Gosto da ideia de fazer uma ponte entre a prática tipográfica e a pintura ou o desenho, algo que tenho vindo a demonstrar ao longo das publicações postadas. Deste modo, irei finalizar o ciclo destas publicações, partilhando uma entrevista feita à artista Isabel Baraona.
Isabel Baraona nasceu em Cascais, em 1974. Leciona na
ESAD.CR desde 2003 no curso de Artes Plásticas. Licenciou-se em Pintura na La
Cambre (Bélgica) e é doutorada em Artes Visuais e Intermedia pela Universidade
Politécnica de Valência (Espanha). Em 2013, no âmbito de um pós-doutoramento
desenvolveu uma investigação que deu origem ao projeto Tipo.pt, um arquivo
online sobre livros de artista e edição de autor em Portugal.
A artista produz livros de artista, de múltiplos, desde
2008. O desenho, a pintura e a palavra são elementos essenciais nas suas obras.
FT Numa das
entrevistas que partilhou comigo, naquela troca de emails inicial, disse que
desde muito nova teve acesso à biblioteca da casa dos seus pais, que pode
usufruir dos mais variados livros, desde ficção, romance, aventura, entre
outros. Achei curioso até referir que sentiu a necessidade de se isolar na
biblioteca, nos livros, para ter algum sossego. Por isso, em que momento é que
quis incluir a palavra, o texto no seu projeto e este episódio recorrente da
biblioteca teve importância direta no seu projeto artístico?
IB Sim, acho que
teve de uma maneira muito intuitiva e inconsciente no início. De qualquer
maneira, muito recentemente a minha mãe foi para um lar e eu tenho andado a
fazer arrumações em casa deles e descobri, e não me lembrava de todo, que
quando tinha oito anos, a minha mãe partiu a perna e foi operada, estando muito
tempo acamada. E eu fiz uns jornais para ela, uns jornais de criança, com
publicidades, com autocolantes, com uns papeis de chocolate da Regina, que na
altura tinham muitos bonecos. De alguma maneira, de uma forma muito intuitiva,
a coisa do passar tempo com o livro, e eu não tenho nada contra a televisão,
mas de facto sempre me entretive mais com o livro, e a palavra sempre esteve lá.
Quando estava no Ar.Co...(mostrando-me um caderno de 1996, quando a Isabel era
estudante. Caderno composto por recortes, frases escritas). Admito ter uma
obsessão com determinados autores, algumas das frases são do poeta Al Berto,
outras são da minha autoria. Eu “roubo” mas gosto sempre de identificar os
autores ou os livros de ondem veem as frases retiradas. Estes são os primeiros
cadernos pintados que fiz, os que ficaram na gaveta. A palavra sempre esteve lá
ou fragmentos de frases, mas eu nunca me
tinha atrevido assim a escrever textos ou a assumir a possibilidade do texto
coexistir com o desenho de uma forma mais
complexa ou até de o texto só existir, quase. (Mostrando a Oração)
Em 2010, quando acabei a tese de doutoramento, o escrever a tese foi um
tormento, mas acabou por me desbloquear uma série de tiques e ideias
pré-concebidas que eu tinha até sobre o meu próprio trabalho e eu escrevi o meu
Prière de bonheur,1 escrevi em francês porque trabalhava com uma
galeria belga, formei-me na Bélgica, na Cambra e fiz uma série de desenhos e
fiz uma série de desenhos e escrevi um texto que se chamava Prière de bonheur.
