quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

“The Artist’s Reserved Rights Transfer and Sale Agreement”

Apesar dos esforços feitos pela Arte Conceitual, com o passar do tempo pode-se perceber que a proposta de descentralização dos espaços e acesso à arte apresentou-se mais na teoria do que na prática. Sobre este ponto, é preciso diferenciar a descentralização de uma possível democratização da arte, tópicos muito discutidos pelos artistas e críticos da época. Por mais que as experiências desses artistas e curadores buscassem ultrapassar os limites pré-estabelecidos do sistema de arte, ainda assim, pouco foi feito rumo à democratização de fato. 

Mesmo que o objetivo da democratização não tenha sido completamente alcançado, foi na busca por uma prática mais descentralizada que o trabalho de Seth Siegelaub desenvolveu certa notoriedade, principalmente por apresentar alternativas aos espaços institucionalizados pelos quais as obras de arte transitavam até então. Percebendo que as forças que atuam no sistema de arte são desiguais, e, dessa maneira, buscando criar uma situação de possível equilíbrio entre elas, Siegelaub deu início a uma de suas últimas atuações no mundo da arte: a criação do “The Artist’s Reserved Rights Transfer and Sale Agreement”, em parceria com o advogado Robert Projansky. 

Segundo o curador, com a desmaterialização da obra de arte e, consequentemente, com o alargamento das fronteiras do que poderia ser um espaço expositivo, uma quantidade maior de pessoas poderia ter acesso a esses trabalhos. Mesmo que isso não necessariamente significasse uma democratização da arte, Siegelaub afirmava que o tempo de reconhecimento de um artista era cada vez mais curto, em comparação aos artistas do início do século. Siegelaub também defendeu que esse reconhecimento da classe artística, de certa maneira, era responsável por uma deterioração da ideia de que o artista é um estrangeiro da própria sociedade. Isto é, através de uma desmistificação da atividade artística pode-se reconhecê-la e, então, valorizá-la como tal. Entretanto, o curador destacou que ainda se fazia necessário criar uma união entre os artistas, na qual eles pudessem cooperar entre si, e não competir entre si – como era tão comum, segundo suas observações. Como exemplo, ele cita a  ASCAP (American Society of  Composers, Authors, and Publishers): “onde um indivíduo pode compor uma música e ter uma relativa certeza de que, quando ela for tocada, ele receberá royalties por isso” (SIEGELAUB; NORVELL, 2001, tradução nossa).

Além da pesquisa em documentos pré-existentes, Siegelaub também se baseou nas respostas de um questionário que ele enviou para mais de quinhentas pessoas envolvidas no mundo da arte para a construção de seu contrato. A partir desses dados, Siegelaub e Projansky dividiram o documento nos seguintes sub-tópicos: “o que o contrato faz”, “quando usar o contrato”, “como usar o contrato”, “o marchand”, “os fatos da vida: você, o mundo da arte e o contrato”, “execução” e “resumo”. Todos esses tópicos, junto à uma capa e uma introdução escrita por Siegelaub foram diagramadas em um pôster dobrado em oito páginas, cujo verso continha o contrato em si. 

Os primeiros três tópicos traziam informações práticas referentes a utilização do contrato, principalmente o primeiro deles, que trazia os direitos cabidos ao artista e ao receptor da obra. Entre as suas cláusulas, pode-se destacar: pagamento de 15% sobre qualquer aumento posterior do valor de venda da obra, a notificação e participação ativa sobre qualquer situação de exposição da obra, todos os direitos de reprodução sobre a obra e o pagamento de metade de qualquer renda recebida pela exposição da obra, se houver. Em relação ao comprador da obra, o texto do contrato traz argumentações de que estas cláusulas garantem um bom relacionamento entre artista e colecionadores, um reconhecimento justo do trabalho de arte, além de uma certificação de que o proprietário está “usando a obra de acordo com as intenções do artista”. Ao longo dos quatro últimos tópicos, os autores do documento apresentam diversos argumentos que podem ser usados por pessoas relutantes ao contrato, e, principalmente, como se pode convencê-las do contrário. 

Sobre o uso efetivo desse contrato, é importante ressaltar que este permaneceu como um contrato social, visto que a legislação norte-americana já previa uma lei que protegia a obra de arte primeiramente como uma propriedade privada do comprador – o que já evidencia as dificuldades referentes à proteção dos direitos dos artistas nesse processo. Na ocasião de seu lançamento, foram impressas 5000 cópias (custeadas pela School of Visual Arts), que foram distribuídas à extensa lista de contatos de Siegelaub, bem como disponibilizadas gratuitamente em escolas de arte, cafés, bares, museus, galerias e espaços expositivos da cidade de Nova York. O contrato também foi publicado em mídias impressas internacionais, como as revistas Studio International (Londres), Domus (Milão), Museum Journal (Amsterdam), Data (Milão) entre outros meios. Na Documenta 5, realizada em 1972, o curador Harald Szeemann também incluiu o contrato no catálogo da exposição. Apesar da ampla divulgação do “The Artist’s Reserved Rights Transfer and Sale Agreement”, o uso do contrato ainda encontrou certa relutância por parte do sistema de arte, entre artistas e colecionadores. 

Por mais que a sua aplicação tenha sido recebida com relutância, é fundamental afastar as intenções do contrato de possíveis utopias. Mesmo que seu objetivo fosse criar um equilíbrio entre o artista e as forças econômicas envolvidas no sistema de arte, Siegelaub reconhecia que muitas das questões que perpassam esse objetivo eram estruturais ao sistema capitalista e, portanto, estavam fora de seu alcance de atuação. Na entrevista concedida à Hans Ulrich Obrist, ele examina retrospectivamente: 

"De maneira nenhuma foi intencionado a ser um ato radical, foi criado para ser uma solução prática (....) para uma série de problemas relacionados ao controle do artista sobre seu próprio trabalho; não sugeria uma negação ao objeto de arte, apenas propunha um jeito simples para que o artista tivesse mais domínio de seu trabalho uma vez que este deixasse seu estúdio. (...) Mas as questões socioeconômicas mais profundas do papel e função da arte como mecanismos de transformação da sociedade, a possibilidade de jeitos alternativos de se fazer arte ou de se apoiar a existência de um artista, todas essas questões importantes não foram endereçadas aqui. Como uma solução prática, o contrato não questionava os limites do capitalismo e da propriedade privada, ele só direcionava, em alguns aspectos, o poder à favor do artista uma vez que seu trabalho fosse vendido." (SIEGELAUB; OBRIST, 2010)







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