sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Representação e Poder em "Uma Terra Sem Gente Para Gente Sem Terra".

 

Exposição ‘Uma Terra Sem Gente Para Gente Sem Terra’ (Galeria Inflight, Hobart, Austrália).

 

"Uma Terra Sem Gente Para Gente Sem Terra", intervenção artística de Nuno Coelho e Adam Kershaw, é apresentada pela primeira vez em Junho de 2007 na Galeria Fabrica Features em Lisboa (Portugal). Composta por cartazes gráficos interactivos sobre o conflito israelo-palestino, produz um discurso visual em torno das tensões sociais da vida quotidiana na região e com um olhar crítico e irónico, propõe uma nova abordagem de pensamento sobre o conflito, convidando os visitantes a colorir mapas e desenhos.

Algumas informações contidas nos cartazes são adaptadas à cidade ou país onde é apresentada, para facilitar a compreensão e o relacionamento com o público. Num dos cartazes é comparado o tamanho geográfico da Palestina com o do país onde a exposição é apresentada. A componente textual da exposição é traduzida para a língua do local onde é apresentada e pela natureza dos seus conteúdos, a exposição pode ser actualizada de acordo com novos dados sobre o tema.

Os desenhos foram criados através de gráficos vectoriais – podendo ser ampliados – o que permite os cartazes serem produzidos com dimensões adaptadas a qualquer espaço. Os cartazes são produzidos para cada nova apresentação, onde permanecem até ao encerramento.

 

 

Exposição ‘Uma Terra Sem Gente Para Gente Sem Terra’ (Galeria Inflight, Hobart, Austrália). Interação dos visitantes com os cartazes.


O livro homónimo é publicado em 2009, durante a Experimenta Design – Bienal de Lisboa. Inclui uma caixa de lápis de colorir[1] e contém versões actualizadas das imagens e textos da exposição, assim como novo material produzido especificamente para a publicação. São descritas as diferentes fases da sua produção e documentação, assim como o contexto político e de design através de textos dos autores. São ainda convidados colaboradores, de diferentes contextos profissionais e culturais, a responder ao formato e ao conteúdo da exposição de acordo com as suas próprias perspectivas.

Nuno Coelho tem a ideia de desenvolver este projecto um ano depois da sua viagem à Palestina, para onde partiu com o intuito de conhecer a realidade para além dos meios de comunicação. Ao ver um documentário na exposição “Sometimes Doing Something Poetic Can Become Political and Sometimes Doing Something Political Can Become Poetic”, do artista Francis Alÿs, em que este surge delineando a Linha Verde[2] com latas de tinta, toma consciência de que poderia partilhar as suas conclusões sobre a experiência na Palestina através de um objecto artístico.

O projecto é então desenvolvido com a participação de Adam Kershaw que o acompanhou na viagem à Palestina e ambos optam pela frase "Uma Terra Sem Gente Para Gente Sem Terra"[3] como título da exposição, por sentirem que, através da sua apropriação, permitiriam a sua utilização retórica.

O modo como os media, ao longo de mais de um século, têm feito a cobertura sobre o conflito na Palestina, quer pela forma como em determinados momentos tem sido produzida e transmitida, noutros aparentemente indiferente e ausente ou pelas lógicas de poder de que tem sido cúmplice, contribui para a construção de significados associados ao conflito que pairam entre região em constante e inevitável cenário de guerra e território em que é seu dever intervir consoante a agenda económica – dos interesses bélicos, energéticos, territoriais, etc.

Além das questões sobre a representação e o seu inerente poder, é interessante visitar os conceitos de linguagem e discurso. Uma vez que os Estudos Culturais consideram que ‘a nossa perspetiva da realidade’ se constrói e transforma de formas discursivas e não-discursivas, regulando os princípios que estabelecemos e tomamos como certos (como o desenho de territórios ou fronteiras), e se traduzem, de novo, em lógicas de poder que vamos perpetuando. Talvez por isso, o tipo de discurso aplicado na manutenção do território da Palestina, insista em recorrer a lógicas estereotipadas, ao procurar caracterizar diversos grupos de indivíduos em conflito, pretendendo constituir uma unidade de significado comum para identificar o todo.

A percepção de Nuno Coelho sobre a situação da região alterou-se completamente após a viagem aos territórios palestinos e a Israel:


“Aos meus olhos, o conflito não é tão grave do ponto de vista armado (ataques, bombas, tiroteios – praticamente as únicas notícias que chegam da região até nós), mas é tremendamente mais chocante em aspetos da vida quotidiana (falta de liberdade de movimento, recolher obrigatório, incursões militares, checkpoints, segregação da sociedade, etc.). Essas informações não chegam até nós por não serem suficientemente "midiáticas". Os pratos da balança estavam bem mais desequilibrados do que tinha percebido até então.”[4]


Apesar de quem produz imagem/mensagem, a partir do momento da sua difusão, não ter a possibilidade de garantir o significado que os diferentes públicos lhe vão atribuir, a forma como a constrói, mostra, encena e difunde, tal como os Estudos Culturais pretendem, pode fazer com que o público olhe e veja de forma crítica como a ‘verdade’ é moldada e a aceitamos sem pensar[5].

