É verdadeiramente viável a fruição de obras de arte fora dos museus, como por exemplo em espaços públicos? Qual seria a relação possível com tais objetos, se estes estivessem espalhados pela cidade?
O Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian – CAM, situado em Lisboa, encontra-se encerrado desde agosto de 2020 para obras de remodelação e ampliação do seu espaço. A data prevista para a sua reabertura está marcada para o próximo ano de 2023. O hiato temporal que aparentemente poderia configurar uma limitação para qualquer museu ou centro de arte tornou-se para o CAM uma oportunidade de expandir a sua geografia e dar a conhecer ao público um conjunto de novas obras.
É neste contexto que nasce o CAM em Movimento, uma programação fora de portas que, a partir das obras da coleção, fomenta, em vários pontos da cidade de Lisboa, intervenções site-specific de artistas convidados.
Por ocasião do seu surgimento em 1983, o CAM tinha como objetivo organizar a coleção de arte moderna e contemporânea da Fundação Calouste Gulbenkian. O acervo conta atualmente com mais de 11.000 peças de arte moderna e contemporânea dos séculos XX e XXI, as quais incluem importantes referências da arte internacional, bem como uma destacada seleção cujo foco é a arte portuguesa.
A nova programação decorreu em diferentes fases e contou com a colaboração artística de nomes como Fernanda Fragateiro, Didier Fiúza Faustino, Carlos Bunga e Rui Toscano. As obras abordam desde intervenções em comboios da linha de Sintra e de Cascais até projetos desenvolvidos de raiz para contentores marítimos.
Projeto “Não ligar (Movimento) ”, de Fernanda Fragateiro, desenvolvido para o CAM em Movimento. Estação Cais do Sodré. Foto: Pedro Pina. |
Projeto “um mapa do céu”, de
Didier Fiúza Faustino, desenvolvido para o CAM
em Movimento. Estação do Rossio. Fotos: Pedro Pina. |
Viajar de um ponto a outro da cidade consiste num convite para que as pessoas, ao habitarem a obra, possam se sentir parte dela. No entanto, para habitá-la é necessário primeiro conhecê-la. Para muitos, esta pode ser uma relação inédita em que a reflexividade do eu é contínua e tudo penetra*. As pessoas, ao serem interpeladas pela arte no seu quotidiano e no espaço público, são convocadas para refletir sobre inúmeras questões e para viver novas subjetividades.
Junto à estação fluvial do Terreiro do Paço é possível encontrarmos a obra Home, de Carlos Bunga, que lança diversas indagações sobre o conceito de casa, um tema que o artista tem trabalhado continuamente. O que significa ter casa? O que significa não a ter? Esta casa-memória ou casa não-lugar suscita questões tanto poéticas quanto políticas.
Instalação “Home”, de Carlos Bunga, desenvolvida para o CAM em Movimento. Foto Pedro Pina.
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Instalação “Home”, de Carlos Bunga, desenvolvida para o CAM em Movimento. Foto Pedro Pina. |
Uma das obras que nos chama a atenção é a do artista Rui Toscano. A instalação Music is the Healing Force of the Universe #4 é mais uma peça inédita criada, a convite do CAM, para o contentor marítimo que se encontra na Praça do Centro Comercial Fonte Nova, em Benfica.
Contentor Rui Toscano, desenvolvido para o CAM em Movimento. Foto Mariana Faria. |
Instalação “Music is the Healing Force of the Universe #4”, desenvolvida para o CAM em Movimento. Foto: Pedro Pina. |
Ao entrarmos no contentor, continuamos sob a influência dos ruídos envolventes e pela azáfama da cidade. Entretanto, de forma inesperada, esquecemo-nos de que estamos numa praça pública. No âmago da grande caixa é possível observar a instalação de duas camadas de acrílico que se desdobram em tensão, enquanto os nossos olhos reconhecem os tons em preto e o cromatismo que vai do vermelho ao laranja, ambos realçados por uma luz interior. No centro está a imagem, duplicada e distorcida, de Dionísio, rodeado por sátiros que dançam e tocam castanholas. O deus do vinho, reproduzido à escala humana, enverga uma lira num cenário que retrata a sua festa mítica.
A aventura de ingressarmos nesta estrutura de metal faz-nos recordar o mito da caverna de Platão, mas de uma perspetiva de fora para dentro: a luz do conhecimento artístico pode, de alguma forma, ser encontrada no interior desta caixa, que está aberta para todos nós.
O título da obra também parece nos provocar: "A música é a força de cura do universo". Entre o atual flagelo dos tempos de guerra entre a Rússia e a Ucrânia e de um mundo pandémico longe de ter os dias contados, mantém-se no ar o que a música e a arte são capazes de estimular ou apaziguar.
Até o final de julho, as intervenções do CAM em Movimento estarão em exibição pelas ruas de Lisboa, e esta é uma oportunidade especial para encontrarmos diferentes sentidos e outras leituras desta relação entre a arte e o espaço público.
*Giddens, A. (2002). Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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