Foi a primeira vez que eu assumi a escrita com uma autonomia particular. E
agora, durante o confinamento resolvi traduzir ou reescrever esse texto, não
era possível fazer uma tradução porque há jogos de palavras que eu, e também
porque passaram dez anos, fiz esta versão portuguesa 2, oração é assim
uma palavra importante. A versão portuguesa só tem estes desenhos singelos, que
são as mãos na capa e no interior, como espécie de, vá, coração que se sobrepõe
à palma da mão e o texto é uma ladainha que se vai repetindo em crescendo. (A
artista leu uma página do livro) O texto, ele vai crescendo e repetindo até
chegar a um…eu não gosto de chamar poema, mas vou-lhe chamar…prefiro ficar com
a palavra texto, mais longo. E a segunda parte do livro continua a haver uma
declinação de frases, mas a ordem é diferente, portanto é mesmo uma ladainha. Por
outro lado, no âmbito da publicação, quando eu estive em França, em pós-doc,
estive só seis meses em Rennes, não estive bem seis meses, porque depois fui
fazer uma residência, mas estive bastante tempo em Rennes, que é uma cidade na
Bretanha. A universidade é boa, mas a cidade é assim pequena, é uma cidade de
periferia, a Grã-Bretanha tem um rude Inverno ainda por cima, e eu comecei a
fazer uns postais que eu chamei Cartas de amor. Estas cartas de amor
eram vistas do meu quarto. Estas foram as primeiras (mostrando dois postais),
foram escritas em francês também, visto que eu estava em Rennes. Esta era a vista
do meu quarto em Rennes e esta era a vista do meu apartamento onde eu vivia em
Cascais, porque originalmente eu sou de Cascais. Eu chamei-lhe de Postais da
periferia e quando voltei a Portugal tive um eco tão bom destas cartas de
amor que eu mandei aos meus amigos, a alguns artistas. Comecei a fazer outras
cartas de amor, da primeira casa onde vivi aqui nas caldas, que tinha esta
magnífica araucária à frente da cozinha. Portanto, há sempre um texto e há
sempre uma imagem do que eu vejo da janela. Isto era o que eu via da janela da
sala (mostrando outro postal), este então fiz no início do ano e diz “e no
primeiro dia a arreganhar um sorriso, melindrosa e nua, afincadamente feroz
todo o ano”. Fiz alguns da janela de casa dos meus pais, porque é a casa paterna
e materna, como este por exemplo (mostrando um novo postal).
FT As fotografias
estão lindíssimas, estão muito bem enquadradas.
IB São muito
simples, porque eu não fiz propriamente uma edição de fotografia. Eu a primeira
vez que participei com estes postais, a convite de uma professora brasileira,
num projeto que se chamou Variante Circular. Como era uma professora
brasileira e eu dei uma conferência por zoom, claro, para os alunos dela de
mestrado, eu resolvi usar uma fotografia da escola (mostrando a fotografia da
ESAD), porque eu já estou há vinte anos na escola que, de alguma forma também é
a minha casa, e a escola, a ESAD, tem um bosque à volta. Então agora, mudei de
casa, portanto a vista da minha janela é outra. Tenho uma varanda cuja porta
faz imensos reflexos de dentro para fora
e então, já tenho umas cartas de amor em relação a esta casa. E, para retomar a
tua pergunta, para além dos livros onde o texto aparece quase numa relação vá,
que na altura eu não sabia o que era a poesia visual, mas que aparece quase
numa relação de poesia visual. Mais tarde, aparece como texto autónomo e há
este outro projeto, que é um projeto muito peculiar… Se tu me deres o teu
endereço, tenho muito gosto em mandar-te alguma carta de amor também.
FT Ah, obrigada!
Gostaria muito sim.
IB As coisas vão
acontecendo não é, porque quando…como é que hei de dizer…o trabalho muda, a
vida muda e a relação que vamos tendo com o desenho ou com a escrita ou com a
pintura, vai-se adaptando, digamos assim. Ou vai-se adaptando ou vai-se
alterando conforme o teu contexto, os
desafios que surgem, o que vais conhecendo, porque no fundo estamos sempre em
formação, estamos sempre em abertura, ou eu quero estar sempre disponível para
aquilo que ainda há a fazer.
FT E às tantas, há
uma área que faz mais sentido ser explorada em certo momento, ou então depois
até conjuga-las, dependendo do que estamos a experienciar ou a sentir.
IB Sim, claro.
FT Quando falou do Prière
de bonheur, o projeto inicial não é como é a versão portuguesa.
