quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Silêncio, experiência inexistente

 

Pensar sobre a velocidade a que vivemos atualmente, o impacto que a mesma tem na consciência do Eu e sobre a nossa identidade, é manifestamente diferente de a viver. Por um lado, há um reconhecer do caos, pensar sobre, racionalizando-o. Por outro, é precisamente o contrário. O caos, mesmo quando reconhecido, é-nos tão próximo que parece que nos envolve ou num abraço asfixiante, ou numa seda apática. Falo, claro, de um ponto vista geral. Só recentemente a minha vida – passo a expressão, entre muitas aspas – “ganhou” esta aceleração vertiginosa sobre a qual tenho vindo a pensar. A experiência sensorial que envolve o fenómeno é, sem qualquer dúvida, mais intensa no que toca ao som/audição. O som, ao contrário da imagem, que, por norma, consiste numa representação de algo, é uma propagação de onda. A característica física do som interage com o ser humano diretamente, revelando, por vezes, ser uma experiência impactante e intensa: o som é recebido por nós através de vibrações que são processadas e compreendidas neurologicamente.

Em A Transformação[1] de Franz Kafka, a descrição que o autor tão bem faz por palavras, descrevendo os pensamentos, monólogos e diálogos, permitiu-me também construir a dimensão sonora de toda aflição, stress e confusão. Conseguimos ouvir o tom com que Samsa se interroga, a preocupação da irmã e dos pais. Os passos, o ranger das madeiras. Mas também conseguimos ouvir o ruído do comboio, a pressa, e, acima de tudo, ouvir os sons da solidão, da impotência, do absurdo, da frustração, da burocracia, da opressão e da desumanização. De toda a pressa para chegar ao trabalho, uma pressa absurda que pesava mais que qualquer transformação anómala, destruidora do seu bem-estar.

Mas o fenómeno que hoje me apetece abordar, é precisamente o contrário: o que é que podemos ouvir quando há ausência de som?

 

Tinnitus[2]

 

É a percepção do som de um apito agudo que podemos ouvir quando não há nada à nossa volta que produza som. Hoje, 1 em cada 7 pessoas pelo mundo inteiro experiencia este fenómeno.

Marc Fagelson explica: Quando ouvimos algum som, as ondas sonoras chegam a várias partes do nosso ouvido, criando vibrações que deslocam os fluidos da cóclea – localizada no ouvido interno e responsável pela função auditiva. Se as vibrações forem suficientes, provocam uma resposta química que as transforma em sinais bio-elétricos. Estes impulsos nervosos são retransmitidos através da via auditiva até ao cérebro, resultando nos sons que percepcionamos. No entanto, na maioria dos casos de tinnitus, os sinais nervosos que produzem estes sons misteriosos não atravessam o nosso ouvido. São gerados internamente, pelo próprio sistema nervoso central. Normalmente, estes sinais auto produzidos são uma parte essencial da audição. Todos os mamíferos demonstram atividade neural constante a partir das suas vias auditivas. Quando não existe som, esta atividade estabelece na sua base um código neural para o silêncio. Quando um som surge, esta atividade muda, permitindo ao cérebro que distinga o silêncio do som. Mas a saúde do sistema auditivo pode afetar este sinal de segundo plano. Sons altos, doenças, toxinas e até o envelhecimento podem danificar as células da cóclea. Algumas destas células conseguem regenerar numa questão de horas. Mas se morrerem células suficientes, ao longo do tempo ou de uma vez, o sistema auditivo torna-se menos sensível. Com menos celulas a retransmitir informação, o som que chega gera sinais nervosos mais fracos. E alguns sons ambiente podem ser perdidos completamente. Para compensar, o nosso cérebro dedica-se a monitorar a via auditiva, mudando a atividade neural enquanto procura sintonizar-se para adquirir um sinal mais claro. Aumentar esta atividade neurológica de segundo plano, pretende ajudar-nos a aumentar o processamento de “inputs” auditivos mais fracos. Mas também pode mudar a base da atividade neural para o silêncio de tal forma, que a ausência de som não soa nunca mais como o silêncio. Não é necessariamente uma coisa má, pois não possui consequências negativas. Mas em casos especificos, episódios de tinnitus podem gatilhar memórias traumáticas para algumas pessoas ou sentimentos negativos, que aumentam a intrusividade dos sons. Este loop psicológico leva, muitas vezes, a uma “bothersome tinnitus”, que pode potenciar os sintomas de PTSD, insónias, ansiedade e depressão. Não há nenhuma cura para isto, o melhor a fazer é compreender o fenómeno e desenvolver associações neutras a estes sons perturbadores. A tinnitus revela que o cérebro se encontra numa análise constante ao que nos rodeia, mesmo falhando ao filtrar o seu próprio som interno.  

Perder o som do silêncio parece sufocante numa vida veloz. Perder o som do silêncio é meio caminho feito para a dissociação da personalidade de um indíviduo. Mas perder o som do silêncio é também uma porta para um novo auto-conhecimento.

 

 



[1] Também conhecido como “A Metamorfose”

[2] “What’s ringing in your ears?” – Marc Fagelson: https://www.youtube.com/watch?v=TnsCsR2wDdk

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