domingo, 5 de junho de 2022

Bordello? Já foi, mas o espírito e o humor continuam lá.

No dia 3 de março de 2022 inaugurou na Sala da Paródia, no Museu Bordalo Pinheiro, a exposição que apresentou um dos autores mais irreverentes da atualidade. Bordello. Ao que isto chegou: uma retrospectiva de Hugo van der Ding, resultou de uma parceria entre este museu e a Lavandaria – estúdio de impressão e design. Aqui, van der Ding, inspirado pelo espírito bordaliano, mostrou alguns dos seus desenhos originais, prints em serigrafia, cerâmicas, esculturas em papel, sempre com o humor como pano de fundo. A finissage desta exposição decorreu no dia 18 de maio, como forma de comemorar o Dia Internacional dos Museus, com uma visita guiada pelo autor.


Hugo van der Ding, na inauguração da exposição  Bordello. Ao que isto chegou: uma retrospectiva

Créditos: Museu Bordalo Pinheiro

O que leva um artista da atualidade a expor num museu do século passado? – ainda assim, o “mais divertido de Lisboa”, como se afirma. Para além do acaso, Rafael Bordalo Pinheiro e Hugo van der Ding têm muito mais em comum do que aquilo que pensamos. Uma coisa é certa: que nos fique a vontade de rir e a oportunidade para repensar o mundo em que vivemos, através da obra destes artistas que, ainda que com mais de 150 anos de diferença, nos transporta para a contemporaneidade. 

É neste contexto que surge o principal ingrediente: o humor; como forma de comunicação e com um objetivo ainda maior do que fazer rir: funciona como condutor de perceções, de forma a alertar para situações que melhor poderão ser apreciadas, refletidas e, inclusive, mudadas na sociedade, individualmente ou em grupo.

Fazer humor, ou fazer desenho humorístico (no caso destes artistas), vai muito mais além do que uma concretizar uma expressão, ou uma expressão pictórica ou gráfica. Fazer desenho humorístico é criar uma relação entre o artista e o espectador. E, afinal, de que forma é que estes artistas o fazem?


O Lobo e a Cegonha de Hugo van der Ding
Créditos: Museu Bordalo Pinheiro
Grupo escutórico O Lobo e a Cegonha de Rafael Bordalo Pinheiro, 1900,
Créditos: Museu Bordalo Pinheiro

Com uma forte componente crítica e analítica, sobretudo a nível político, social e cultural, o trabalho de Rafael Bordalo Pinheiro tem como fundamento a reflexão acerca de um país – e também de um mundo – em mudança, sendo o humor a sua ferramenta de trabalho. Nascido em 1846, continua a ser uma referência até aos dias de hoje, destacando-se a sua habilidade criativa e artística em múltiplas frentes, nomeadamente enquanto desenhador, jornalista e ceramista. Apelando ao riso, a obra de Bordalo sempre teve um objetivo: alertar para uma consciência, reflexão e opinião bem informadas. 

 

Já no século XXI, são inúmeros os artistas, a nível global, que se dedicam ao desenho humorístico. Com inspirações no passado, mas sobretudo na expectativa de expressar os acontecimentos do presente, expõe os seus trabalhos não só em jornais públicos, mas também no mundo online, nomeadamente nas redes sociais e páginas internet.


É o caso de Hugo van der Ding, nascido nos finais dos anos 70, que estudou Artes Decorativas Orientais, mas, tal como Bordalo, acabou por desistir da carreira académica em prol dos desenhos que viria a fazer para as redes sociais. Atualmente, partilha diversos desenhos humorísticos, escreve para revistas e jornais, é autor de livros e podcasts e participa, ainda que casualmente, no teatro e na televisão. Desde 2019 que apresenta o programa de rádio Manhãs a 3, na Antena 3. Até aqui, poderia ser um Bordallo II (não fosse este já existir) ou ser contemporâneo de Bordalo Pinheiro (se excluirmos as novas tecnologias do século XXI...).

 

Créditos: Museu Bordalo Pinheiro

É assim, neste contexto, que os dois artistas se tocam. Tentando retratar, sempre como última atualização, os temas do presente, o desenho humorístico deve ter a capacidade de ser sucinto, direto e de rápida apreensão – o que, só por si, é um trabalho bastante complexo. E, como o próprio nome indica, devem não só fazer rir, mas sobretudo deixar o espectador a pensar, a refletir e, de certa forma, levar a que este se identifique com a situação, ou, pelo menos, com o espírito do próprio autor.