IB Não, é muito
diferente mesmo, eu vou-te mostrar. (A artista levantou-se para ir buscar o
livro) O meu projeto de doutoramento foram cinco livros, também posso ir ali
buscar (levantou-se de novo). Então, o meu projeto de doutoramento são estes
cinco livros pequeninos, que estão na Gulbenkian, se quiseres ver e, eu quando
estava a fazer estes desenhos, dei por mim, porque sempre usei muito a figura, sempre alguns autorretratos 3 ficcionais. Há
sempre assim uma coisa meio violenta, às vezes, entre os personagens , uma
relação de poder ou de autoridade ou de hierarquia entre os personagens que,
estão sempre a sofrer nas mãos dos outros. E, foi a primeira vez que comecei a
pintar palavras e foi um bocado estranho para mim. Nunca analisei isso de uma
maneira muito profunda, até noutras línguas. Portanto, eu falo o inglês banal,
não sei grande sofisticação, mas estas palavras que, às vezes, são um bocadinho
ambivalentes, podem ter várias conotações. Comecei a pintar estes textos
(referindo-se ao Livro negro),
estes textos não, estes fragmentos, estas palavras, estas expressões. Depois,
lavava as páginas, elas ficavam mais ou menos elegíveis e eu dava outra camada.
Eu gosto muito de tinta da china, há alguma tinta da china colorida, penso que
sabes e, literalmente lavava na banheira e voltava a pintar até quase a folha
não aguentar mais nenhuma camada de tinta, já não receber tinta. E então,
percebi que esta coisa do texto ia mesmo começar a ter primazia. Isto foi para
aí em 2008 ou 2009 e quando estava já muito adiantada no doutoramento, percebi
que havia uma série de palavras recorrentes que apareciam nos desenhos. Comecei
a organizar, uma coisa que eu faço às vezes é, abro uma pasta no computador e
vou atirando para lá coisas, mas não guardo muito, mas é só uma maneira de
perceber onde é que aquilo vai. Tenho uns cadernos, depois também não guardo
nada disso, só me interessa depois guardar o que acontece a partir daqueles
esboços, mas vou juntando papelinhos, vou colocando assim coisas na parede e
comecei a escrever esta press (mostrando Prière de bonheur). Bonheur em francês é uma alegria, é felicidade. Alegria e felicidade não são
bem a mesma coisa, mas também era difícil traduzir bonheur…é uma oração para
a felicidade, enfim. E comecei a organizar texto, mas sobretudo comecei a
pintar as palavras. E há um conjunto de pinturas que curiosamente eu vendi a
exposição inteira, na Bélgica, foi um momento muito feliz para mim. (mostrando uma página do Prière de bonheur) 4 Portanto, lê-se a palavra maison, casa, mas depois
as outras percebe-se que há um nous, nós, mas as outras já só são fragmentos.
Dá para ver porque depois se ligam ao texto impresso, que é um devenir, ou seja, “em de vir” ou “tornar-se”, mas já só são estas manchas
vermelhas muito densas.
FT Parece stencil, quase.
IB Pois, mas não é. Eu pinto à volta, portanto
vou deixando ver as camadas inferiores e vou pintando à volta, que é aliás uma
espécie de técnica, não sei se posso chamar assim, que depois apurei para outro
projeto que se chama o amanhã. 5 Amanhã é uma ladainha, “amanhã
vai ser melhor”, “amanhã vai correr bem”, “amanhã vai acontecer”, “amanhã há
mais esperança”, “amanhã há desejo, vou viver”. E o amanhã, aliás, desdobra-se
num livro, em pintura, em cartazes, numa instalação, o amanhã proliferou-se assim mais para 2016. Mas agora desculpa, perdi-me…
5 amanhã |
FT O que eu até queria perguntar, é isso mesmo,
como me teve a mostrar, é curioso como decidiu reescrever a versão portuguesa
de uma maneira tão diferente. Porque é que a versão portuguesa não teve essas
palavras pintadas?
IB Porque as palavras já estavam pintadas e
porque se calhar em português o ter que reescrever o texto, começar por
traduzir e perceber que a tradução não é possível, que há jogos de palavras que
não iam funcionar. E ter que reescrever uma parte do texto, mantendo um tom…às
vezes eu brinco e digo, mantendo a minha oração feminista. Esta afirmação de
seja o que for que aconteça, estás quase a viver sempre uma espécie de arrepio.
