O mostruário da TecnoLux: a aura condensada de uma época |
"Instaura-se a humanidade quando se instaura a sociedade, mas instaura-se a sociedade quando há comércio de signos." – Umberto Eco, O Signo.
A dinâmica comercial das cidades faz com que o imaginário gráfico de uma época esteja sempre num contínuo processo de reformulação. As ruas da cidade que vivemos e lembramos na infância contém uma atmosfera de logotipias e reclames próprios, e o desaparecimento dessas marcas comerciais eventualmente soa como algo precioso, identitário, que foi tirado de nós.
Lisboa viu surgir nas décadas de 1930 e 1950, no alto de
seus edifícios, luminosos letreiros comerciais que mudavam sua paisagem
noturna. Os letreiros de néon se integraram de tal modo à paisagem da Praça da Figueira que eram mesmo a própria aura de modernidade que aqueles tempos anunciavam.
«Cidade Gráfica – Letreiros e reclames de Lisboa no Século XX», uma exposição no âmbito do programa Mude Fora de Portas, do Museu do Design e da Moda, em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa, nos transporta para uma outra dimensão gráfica dessas ruas e praças. Tão preservadas num primeiro olhar, e ao mesmo tempo tão modificadas ao se observar essas dinâmicas nem sempre sutis.
A exposição montada no Convento da Trindade se esmera em recuperar a atmosfera gráfica dessa já antiga cidade: de letreiros pintados à mão, no início do século XX, aos grandes letreiros de néon a partir da década de 30, passeia-se por técnicas em declínio mas ainda hoje presentes. Esse importante momento da vida comercial lisboeta é reativado no espaço expositivo com placas descartadas de antigos estabelecimentos, muitos já encerrados.
O percurso expositivo tem início com os livros de registos da
Câmara Municipal de Lisboa com taxas de licenciamento. Croquis com o desenho do letreiramento e os materiais utilizados eram e são ainda obrigatórios. O projeto Letreiro Galeria, com início em 2014, tem salvaguardado e resgatado letreiros desativados da cidade. É uma investigação em curso, com informações sendo recolhidas nos Arquivos da Câmara Municipal ou testemunho de terceiros.
A exposição, com design de Raquel Santos, é dividida em tipologia de materiais. No primeiro andar tem-se tabuletas de vidro, metais e portas guarda-vento. Na transição para o segundo andar, letreiros em néon, agrupados por estilo de letras: manuscrita e itálicos, figuras, letras sem serifa e estilizadas e por fim uma sala de letreiros de grandes dimensões. Como complemento, desenhos técnicos e fotografias de letreiros desaparecidos, desde icónicos néones dos telhados dos Restauradores e Rossio, até os anteriores à era néon, contextualizando esta coleção numa evolução gráfica das fachadas de Lisboa, segundo o texto de apresentação dos curadores Rita Múrias e Paulo Barata.
Barbara Coutinho, diretora do Mude, lembra em sua apresentação que, depois de muitos anos deixados ao abandono, os letreiros
voltaram a ser apreciados pelo seu valor estético e, em consequência, adquiriram um maior valor comercial. "A exposição pretende contribuir para um
reconhecimento dos letreiros enquanto bem cultural, atentando para a
necessidade de estudo e conservação, mas sobretudo para a importância da sua
preservação in loco e funcionamento”, escreve.
Pintadas a mão
A reprodução da fachada pintada da antiga Loja de Loiças e
Vidros na Rua de Santa Marta ilustra um momento, no fim do século XIX e início do Sèculo XX, em que os estabelecimentos
exibiam nas fachadas o nome da loja e toda a informação do tipo de produtos à
venda, com letras desenhadas e pintadas à mão, sem muito rigor técnico. As
primeiras letras eram colocadas como capitulares ou versaletes, de forma pouco
cuidada, misturando características e estilos numa mesma fachada. Letras com e
sem serifas, condensadas e não condensadas, letras ornamentadas junto de outras
com efeito de tridimensionalidade. Na grande maioria, ocupavam todas as áreas
possíveis, na vertical e na diagonal, na horizontal ou em arco.
O registo
fotográfico dessas fachadas remete-nos para uma paisagem urbana muito gráfica e
interessante, consideravelmente diferente do que se observa hoje, com muitas lojas forradas de forma
idêntica com impressão digital. O aspecto banal é o preço que se paga pela praticidade do digital, mais simples e conveniente.
