Os arquivos visuais tornaram-se um dos lugares mais interessantes para pensar a relação entre memória e identidade. Não porque sejam românticos ou misteriosos, mas porque revelam, de forma muito direta, como uma sociedade decide o que merece ser lembrado e o que fica fora da história.
Contrariamente ao que muitas vezes se imagina, um arquivo não é um repositório neutro. É um conjunto de escolhas: o que se guarda, o que se descarta, o que se descreve com detalhe e o que fica praticamente sem contexto.
Essas decisões, conscientes ou não, moldam a narrativa coletiva. Determinam quais são as imagens que sustentam a nossa ideia de passado e quais são as que se tornam invisíveis.
Com a digitalização, as imagens deixaram de estar confinadas a instituições ou coleções privadas. Entraram no fluxo constante da internet, onde podem ser vistas, partilhadas, reinterpretadas e apropriadas por audiências diversas.
Uma fotografia que antes só era consultada por investigadores pode hoje ser utilizada num artigo de opinião, numa página de ativismo, numa publicação humorística ou numa discussão política.
Quando muda de contexto, muda de significado e essa transformação é inevitável.
Nenhuma imagem circula sozinha. A legenda que a acompanha, o local onde é publicada e o discurso que a rodeia condicionam a leitura.
A mesma fotografia histórica pode ilustrar uma celebração, uma advertência, uma crítica ou um debate sobre direitos, dependendo da forma como é enquadrada.
É nesta flexibilidade interpretativa que o arquivo se torna um espaço vivo.
Nas últimas décadas, comunidades que raramente tiveram visibilidade nos arquivos oficiais começaram a criar os seus próprios repositórios.
Arquivos LGBTQIA+, plataformas de memória migrante, projetos de recolha de fotografias de bairros periféricos ou de histórias familiares ignoradas pelos registos institucionais são exemplos dessa vontade de preencher lacunas.
Estes contra-arquivos não anulam os oficiais; complementam-nos e questionam-nos. Fazem-nos perguntar: porque faltam estas imagens? Quem ficou fora da história?
Vários artistas contemporâneos trabalham diretamente com materiais de arquivo para revelar o que estes escondem.
Ao reorganizar, justapor ou manipular imagens, tornam visíveis as ausências, os desequilíbrios e as falhas do registo institucional.
A arte não cria uma nova verdade, mas expõe as múltiplas versões possíveis de um mesmo passado.
Reutilizar documentos visuais implica cuidado. Fotografias de violência, de contextos coloniais ou de populações vulneráveis podem ser facilmente mal enquadradas ou instrumentalizadas.
Antes de partilhar, importa perguntar:
– Qual é o contexto desta imagem?
– Quem nela aparece e em que condições?
– O seu uso pode reforçar estereótipos ou desinformação?
Esta consciência não limita o acesso ao arquivo, fortalece-o.
No fim, percebemos que um arquivo visual não é um lugar onde o passado repousa. É um sistema em permanente atualização, reinterpretado a cada gesto de consulta, partilha ou recontextualização.
A memória coletiva não é uma lista fechada de acontecimentos, mas um processo contínuo de seleção e debate.
O passado não desaparece. Reorganiza-se. E cada imagem que volta a circular participa activamente na forma como nos compreendemos enquanto comunidade.
Carolina Malheiro