Há uma agressividade latente em torno de ti, do teu corpo, mas estás sempre
neste desejo de uma alegria. Não é uma sobrevivência, é para lá de uma
sobrevivência, é uma existência na alegria. E de repente, aquilo em português
já ganhou outra força, outra dinâmica e eu senti que o desenho já não era tão
necessário. E também é isso Filipa, passam dez anos de um trabalho para o
outro. Eu não vou copiar o meu próprio trabalho, não fazia sentido fazer uma
espécie de citação. Fazia sentido era repensar aquilo agora, onde eu estou
agora, com este contexto agora e então, pintar ali não era necessário. Aliás,
tanto não era necessário que quando me convidaram para esta exposição agora do Amor
Veneris, eu timidamente propus uma coisa que nunca tinha feito antes que, era uma leitura, uma peça sonora, justamente porque aquilo cai
nesta questão da repetição e da ladainha. Ela tem uma força, há uma vertigem
que se cria na repetição e que o trabalho pedia, digamos assim. Eu sei que é um
bocadinho esotérico usar esta expressão, que “o trabalho pede”, mas às vezes o
trabalho encaminha-te para qualquer coisa que eu não esperava. Eu gosto de
arriscar, acho que já percebeste, não estou muito presa àquilo que eu já sei
fazer. Isso se calhar é muito confuso, até para quem está de fora do trabalho.
FT Eu até acho que
isso enriquece o trabalho, não fica presa ao mesmo.
IB É, mas sabes que
as instituições, as galerias, o mercado não gosta muito.
FT Dá-se primazia a
uma linha contínua, digamos assim?
IB É, acho que sim
(entre risos). Mas eu não estou muito preocupada com isso. E portanto, fiz uma
peça sonora pela primeira vez, justamente porque esta oração, ela tem essa
ligação ao primeiro texto, mas ela já é outra coisa, e eu sou outra pessoa dez
anos depois.
FT Exato…Não tinha
noção de que tinha sido um lapso temporal tão grande, dez anos.
IB Não foi uma coisa
programada. Aliás, ninguém programou o confinamento, não é? Estamos em casa e
eu senti a necessidade de estruturar os dias e o trabalho é um foco de tensão
muito importante. E arrumar e ir buscar coisas antigas foi uma maneira de
manter uma certa sanidade mental.
FT Foi um tempo
muito difícil, a nível da criação. Ainda por cima eu estava no meu segundo ano
de faculdade e, portanto, não tinha ainda um ritmo de trabalho muito bom. E, de
facto, criar alguma coisa ali, não foi muito fácil. Mesmo as condições, eu nem
me posso queixar, mas tinha colegas meus que não tinham condições nenhumas e
isso refletiu-se muito nos trabalhos. Eu nem falo nas notas, digo mesmo na
essência dos trabalhos, não foi o melhor.
IB É isso e ser mais
velha e ter experiência é uma vantagem, porque esse ritmo de trabalho que se
aprende a ter na escola, quando se sai ou tu tens ou não tens. Se tu não tens,
geralmente depois vais fazer outra coisa, quando tu tens, tu aprendes a lidar
com, por exemplo, a sobreposição do dar as aulas e estar a preparar uma
exposição, ou dos momentos que estás mais frágil e tens menos concentração.
Porque o ritmo já lá está, aquilo é uma espécie de fluidez que se cria e nesse
aspeto, o tempo e a experiência trazem uma vantagem.
FT A Isabel trabalha
com texto que é só texto e com texto/palavras pintadas. Para além da diferença
óbvia, há algum que tem um carácter mais importante ou que se destaca? O que
devemos entender destes dois tipos de texto?
IB Os dois conseguem
coexistir. (A artista, enquanto respondia à minha questão, partilhou um projeto
que ainda não pode ser divulgado. Por isso, parte da resposta dada fica
suprimida). […] sabes, eu sou uma leitora, sou uma amante da literatura, não
sei se tu já leste o Jorge Luís Borges, ele tem um belíssimo conto sobre um livro
infinito, ele tem um belíssimo conto sobre a biblioteca. Bem, ele não é o único
escritor a especular sobre esta coisa do livro que se altera nas nossas mãos,
por causa de uma história que se vai alterando conforme nós vamos lendo. E,
acho que é um lado lúdico também e de não haver uma narrativa fechada ou
linear. E acho que nos últimos anos, sinto que o trabalho se encaminha muito
para isso, para uma narrativa não linear. Daí também as ladainhas. […]
FT Pegando agora num
artigo da Willa Goettling, que escreveu sobre o projeto Pequenas Estórias,
há uma frase muito curiosa nesse artigo que é, e agora traduzindo para
português: “As histórias que lemos quando somos crianças tornam-se a nossa
moral e as histórias que lemos em adultos dão-nos vocabulário e gramática para
navegar pelo mundo”. Ao ler isto, é assim que encara o seu trabalho? E outra
questão, é assim que gostaria que os outros encarassem o seu trabalho?