Loja José d’Oliveira & Barros. Loja de utilidades domésticas no Largo de São Domingos. Foto de Alberto Carlos Lima, Arquivo Municipal de Lisboa. |
O vidro e o metal
O período das pinturas a mão foi sucedido pelas tabuletas em metal ou madeira, com e sem letras em relevo, e
vidros com letterings pintados. Esses letreiros em vidro se tornariam raros pois eram fáceis de destruir na
alteração dos negócios. Foram aos poucos sendo substituídos por outros materiais como
caixas de luz, reclames luminosos e impressões digitais. As portas de guarda-vento eram típicas dos alfaiates da Baixa. A exposição exibe três portas com o nome comercial pintado no vidro.
Reserva-se no percurso um espaço também para as letras em metal. Há ali peças de Raúl Tojal, arquitecto autor de diversos letreiros em Lisboa, entre eles o da Livraria Bertrand, ainda hoje nas fachadas da Rua Garrett. O Museu da Fundação Portuguesa das Comunicações cedeu para a exposição os letreiros da Ourivesaria S. João Lda, da Sapateria A Elite, e dos Correios e Telégrafos.
A luz
A tipografia comercial se orientava por manuais de lettering de autoria de arquitectos e engenheiros
responsáveis pela obra do edifício e respectivo estabelecimento comercial. Em algum momento passou a ser fornecida pelas empresas de reclames luminosos como a Electro (anos 30 e 40), e depois
Neolux, Contacto, Simões Junior, Apadil, até os anos 90. A partir da década de 70 os
catálogos Letrasete Mecanorma, com letras de decalques, foram base de
inspiração e adaptação das formas de letra, permitindo granes ampliações e uma
maior variedade de tipos com mais rigor.
O processo de produção de um letreiro em néon é complexo. A modelagem dos tubos de vidro com as curvas incandescentes, o enchimento com gás néon ou árgon, a conexão com os filamentos eléctricos. Um vídeo na exposição regista o processo técnico por detrás dos néones no Laboratório de Victor Horta. O grau de dificuldade das etapas da montagem de um letreiro em néon é tal que, ao conhecê-lo, os objetos expostos parecem ainda mais exuberantes.
As principais empresas desse ramo ainda são atuantes: Neolux, Letratec, Apamalux, Apadil.
E há também os vidreiros egressos de empresas que fechavam e criavam o próprio laboratório:
António Reis, Victor Horta, Sebastião Monteiro Gomes.
São essas empresas e nomes que estão por trás de logotipos luminosos que marcaram a memória da cidade, como o Rei das Fardas, a Rosa d´Ouro, o Império dos Sapatos, o Restaurante Pessoa.
Um espaço especialmente impactante da exposição é a sala reservada aos grandes letreiros. Ali, voltam a brilhar as letras azuis do Hotel Ritz, do Diário de Notícias, entre tantas outras marcas e estabelecimentos que integram o imaginário gráfico dos portugueses, como Capricho, Brilha Rio Restaurante, Machado
Oculista, Lisbonense Som, Atelier Chefs, Docapesca, alguns deles restaurados para a exposição pela Neolux.
Entre letreiros e frisos decorativos da fachada do edifício, impressionam os números do Hotel Ritz: 110 transformadores, 1250 metros de tubo néon, 2000 metros de cabos de alta tensão.
Ocaso dos letreiros luminosos
Os letreiros luminosos se tornariam necessariamente um elemento gráfico relevante na experiência urbanística e arquitetónica. Se durante o dia estão friamente integrados às fachadas dos edifícios, à noite parecem "reamanhecer" a cidade, enchendo de cor as ruas.
George Claude apresentou a primeira lâmpada com gás néon, na França, em 1910. Levou a inovação em 1923 para os EUA onde se espalhou. Os primeiros registos no Arquivo Municipal de Lisboa são de 1938.
Após o auge de licenciamentos na década de 50, o alto custo de manutenção fez com que muitos fossem sendo apagados. O risco de acidentes com estruturas montadas no alto dos prédios, também fez com que fossem desmontados e esquecidos.
A Praça Dom Pedro IV concentrava grande parte de
néons. Com o passar dos anos foram sendo degradados e desativados. No fim dos
anos 90 e até os anos 2000, durante o mandato de Dr. João Soares como
presidente da CML, os letreiros foram sendo removidos dos telhados, por
questões de segurança e reabilitação daquela praça.
A exposição, parte do acervo da Cidade Grafica, é a materialização de uma proposta que visa dar à cidade, a médio prazo, um museu do néon, a exemplo do que já fazem cidades como Las Vegas e Varsóvia.
O encanto das placas, associado a uma visão nostálgica e ainda presente da cidade, é a semente desse museu. Conectados ao design industrial e ao desenho de letra, e a uma forte ligação à história do comércio na cidade, remetem a uma memória gráfica, levando a uma reflexão sobre a relevância de tais objectos na arquitectura de Lisboa e na própria identidade de seus cidadãos.
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