 

Bordello. Ao que isto chegou: uma retrospectiva de Hugo van der Ding apresenta-nos, na sala de exposições mais pequena do Museu Bordalo Pinheiro, um conjunto de peças deste artista, inspiradas na obra bordaliana e no sentido crítico do artista do século XIX, mas também no sentido de humor de van der Ding e de que forma nos consegue tocar hoje em dia.

Esta exposição apresentou-nos, assim, diversas peças, de onde se destacou, sobretudo, a sua forte componente gráfica, através de diversas caricaturas e cartoons.


Os gatos de Hugo van der Ding
"Gato com óculo incrível"
"Gato com óculo não menos incrível"
"Gato com óculo porventura ainda mais incrível"
"Gato com pala"
Créditos: Museu Bordalo Pinheiro
Gato assanhado de Rafael Bordalo Pinheiro
Créditos: Bordallo Pinheiro


Fazer uma caricatura de algo, ou de alguém, é, no fundo, realçar determinados traços físicos, mas também emocionais, não deixando de manter o objeto/figura reconhecíveis. O termo surge do italiano antigo caricare, como forma de expressar exagero e realidade, estando associado ao hipérbole e deformação de algo. Ao mesmo tempo, o cartoon é uma forma de expressão marcada pela presença de humor e tem como objetivo comentar ou criticar algo, ou alguém, nomeadamente personagens/situações públicas. A sua mensagem, que é simples e direta, é potenciada pela memória visual da imagem, sendo a sua leitura bastante acessível.


Hugo van der Ding, autorretrato (2022). 

Através dos traços, conseguimos perceber que a inspiração partiu da famosa figura do Zé Povinho. 

Peça exposta à entrada da exposição.

Créditos: Museu Bordalo Pinheiro

Mas surgem também outras formas de nos fazer rir. Hugo van der Ding não se inibiu e decidiu levar a sua exposição para outro nível – ou pelo menos fugir a uma curadoria mais tradicional, ao trazer objetos como uma bola de tecido (referindo-se a ela como o único brinquedo que terá tido enquanto criança), um pequeno objeto em forma de elefante (que, segundo o artista, não passa de “uma merda qualquer” – ainda assim, digna de estar exposta), ou uma simples pinha (que daria lugar a duas, não estivesse a outra “para restauro”). Será isto outra forma de criticar?  


Créditos: Museu Bordalo Pinheiro
Créditos: Museu Bordalo Pinheiro
Créditos: Museu Bordalo Pinheiro

A exposição temporária viria, assim, a terminar no dia 18 de maio, nas comemorações do Dia Internacional dos Museus. O Museu Bordalo Pinheiro – que não esperava mais do que 40 visitantes – deparou-se com cerca de 200 pessoas nesta finissage, para assistir a uma visita guiada feita pelo artista. Tendo em conta que a Sala da Paródia está limitada a cerca de 20 pessoas (3 a 5 no contexto de pandemia), o Museu decidiu realizar a visita na Galeria de Exposições Temporárias, onde se encontra a exposição Bordalo em Trânsito. Esta visita contou não só com van der Ding, mas com a equipa do Museu, em especial com Pedro Bebiano Braga que, enquanto investigador deste equipamento, viria a contribuir com a sua perspetiva mais formal para uma visita que acabou por ser descontraída e sem grandes cerimónias – ou pelo menos das sérias.


Visita guiada à exposição, com Pedro Bebiano Braga e Hugo van der Ding

Créditos: Museu Bordalo Pinheiro

    Bordello mostrou-se, desta maneira, uma outra forma de encarar a atualidade e elevar, assim, o espírito de Rafael Bordalo Pinheiro, que sempre apelou ao pensamento crítico para uma cidadania consciente – sendo estes, ainda, dois grandes desafios da educação contemporânea.


    O trabalho de Hugo van der Ding poderá ser acompanhado nas redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter), sendo que o de Rafael Bordalo Pinheiro poderá ser visto neste museu, no Campo Grande, em Lisboa. Quem sabe, não poderá surgir outro divertido encontro? A meu ver, esta pequena exposição temporária requeria apenas mais um “detalhe”: desenhos, e mais desenhos e mais uns quantos, inúmeros. Mas talvez não coubessem nestas quatro paredes.



Referências:

https://www.instagram.com/hugovanderding/

https://www.facebook.com/hvanderding

https://twitter.com/hugovdding

https://museubordalopinheiro.pt



 


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