IB Não sou bem eu que
decido isso, não é. Nós fazemos trabalho para o mundo, esse trabalho tem um
contexto, mas o trabalho circula e o que é bom é quando os outros projetam
coisas sobre esse trabalho. Idealmente, as projeções dos outros têm a haver com
as suas histórias, com a sua personalidade, com as suas vivências. Idealmente,
há um bom encontro. O que eu gostei no texto da Willa é que ela sem saber,
porque embora a gente tenha conversado, eu na altura não me lembro de lhe ter
dito que a primeira série de trabalhos que eu fiz e que expus publicamente, foi
sobre o capuchinho vermelho e as mitologias. E eu li muito sobre a psicanálise
dos contos de fadas, e portanto esses arquétipos do corpo feminino, que se
transforma, que é um contentor, não é necessariamente um contentor que é um
útero, é muito mais do que isso. É um contentor de emoções, que tem de se
transformar para sobreviver. Fiquei contente que ela intuitivamente tivesse
chegado lá, mas sabes Filipa, eu acho que o que é bom é que o trabalho ele não
é didático. O que é bom é que os outros projetem coisas e consigam ter uma
relação com o que ali está. E o risco também de apresentar trabalhos, não é?
Tenho a certeza de que já te aconteceu, até no âmbito da escola que é sempre um
contexto onde há um certo cuidado, coisa que não acontece depois, quando sais
da escola e estás a trabalhar com galerias ou com instituições. Tenho a certeza
que tens professores ou colegas que já olharam para o teu trabalho e viram uma
coisa completamente ao lado. Não viram, porque o trabalho não tem a ver com ser
bom ou ser mau, nós temos todos ideias pré-concebidas, sobre o que a arte é,
sobre o que o outro é, sobre o lugar onde ele está e é isso. Às vezes
projetamos e não sai de encontro ao que o autor quer. Enfim, não sei se
respondi à tua pergunta.
FT Claro que sim, até
porque exato, projetar não é impor.
IB Não, nunca. É o campo
da poética, e eu prefiro a poética à didática sem sombra de dúvidas (entre
risos).
FT O tipo de letra que
costuma utilizar nos seus projetos é, o que chamamos em Tipografia de scripte
ou letra cursiva, que diz respeito à escrita corrente à mão levantada. Porquê o
optar por esta fonte? E já pensou incluir outro género de fontes, algo mais
mecânico, por exemplo?
IB Eu não sei se percebi
bem a tua pergunta. Estás-me a perguntar porque é que a maior parte das letras
é escrita à mão…porque é pintura, porque eu venho do desenho e da pintura. E
como tu sabes, provavelmente terás vivido uma experiência semelhante, o desenho
e a pintura podem ser exercícios meditativos e quase hipnóticos. Estás focada
no que a tua mão está a fazer e é essa relação com a matéria que escorre,
pinga, escapa-te, cobre uma parte que tu não querias. É uma coisa muito corpo a
corpo. Eu preciso disso, há um lado sensual na matéria também, porque tem
cheiro, porque suja.
FT Sim, sim.
IB Como tu vês num projeto
mais recente, onde na Oração uso letras, como é que se diz…chamei-lhe
composições tipográficas à bocado, portanto uso fontes do computador. Tenho uma
tara pelas serifas, porque é assim uma coisa intemporal, mas não tenho
explicação. Eu acho que cada coisa pede uma solução diferente. O serem pintadas
ou ser manuscrito é porque é desenho. Antes de ser livro, antes disso é
desenho, é pintura. Tudo o que está impresso foi desenhado anteriormente. Eu
não faço muita coisa no computador (entre risos), porque não tenho prazer
nisso.
