domingo, 12 de outubro de 2025

O Espelho Partido da Política: Uma Leitura de “Por Dentro do Chega”, de Miguel Carvalho

 

   

 Alguns livros investigam o poder. Este desmonta o modo como o poder se disfarça.

Um livro que desce às entranhas do poder


    Em "Por Dentro do Chega, A face oculta da extrema-direita em Portugal", Miguel Carvalho desce aos subterrâneos da política contemporânea e regressa com um retrato inquietante do país que somos.


    O autor, um dos jornalistas mais respeitados do jornalismo português, não se limita a observar o fenómeno do partido Chega à distância: mergulha nele com uma paciência quase arqueológica, desmontando, camada após camada, a máquina que alimenta o partido liderado por André Ventura.

O resultado é um livro monumental, de mais de 700 páginas, fruto de cinco anos de investigação rigorosa, dezenas de entrevistas inéditas e milhares de documentos recolhidos.

 Ouve o Chega a falar de si próprio. E o que emerge desse coro de vozes é um retrato cru de um partido que se alimenta tanto de fé como de frustração.


O populismo como dramaturgia


    "Por Dentro do Chega" é, antes de tudo, uma aula sobre a teatralidade da política contemporânea.

O autor mostra como o partido constrói o seu poder através de uma gramática visual e emocional: a pose, a cor, o tom, o cenário e o gesto.

Nada é deixado ao acaso.

As convenções são encenadas como rituais de purificação moral, as redes sociais transformam-se em palcos e as palavras, em armas simbólicas.

O Chega é apresentado como um produto mediático, criado para circular, para ser visto, partilhado e comentado.

Miguel Carvalho não analisa apenas discursos, analisa imagens, gestos e signos.

A política, aqui, é uma coreografia cuidadosamente ensaiada, em que cada símbolo da bandeira ao crucifixo, é utilizado como instrumento de pertença e exclusão.


O laboratório do ressentimento


    Há uma corrente subterrânea que atravessa todo o livro: o ressentimento.

Miguel Carvalho descreve como o Chega se alimenta da raiva social, da sensação de injustiça, do sentimento de perda.

Não inventa o descontentamento, amplifica-o, organiza-o e dá-lhe rosto.

Nas palavras do autor, o partido “capitaliza o cansaço da democracia” e oferece um discurso de redenção.

Mas essa redenção tem um preço: a simplificação.

O mundo divide-se entre “os bons e os maus”, “os portugueses de bem” e “os outros”, “o povo traído” e “as elites corruptas”.

“A simplificação é a linguagem da raiva e a raiva, a retórica do poder.”

O livro mostra como esta narrativa se infiltrou no espaço público e mediático, encontrando eco numa sociedade cada vez mais vulnerável ao discurso fácil e à emoção instantânea.


Bastidores e contradições


    Um dos méritos de Miguel Carvalho é não se deixar cegar pelo discurso.

O livro revela um partido dividido entre ambição e ideologia, entre fé e cálculo, entre o desejo de “limpar a política” e a tentação de reproduzir os mesmos vícios que jurava combater.

Nos bastidores, há egos feridos, alianças efémeras, fidelidades compradas e vinganças pessoais.

Há quem entre por convicção e saia por desilusão.

Há quem veja em André Ventura um salvador e quem o veja como o maior obstáculo à “nova política” que prometeu.

O autor dá corpo a essa contradição com rigor documental, mas também com humanidade: percebe-se o fascínio e o medo que o Chega desperta, muitas vezes dentro dos próprios corredores do partido.


O espelho e o reflexo: o país em miniatura


    Ler "Por Dentro do Chega" é, inevitavelmente, olhar para Portugal ao espelho.

Miguel Carvalho não escreve apenas sobre um partido, escreve sobre o país que o permitiu crescer.

Um país desigual, exausto, fragmentado, onde a política tradicional perdeu credibilidade e o populismo encontrou terreno fértil.

O Chega, no livro, surge como metáfora e sintoma: um espelho deformado que devolve, de forma amplificada, as fraturas da sociedade portuguesa, as desigualdades, os ressentimentos, as falhas de representatividade.

“O Chega não nasce contra a democracia.

Nasce dentro dela e das suas falhas.”

A investigação de Miguel Carvalho lembra-nos que o perigo não está apenas na ascensão do populismo, mas na indiferença que o normaliza.



    "Por Dentro do Chega" não é um panfleto, nem um manifesto.

É uma investigação que obriga à reflexão, sobre a política, sobre o país, e sobre o próprio papel da comunicação.

Miguel Carvalho mostra que compreender não é desculpar: é assumir a lucidez como forma de cidadania.

O Chega é o pretexto. Portugal, o objeto real do diagnóstico.

“Olhar por dentro do Chega é, inevitavelmente, olhar por dentro de nós.”

E essa talvez seja a maior virtude do livro: expor, com serenidade e rigor, o espelho partido onde a democracia portuguesa se vê e se reconhece.


Ficha Técnica


Título: "Por Dentro do Chega. A face oculta da extrema-direita em Portugal"

Autor: Miguel Carvalho

Editora: Objectiva / Penguin Random House

Ano: 2025

Páginas: 752

Género: Jornalismo de Investigação / Ensaio Político



Carolina Malheiro