domingo, 12 de outubro de 2025

O que faz o cartunista no Museu?



Este ano trouxe-nos a coincidência de vermos, separados por poucos meses, a publicação da primeira biografia de fundo do cartunista Robert Crumb (autoria de Dan Nadel), e a realização de uma exposição dedicada ao surrealismo e pop-surrealismo americanos dos anos 60 no Whitney Museum of American Art, em Nova Iorque, onde a obra do Robert Crumb surge surpreendentemente destacada e ao lado da fotógrafa Diane Arbus, do pintor Franklin Williams, da escultora Nancy Grossman e outros nomes firmemente plantados no mundo das belas-artes contemporâneas .


Não será alheio a esta coincidência o próprio Dan Nadel (o autor da tal biografia) ser o curador na área do desenho e da gravura deste mesmo museu. No entanto, está aberta a oportunidade de meditarmos sobre a obra daquele que é provavelmente o mais importante cartunista americano do pós-guerra e do que significa a repetida presença de um cartunista nos museus dedicados às artes ditas “sérias” (título que só excepcionalmente o cartune mereceu ao longo do século xx).


Não há dúvida que o lugar que o Robert Crumb tenha eventualmente vindo a ocupar no panorama das artes e no debate entre a alta e a baixa culturas, dependeu mais dos acasos da avaliação dos críticos e historiadores, do que do seu próprio posicionamento dentro das comunidades da arte na América. O Robert Crumb produziu exclusivamente cartune e banda desenhada, e foi sempre marginal aos movimentos artísticos americanos e aos mercados onde viviam os grandes nomes da arte americana. Apesar da quantidade de vezes que a sua obra figurou no mundo dos museus e das galerias (a Whitechapel Gallery de Londres, o Musée d’Art Moderne de Paris, são apenas dois exemplos recentes), o próprio Crumb mostrou-se frequentemente suspeito (para não dizer mesmo desdenhoso) do mundo da alta cultura do seu tempo, preferindo manter-se metido no meio das publicações underground e da banda desenhada alternativa.


Robert Crumb fez o grosso do seu trabalho no contexto da cultura Hippie dos anos 60 e 70 que florescia em São Francisco e, em particular, no famoso Haight Ashbury (o distrito onde congregavam os membros que associamos à contracultura da época), envolto nas publicações subterrâneas anti-guerra, a música psicadélica, a literatura experimental, o culto das drogas psicotrópicas, e outras expressões espirituais de difícil classificação.


Foi, aliás, o seu encontro com a produção gráfica e visual dos pósteres da comunidade musical de São Franciscos que primeiro o acordou para a existência de um crescente movimento de artistas que lhe pareciam ter sensibilidades afins à sua. Largando um deprimente trabalho como ilustrador de cartões de felicitações em Cleveland, deslocou-se para São Francisco e rapidamente se imiscuiu no meio das publicações independentes e dos desenhadores e grafistas alternativos.


Em 1968, Robert Crumb, publica o primeiro número da Zap Comix e, inesperadamente cria o centro em torno do qual orbitariam os desenhistas e cartunistas que lançariam a banda desenhada como uma séria forma de expressão artística e ajudariam a criar o vocabulário da contra-cultura.

Em pouco mais de um ano, o nome Crumb ressoava em todo o panorama da cultura Hippie, surgindo nos concertos dos Grateful Dead, nas capas dos discos da Janis Joplin e em publicações como a Rolling Stone magazine. E paradoxalmente, a sua arte também já podia ser vista na Corcoran Gallery of Art, em Washington, e no Institute of Contemporary Art, em Filadélfia.


Ao lado de outros cartunistas e grafistas como Kim Deitch, Vaughn Bodé, Robert Williams ou Victor Moscoso, o nome do Robert Crumb tornou-se inseparável da criação visual que associamos inconfundivelmente àquela época na América. À semelhança dos restantes discursos artísticos e culturais desta época, o cartune e a BD também se manifestaram de modo iconoclasta e irreverente, exorcizando os complexos sexuais, raciais, políticos e sociais daquela geração (ao ponto mesmo do chocante e do intragável).


A marginalidade que estes artistas mantiveram em relação à produção artística da alta cultura foi cultuada por eles próprios. Muitos destes criadores ou não tinham passado pela formação académica típica das escolas de arte ou tinham tido más experiências dentro dessas escolas. Só agora se davam os primeiros passos para desfazer a má relação que a América havia desenvolvido com a banda desenhada e o cartune. Se é verdade que na Europa, particularmente na França, na Bélgica e na Itália, artistas como Hergé, Hugo Pratt e Uderzo gozavam de uma reputação cultural intocável e participavam da mesma mesa onde se reuniam os intelectuais do seu tempo, na América o cartunista tinha ainda qualquer coisa de pária que produzia lixo cultural para adultos infantilizados e embrutecidos (o epíteto” lowbrow” tem aqui o seu devido lugar).


Claro que a linguagem do cartune e da banda desenhada foi repetidamente trazida ao diálogo com as belas artes, especialmente no contexto da Pop Arte e do Expressionismo Abstracto tardio  (veja-se o caso de Roy Lichtenstein para o caso da Pop Art e Philip Guston para o caso do Expressionismo Abstracto). 

Mas os cartunistas nunca olharam com bons olhos estas apropriações do seu vocabulário - e muitas vez do seu trabalho - (que sentiam ser de um uso irónico e desafectado) que rendia milhares de dólares nas melhores galerias de Nova Iorque, enquanto eles se mantinham num reles estrato de reputação social e cultural.


Robert Crumb surge hoje, talvez equivocadamente, como tendo-se  mantido indiferente a estes sintomas da guerra cultural, permaneceu a trabalhar incessante e imperturbavelmente, e a sua obra parece ter feito uma viagem semelhante à da música Jazz, vindo dos estratos incultos e “lowbrow” da sociedade para ganhar o estatuto de uma arte original e genuinamente americana.


Termino com as palavras do crítico de arte Robert Hughes, no documentário Crumb (1994) realizado por Terry Zwigoff:


I think Crumb is, basically, the Breugel of the last half of the twentieth century. I mean, there wasn’t a Breugel of the first half but there is one of the last half, and that is Robert Crumb. Because he gives you that tremendous kind of impaction of lusting, suffering, crazed humanity in sorts of bizarre, gargoyle-like allegorical forms. He’s just got this very powerful imagination which goes right over the top a lot of the time. But it very seldom lies.





Sérgio A. N. Out.2025