em que as regras são interpretadas por cada indivíduo de forma singular, baseando-se no seu próprio conhecimento tipográfico, na noção de composição e na sua destreza manual.
Neste exemplo, observamos um pequeno folheto impresso a partir de uma fotocópia de uma composição realizada com letra desenhada à mão, utilizando um marcador, que confere ao objeto um aspecto redondo e amigável. É evidente a utilização de régua na base de cada linha, e o desenho das letras revela cuidado e precisão. O texto surge centrado e apresenta uma mancha visual bastante densa, devido à espessura do traço e à inexistência de entrelinha, característica que distingue de forma clara esta peça.
Aqui observamos, pendurada com arame num gradeamento, uma placa com uma mensagem de alerta sobre a entrada e saída de camiões. Trata-se de um suporte de grandes dimensões; talvez por isso o tipo de letra não apresente um caráter caligráfico (é difícil captar a expressividade do gesto manual numa superfície tão ampla), adotando antes uma aparência maioritariamente geométrica, composta exclusivamente por letras de caixa alta.
A placa inclui marcações a lápis que definem a base de cada linha, e é notória a ausência da letra “N” em “ateção” (primeira palavra). A composição demonstra grande criatividade: por alguma razão, e ao contrário das restantes letras, os “N” surgem inclinados; as formas apresentam-se mais ou menos condensadas conforme a necessidade de evitar a divisão de palavras ao trocar de linha; os tiles variam em espessura e curvatura e surgem sempre a cobrir e a ligar duas vogais; o “C” e o “G” da linha inferior são mais expressivos e irregulares; os “I” são sempre serifados; e são utilizados traços em todos os espaços entre palavras.
Neste caso, deparamo-nos com a ementa de um restaurante. Esta peça transmite espontaneidade, a começar pelo suporte: uma toalha de papel, rasgada de modo a apresentar a largura desejada. A letra manuscrita, desenhada com marcadores azul e vermelho, evoca descontração e revela uma intenção clara de conjugar as cores de forma equilibrada. Os nomes dos pratos são alinhados à esquerda, enquanto os preços alinhados à direita e são unidos por traços que preenchem o espaço entre eles com a intenção de criar uma caixa de texto retangular totalmente preenchida.
Analisei estes exemplos porque o ato manual é central à sua conceção. Trata-se de um gesto cultural e profundamente humano, que nasce do contacto direto entre um criador e um objeto, num contexto específico. As letras pintadas, frequentemente irregulares e orgânicas, refletem um pensamento visual construído a partir da experiência pessoal e não de métodos académicos e o erro converte-se em expressão, e a linguagem emerge da combinação entre imperfeições e originalidade, que dão lugar a peças por vezes altamente criativas, dotadas de uma energia e autenticidade que frequentemente se perdem nos processos mais formalizados do design contemporâneo.
Todas as imagens foram retiradas do "Arquivo do design não-alinhado".