«Colecionei livros de artistas por várias décadas, muitos oferecidos pelos próprios artistas, outros encontrados por acaso vasculhando livrarias. O que se segue é uma pequena seleção de livros de artista na coleção do Espaço Atlântida.»
– Alberto Manguel (Escritor,
tradutor, ensaísta, editor e diretor do espaço Atlântida/Centro de Estudos da
história da Leitura/EGEAC).
A experiência na exposição ‘Livros Desobedientes’[1]
começa logo na recolha da folha de sala. A operação consiste em rasgar uma
folha de um dos livros em exposição, aquele livro específico que contem folhas
de folhas de sala. Numeradas, como em qualquer outro livro. A minha traz um
número específico e único, o da minha experiência. Uma das colegas alertou:
“Pede a folha de sala”. Eu procuro-a sempre, mas não sei se o teria feito na
ausência da indicação e das próprias folhas de sala que estavam escondidas num
dos objectos expostos. É interessante pensar que essa folha faça parte de um
dos livros em exposição numa mostra de livros desobedientes. E que tenha de ser
rasgada, arrancada, de um desses corpos intocáveis.
Uma das obras expostas é constituída por folhas gigantes, com cerca de 50 x
70 cm, em que cada uma vale por si só, com espessura de tela endurecida com
gesso, onde estão gravados os relevos das texturas das diferentes faces de uma mesma
pedra. Infelizmente perdi o registo fotográfico e a informação sobre a respectiva
autoria.
Outra das peças é o conto do ‘Capuchinho Vermelho’[2],
contado apenas com manchas de cor, círculos e rectângulos, dispostos num leporello
que nos transporta pela viagem da estória desde o início até ao fim.
‘Little Red Riding-Hood’ (1965), de Warja Honegger-Lavater
Ao longo do trajecto da exposição, deparo-me com intervenções que colocam
os objectos noutro patamar do que pode ser um livro. Que dão novos significados a
blocos que por vezes nem tem páginas, nem palavras, que podem nem sequer ser um
bloco, um corpo. Ultrapassando o conceito de livro enquanto contentor de planos
de textos, ou mesmo de imagens, que compõe uma obra de um autor. E valendo por
si só enquanto obra/objecto artístico.
Estes artefactos têm aura de objecto plástico, de obra de arte. O livro ganha formas e contornos e dimensões que, não só desobedecem ao conceito mais conservador de livro, o suprimem e extrapolam, colocando-nos diante de objectos não reproduzíveis, únicos, como as loucuras que os pensaram e criaram.
Umas páginas adiante encontro quatro peças de ‘Livros de Obstáculos’[3]. Camadas de folhas dobradas em locais e momentos distintos e cobertas de nuances carregadas de grafite, que me remetem para leituras de níveis topográficos, conferindo aos objectos características de declives de terrenos, de paredes de edifícios, ou de páginas de diários gráficos de alguém que se dedica à busca incessante do tom perfeito e metálico do carbono ou do chumbo. Pousado entre páginas abertas, como se de um marcador de livros se tratasse, jaz uma das barras da grafite que as cobriu.
«Toda a narrativa, tal como todo o pensamento, é declinado em
imagens. Os processos da literatura, da alma, do mundo afetivo, da fantasia, do
sonho, ou de qualquer delírio ou visão mística existem imageticamente. Como diz
Manguel, “formalmente, as narrativas existem no tempo, e as imagens, no espaço*”».
– Excerto do texto da folha de
sala da exposição, com *citação de Alberto Manguel, ‘Lendo Imagens’, p.24.
[1] ‘Livros
Desobedientes’, uma exposição de alguns dos livros de artista da colecção de
Aberto Manguel e de um conjunto heterogéneo de outras práticas artísticas que
se debruçam sobre o conceito alargado do livro, patente no espaço Brotéria
entre 15 se Setembro e 9 de Novembro de 2022.
[2] ‘Little
Red Riding-Hood’ (Capuchinho Vermelho), criado em 1965 pela artista suíça
Warja Honegger-Lavater, conhecida pelos seus livros-acordeão desdobráveis, nos
quais retractava contos de fadas através de um sistema pessoal de pontos simbólicos
coloridos, que representavam as personagens e a acção.
[3] ‘Livros
de Obstáculos’, (2013 – 2022) de David Correia Gonçalves.
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