Alguns livros investigam o poder. Este desmonta o modo como o poder se disfarça.
Um livro que desce às entranhas do poder
Em "Por Dentro do Chega, A face oculta da extrema-direita em Portugal", Miguel Carvalho desce aos subterrâneos da política contemporânea e regressa com um retrato inquietante do país que somos.
O autor, um dos jornalistas mais respeitados do jornalismo português, não se limita a observar o fenómeno do partido Chega à distância: mergulha nele com uma paciência quase arqueológica, desmontando, camada após camada, a máquina que alimenta o partido liderado por André Ventura.
O resultado é um livro monumental, de mais de 700 páginas, fruto de cinco anos de investigação rigorosa, dezenas de entrevistas inéditas e milhares de documentos recolhidos.
Ouve o Chega a falar de si próprio. E o que emerge desse coro de vozes é um retrato cru de um partido que se alimenta tanto de fé como de frustração.
O populismo como dramaturgia
"Por Dentro do Chega" é, antes de tudo, uma aula sobre a teatralidade da política contemporânea.
O autor mostra como o partido constrói o seu poder através de uma gramática visual e emocional: a pose, a cor, o tom, o cenário e o gesto.
Nada é deixado ao acaso.
As convenções são encenadas como rituais de purificação moral, as redes sociais transformam-se em palcos e as palavras, em armas simbólicas.
O Chega é apresentado como um produto mediático, criado para circular, para ser visto, partilhado e comentado.
Miguel Carvalho não analisa apenas discursos, analisa imagens, gestos e signos.
A política, aqui, é uma coreografia cuidadosamente ensaiada, em que cada símbolo da bandeira ao crucifixo, é utilizado como instrumento de pertença e exclusão.
O laboratório do ressentimento
Há uma corrente subterrânea que atravessa todo o livro: o ressentimento.
Miguel Carvalho descreve como o Chega se alimenta da raiva social, da sensação de injustiça, do sentimento de perda.
Não inventa o descontentamento, amplifica-o, organiza-o e dá-lhe rosto.
Nas palavras do autor, o partido “capitaliza o cansaço da democracia” e oferece um discurso de redenção.
Mas essa redenção tem um preço: a simplificação.
O mundo divide-se entre “os bons e os maus”, “os portugueses de bem” e “os outros”, “o povo traído” e “as elites corruptas”.
“A simplificação é a linguagem da raiva e a raiva, a retórica do poder.”
O livro mostra como esta narrativa se infiltrou no espaço público e mediático, encontrando eco numa sociedade cada vez mais vulnerável ao discurso fácil e à emoção instantânea.
Bastidores e contradições
Um dos méritos de Miguel Carvalho é não se deixar cegar pelo discurso.
O livro revela um partido dividido entre ambição e ideologia, entre fé e cálculo, entre o desejo de “limpar a política” e a tentação de reproduzir os mesmos vícios que jurava combater.
Nos bastidores, há egos feridos, alianças efémeras, fidelidades compradas e vinganças pessoais.
Há quem entre por convicção e saia por desilusão.
Há quem veja em André Ventura um salvador e quem o veja como o maior obstáculo à “nova política” que prometeu.
O autor dá corpo a essa contradição com rigor documental, mas também com humanidade: percebe-se o fascínio e o medo que o Chega desperta, muitas vezes dentro dos próprios corredores do partido.
O espelho e o reflexo: o país em miniatura
Ler "Por Dentro do Chega" é, inevitavelmente, olhar para Portugal ao espelho.
Miguel Carvalho não escreve apenas sobre um partido, escreve sobre o país que o permitiu crescer.
Um país desigual, exausto, fragmentado, onde a política tradicional perdeu credibilidade e o populismo encontrou terreno fértil.
O Chega, no livro, surge como metáfora e sintoma: um espelho deformado que devolve, de forma amplificada, as fraturas da sociedade portuguesa, as desigualdades, os ressentimentos, as falhas de representatividade.
“O Chega não nasce contra a democracia.
Nasce dentro dela e das suas falhas.”
A investigação de Miguel Carvalho lembra-nos que o perigo não está apenas na ascensão do populismo, mas na indiferença que o normaliza.
"Por Dentro do Chega" não é um panfleto, nem um manifesto.
É uma investigação que obriga à reflexão, sobre a política, sobre o país, e sobre o próprio papel da comunicação.
Miguel Carvalho mostra que compreender não é desculpar: é assumir a lucidez como forma de cidadania.
O Chega é o pretexto. Portugal, o objeto real do diagnóstico.
“Olhar por dentro do Chega é, inevitavelmente, olhar por dentro de nós.”
E essa talvez seja a maior virtude do livro: expor, com serenidade e rigor, o espelho partido onde a democracia portuguesa se vê e se reconhece.
Ficha Técnica
Título: "Por Dentro do Chega. A face oculta da extrema-direita em Portugal"
Autor: Miguel Carvalho
Editora: Objectiva / Penguin Random House
Ano: 2025
Páginas: 752
Género: Jornalismo de Investigação / Ensaio Político
Carolina Malheiro