Essa sensação de absurdo é enfatizada, neste projecto, ao falar da actual situação social e política recorrendo ao imaginário e linguagem infantil. Apesar de haver um discurso global sobre a Palestina, poucas pessoas conseguem ver além das imagens e títulos chocantes gerados pelos media e compreender os princípios básicos do conflito. O discurso crítico e irónico expõe a situação, de forma descontraída, convidando as pessoas a colorir mapas e desenhos ao longo da exposição, mostrando como os resultados das suas diferentes intervenções e representações reflectem contextos de poder diversos. Encarando o design como acto de tradução (de informação textual para imagens), os autores facilitam a leitura e compreensão do assunto retratado.

A exposição funciona como uma campanha de sensibilização e promove o debate entre os que interagem com ela ao acrescentarem a sua opinião. Nesta interacção social existe uma lógica de poder implícita (como na relação de espaço individual/colectivo, lógicas de pertença, ou noção de propriedade e partilha). A importância do estímulo intelectual e a noção de que as ideias e ideais importam, de que vale a pena lutar por elas e por eles, reforçam a mensagem de que o que temos para dizer pode ter o poder de influenciar o mundo e recuperar o controlo dominado por imagens que estão para além do alcance democrático das pessoas.

 


 

 Livro ‘Uma Terra Sem Gente Para Gente Sem Terra – Um Livro de Colorir Sobre a Palestina’. Paginação, pormenor da caixa de lápis, capa e um dos mapas e questões apresentadas.


As reacções do público, nos países por onde a exposição já passou, têm sido muito diferentes, tanto ao nível das conversas nas inaugurações como nas intervenções deixadas nos cartazes. Em Berlim, onde houve maior contextualização do tema retratado, pelas várias menções ao Muro de Berlim e pela questão judaica, parece ter havido maior interacção do público. Em Hobart, na Austrália, ocorreu um debate sobre colonialismo e reconhecimento dos direitos da população indígena e autóctone. No Brasil houve debates sobre questões semelhantes.


“Para além disso, torna-se importante questionar se poderá um acto artístico conter em si imenso significado político sem assumir um determinado ponto de vista ou sem aspirar a ser transgressor, subversivo ou activista. Tal como a negação da Filosofia é já de si um acto filosófico, talvez a tentativa de mostrar um trabalho apolítico seja também ela detentora de uma forte posição política.”[6]


Os Estudos Culturais têm um compromisso fundamental com a avaliação ética da sociedade moderna e com uma linha radical de acção política. Com foco na relação entre cultura e significância, consideram que a cultura não é nem neutral, nem natural.

O mesmo parece acontecer neste projecto, em que o público não tem apenas uma atitude passiva perante a obra artística. A obra só fica completa depois da intervenção. E a exploração da interactividade, que aqui é feita com materiais "arcaicos", faz com que as pessoas se envolvam directamente com o assunto. O apelativo jogo de colorir de cada visitante vai revelando a posição que assume e os significados associados por si atribuídos. Cada uma dessas representações expõe, por sua vez, novas realidades desses pontos de vista, à medida que são percebidas pela perspectiva de cada um dos restantes visitantes enquanto algo a que atribuem novo significado.

Cada mapa, sendo uma representação baseada em princípios geográficos de uma região, é uma representação de poder, é uma perspectiva e um olhar particular, uma narrativa que, embora simbólica, tem uma capacidade de se manter e perpetuar.

A intervenção é assumida como parte integrante do projecto, apelando a um envolvimento activo do visitante no assunto retratado. Muito da informação de alguns cartazes só se consegue obter depois da intervenção e representa um discurso que, embora simbólico e por vezes involuntário, reflecte sempre uma lógica de poder, de acordo com o local e dimensão das manchas de cor.

 


[1] A exposição e o livro contam com o apoio da Viarco, a única fábrica de lápis em Portugal, que fornece os lápis de colorir necessários para a experiência.

[2] Fronteira internacionalmente reconhecida entre Israel e Palestina, mas que não existe na realidade.

[3] Slogan, atribuído ao movimento sionista, que se refere à Palestina como uma terra supostamente sem população nativa e aos judeus como um grupo étnico deslocado, espalhado por todo o mundo, sem território próprio.

[4] Designer gráfico traz ao Brasil exposição "Uma Terra Sem Gente Para Gente Sem Terra", Entrevista de Nuno Coelho ao Instituto da Cultura Árabe.

[5] Como disse Marshall McLuhan: “Não tenho a certeza de quem descobriu a água, mas certamente não foram os peixes”, por outras palavras: Quando estamos imersos nas imagens dos media, podemos vir a absorvemo-las sem pensar.

[6] Uma Terra Sem Gente Para Gente Sem Terra – Uma exposição interactiva sobre a Palestina de Nuno Coelho e Adam Kershaw.

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