FT É algo mais impessoal
até, não é? Não estamos mesmo a tocar no trabalho, estamos através de um rato a
fazer alguma coisa ou…
IB Pois sabes, eu acho que
também é uma coisa geracional. Repara, eu tive o meu primeiro computador aos
vinte e tal anos. Eu não tenho nada contra, não é um preconceito, é a minha
experiência do desenho e da pintura que passa por manipular materiais. E é isso
que me é a fonte de prazer, às vezes de angústia também, quando não resulta
(entre risos). O resto são soluções como na Oração. Mas, também eu sei
que hoje há escolas que os miúdos já aprendem a escrever no iPad, mas eu
aprendi a escrever num caderno pautado, a repetir dezenas de vezes a mesma
letra.
FT Sim, tenho um desses
também.
IB Foi também a tua
experiência, não é?
FT Sim, eu estou a usá-lo também
para um projeto. Tenho lá uma página que no topo diz “Filipa, 2006” e depois é
o resto da página com “Filipa Filipa Filipa” e às páginas tantas o meu “F” já
está a encavalitar-se no de cima e está ali uma salganhada.
IB Mas isso também tem a
haver com o desenho. Quando estás cansada, aparecem outras formas e coisas.
FT Ou parava de escrever e
fazia um rabisco.
IB (Ri-se)
FT Está lá sempre um
bonequinho, ou qualquer coisa. Lembro-me de a minha professora me dizer: “Podes
desenhar, mas depois. Agora é para escrever.” Portanto, já desde cedo que a mão
foge para o desenho, para o esquisso.
IB Mas é um desenho.
FT Claro.
IB Estas palavras, elas
são um desenho. Quando tu olhas, tu vês um desenho inscrito e depois há uma
palavra e essa palavra tem um conteúdo. Mas antes de mais, é desenho, é mancha,
é visual.
FT Sim é verdade…Então
para terminar, gostava de saber, e agora saindo um bocadinho deste debruçar
específico acerca da letra, da palavra, do texto, a Isabel diz muitas vezes que
os seus projetos não são projetos isolados. Há um ponto de ligação entre os
mesmos, qual seria esse ponto de ligação?
IB Olha, depende dos
projetos e às vezes essas ligações elas não são óbvias, elas vão-se tornando
claras com o tempo. É muito curioso porque o que tenho sentido nos últimos anos
é…eu trabalho muito em atelier e tenho a sensação de que às vezes as coisas se
tornam claras por convite, quando existe oportunidade de selecionar o trabalho
para o mostrar fora do atelier. E é quando eu começo a limpar, digamos assim, a
escolher, a relacionar uns desenhos ou umas pinturas ou umas peças com as
outras, que essas relações aparecem. No fundo, há aqui algumas linhas, eu…não
me interessa falar de conceitos propriamente, mas eu acho que há aqui linhas
narrativas que tem a ver com uma auto ficção. Não é autorretrato, é uma auto
ficção, uma espécie de narrativa em que vamos ao eu, mas esse eu não é a
Isabel, é um eu que tem a ver com uma construção de um eu. Há aqui esta quase
relação conflituosa entre os personagens, que também tem a ver com uma
construção de uma individualidade, de um corpo, de uma pessoa. Há sempre
qualquer coisa em mutação, aliás, as palavras também elas são legíveis, mas não
são estáveis. Estão entre o aparecer e o desaparecer, o estarem a submergir em
camadas de tinta, e, às vezes, há trabalhos que eu na altura não…ficam como que
uma espécie de marinar vá, estou a usar uma palavra coloquial. E, conforme
surgem outras oportunidades, há soluções técnicas ou há ideias ou há
influências que vão aparecendo em trabalhos que eu faço muito posteriormente.
Porque eu trabalho de uma maneira quase contínua, mesmo se não faço exposições
todos os anos e mesmo se…tenho assim um percurso, trabalhei na Bélgica, depois
em Lisboa, já trabalhei com duas galerias, entretanto agora já não tenho.
Portanto, mesmo se eu não tenho sempre oportunidade de mostrar o trabalho
publicamente, eu vou sempre trabalhando. O trabalho existe para lá desse
contacto, do que acontece fora do atelier. Acho que já me estou a perder,
desculpa Filipa.
FT Não, não, por favor
continue.
IB E, portanto, é natural
que de repente do Prière de bonheur aparece o amanhã. Não sei se
tu viste o amanhã, eu por acaso vou oferecer uns cartazes a uma amiga.
