Mário de Sá Carneiro sabia que vivemos isolados, nunca conseguindo atirar
aos outros com tudo aquilo que somos. José Pacheco ouviu-o em Mistério, conto sobre a alma humana e a impossibilidade
de comunicação total.
Em fevereiro de 1914 foi publicado na revista A Águia o conto Mistério, um dos fragmentos que constituiria mais tarde Céu em Fogo e que foi também o ponto de partida para o texto A Confissão de Lúcio.
Nas páginas de Mistério existe um despedaçamento e aspereza constantes no que é lido, produzindo uma densidade e emoção capazes de nos ferir e de nos acordar. No final do conto há quem veja luz e há quem veja mistério. Tudo será construído por cada alma.
Revista A Águia Nº 26 - fevereiro de 1914.
Exemplar guardado na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.
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Revista A Águia Nº 26 - fevereiro de 1914. Página 41.
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Através da vivência de um homem, o Artista, sentimos a melancolia perpétua a bater nos ossos. A loucura não andará longe disto. Está junto à garganta, numa sensação de agonia que circula até ao estômago e nunca é breve. Se alguém vem contra nós, caímos. Sentimos a morte e o declínio, o interior do Artista cercado por si próprio (parecendo prever a toma de estricnina por Mário de Sá Carneiro para depois se esticar e morrer, como Ivan Ilitch).
Existe no conto uma habituação ao sofrimento,
uma zona que parece de conforto para o escritor, um espaço que ele domina,
tornando-se um especialista que não quer sair de lá.
Percebemos que há uma vontade de desviar apenas o tempo, não querendo abandonar totalmente a tristeza, pois só assim será
possível criar algo digno e brilhante, mesmo perante a ausência do real ou de ilusões.
Aliás, a única realidade possível é exclusiva ao próprio sujeito. No entanto,
valerá a pena escrever um texto triste se a única forma de escrever esse texto implicar
diretamente a tristeza do seu autor?
Parece-me pertinente refletir rapidamente na questão da
possível teatralidade e do desvio da obra da vida do homem que a escreve. Poderá mesmo acontecer? Tendo lido textos de Mário de Sá Carneiro e as cartas que trocou com
amigos como Fernando Pessoa e José Pacheco, parece-me existir uma relação
estreita entre o que é escrito e o que é vivido interiormente. Ainda assim,
haverá muito texto e subtexto por analisar e para isso a obra O Modernismo em Mário de Sá Carneiro de
Fernando Cabral Martins, constitui,
para quem queira, uma das ajudas.
O Artista de Mistério é para Mário de Sá Carneiro, alguém cansado de viver na
ilusão, adormecido pelas conversas e risos de cortesia, prolongamentos de
estados onde não existe nenhum esforço de convergência. Vê-se
com lucidez, uma alma “toda vidros partidos e sucata leprosa”. Não sente
atração por nada, quer apenas fechar os olhos, mas o seu cérebro não quer
descansar. Está leso da alma, a mesma inquietude que sentia em criança, apesar
de nessa altura o sentido de impossibilidades da vida ser diferente.
Talvez o sofrimento desse sentido à vida daquele
homem. “Pressentira-o quando uma noite, ao caminhar solitário por uma rua estreita, cheio de tristeza sofrida, se descobrira muito mais feliz, com a existência bem mais cheia e embelezada, do que ainda ha pouco, por uma grande praça, antes de lhe descer essa amargura.”
Andava quase sempre com a sensação de morte
ao lado mas sentia que deveria continuar para “bem” das suas obras. No entanto,
se morresse, os outros corpos que se chegassem para trás e só percebessem que
morreu quando as cinzas estivessem altas.
Sentia-se incompreendido, ansiava por uma alma
que o conhecesse inteiramente. Ao encontrar essa alma, a irmã de um amigo, dar-se-ia a libertação do mistério. Ainda assim, “poder-se-iam, em verdade, abater todas as barreiras
entre as duas almas?”.
O questionamento sobre a impossibilidade de
comunicação e comunhão verdadeira e total, que já era descrito nas cartas
trocadas entre Mário de Sá Carneiro e Fernando Pessoa, assume-se como o objetivo
principal deste conto. A maior ânsia do Artista deriva de querer encontrar uma
“alma que o conhecesse inteiramente e que também lhe soubesse toda a alma.”
Há uma aparente convergência das duas almas amantes (porque se conseguiram conhecer totalmente) que morrem de seguida e podem ser vistas apenas como dois corpos esticados e inertes ou como uma fusão total repleta de luz que depois se torna invisível.
A procura de comunicação total assume um valor superior à vida mas podemos apenas pensar que a interrogação não é necessária. Morremos porque morremos. Não sabemos de quê e para quê.
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