(levanta-se para ir buscar os cartazes) O amanhã são umas pinturas que
são uns cartazes impressos 6. São todos impressos frente e verso e há
umas centenas de pinturas com estes “amanhãs”. Eu fiz sete ou oito cartazes com
pinturas diferentes, sempre frente e verso, e desenhei umas mesas, se calhar
viste no site. Eu já apresentei isto de várias maneiras na Fundação D. Luís e
até fiz uns rolinhos no altar, aquilo ficava muito bonito, muito apetitoso. As
pessoas literalmente podem levar a exposição para casa. É ruinoso do ponto de
vista financeiro, é ruinoso (entre risos), mas como na VPF, lá na Boavista, eu
também tinha uma pilha muito alta, depois isto tem estas cores de carne,
funcionou muito bem. As pessoas podem ir ver a exposição e se gostarem dos
cartazes podem levar e depois nunca sabem quantos é que há, porque eu também
faço essa provocação. E agora perdi-me outra vez…
FT (risos)
IB Ah! Portanto, Prière
de bonheur começo a pintar as palavras, também há uma coisa que tem a ver
com esse desejo, com essa alegria. Eu não gosto muito da palavra empoderamento,
porque acho que ela tem uma conotação um pouco estranha, mas é isso, tu
reivindicares qualquer coisa que é difícil. E nós como mulheres, a pressão
social eu sinto-a muito forte ainda. Mesmo agora, que já me sinto a envelhecer,
o olhar social sobre a mulher, sobre o corpo feminino, continua a ser pesadíssimo
e portanto, esse desejar de uma autonomia, de um amanhã, do estar vivo, do
estar bem, do ter prazer, de ser eu. Ou seja, quem for esse eu vem para o
amanhã e no fundo, acaba de alguma maneira que eu ainda não sei muito bem. Da
mesma forma que os desenhos figurativos, eles andam sempre à volta de um lado
meio conflituoso entre os personagens. Sobretudo entre os personagens
masculinos e femininos. Acho que respondi de uma maneira muito confusa,
desculpa.
FT Nada disso, e tem nexo
haver essa ligação entre trabalhos.
IB Haver muitas ligações,
porque o trabalho também é diversificado e, às vezes, não são coisas óbvias. Eu
não sou uma artista conceptual que planeia cuidadosamente as séries (entre
risos). A minha forma de trabalhar é um bocadinho mais solta, digamos.
FT Elas quase que surgem,
não é? À medida que vai experimentando.
IB Exatamente.
FT Eu identifico-me com
isso, porque quando nos pediam os relatórios, eu não conseguia, às vezes, dar
uma ideia primária antes de sequer experimentar alguma coisa. Até porque eu
podia pensar de uma maneira, mas não sei, acho que de certa forma é limitador.
Parece que antes de experimentarmos, já estamos a tentar arranjar um tema ou
uma base para explorar, não sei…
IB E o material não
responde.
FT Exato.
IB Tu própria tens auto
censura, que fazem com que tu não sejas capaz de nomear no início, não
consegues…aparece no fazer, aparece durante ou aparece depois do trabalho já
estar avançado.
FT E mesmo a
experimentação inicial pode ser completamente diferente da inicial. Quantas
vezes isso não acontece.
IB Quantas vezes,
exatamente. Olha, ainda me acontece e dá alguma angústia, mas é como é.
FT Parece que o trabalho
está constantemente a descobrir-se. Nós pensamos que era isto e afinal já não
é, mas queremos sempre ir em busca daquilo, eu percebo. É uma angústia muito
boa.
IB Por isso é que eu digo
que às vezes o trabalho pede. O trabalho pede coisas, o trabalho indica coisas,
porque sou eu que faço o trabalho, mas ele devolve-me qualquer coisa. Aquelas
imagens, aquelas experiências devolvem qualquer coisa que eu não esperava, que
quase não parecem ser feitas por mim. E isso é bom, não é.
FT Sim, é quase impossível
não haver essa comunicação. Parece que é uma comunicação que está ali a
acontecer, é um diálogo qualquer.
IB Sim, mas há artistas
conceptuais que conseguem planear tudo com uma clareza enorme. Nós somos todos
diferentes, cada artista revela um bocadinho essa individualidade.
Para verem mais trabalhos da artista:
http://www.isabelbaraona.com/index.html
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