Ultimamente tenho-me confrontado com um extremo bloqueio criativo, refém das rotinas e da falta de tempo. Não quer dizer que a minha visão tenha sido afetada. No dia a dia já é intrínseco registar qualquer sinal de inspiração, seja através da escrita, do desenho ou da fotografia, mas por vezes torna-se difícil sofrer daquele momento mágico onde tudo se alinha. A cura para este mal pode surgir de uma de duas formas: descansando a mente, ao fazer coisas como dormir, viajar ou correr, por exemplo; ou exercitando-a. Comigo a segunda costuma resultar melhor. Encontro orientação no que posso apelidar de "guias abstratos". Com isto quero dizer um objeto ou acontecimento que me permita repensar de uma outra perspetiva. Podem ser exercícios autopropostos, ligados à escrita criativa, por exemplo, mas geralmente surgem em forma de livros ou publicações alheias.
Dois exemplos são Grapefruit, de Yoko Ono e Will Happiness Find Me, de Peter Fischli e David Weiss. Têm em comum o facto de ambos serem livros de artista, mas com configurações um pouco diferentes. O primeiro vê a imaginação como uma ferramenta que pode e deve ser provocada das mais variadas formas, criando exercícios mentais e físicos a serem realizados pelo leitor. O segundo questiona apenas tudo em seu redor, fazendo a interrogação conectar-se com o agora.O acaso pode definir e reestruturar o nosso pensamento ou apenas solidificar certos conceitos que achávamos dispersos até então, porque nos coloca num lugar disponível e associativo. Posso dar exemplos concretos, ao abrir cada um destes livros em páginas aleatórias.
Página esquerda
PAINTING TO EXIST ONLY WHEN IT'S COPIED OR PHOTOGRAPHED
Let People copy or photograph your paintings.
Destroy the originals.
1964 spring
Página direita
PAINTING TO HAMMER A NAIL
Hammer a nail in the center of a piece of glass. Send each fragment to an arbitrary address.
1962 spring
Página esquerda
WILL CHILDREN SING SONGS ABOUT ME IN A HUNDRED YEARS? (303)
SHOULD I SATISFY MYSELF? (331)
Página direita
DOES(N'T) EVERYTHING ON TELEVISION HAVE SOMETHING TO DO WITH ME? (178)
AM I BEAUTIFUL? (276)
AM I BEAUTIFUL? (276)
Estas páginas podem ser interpretadas das mais diversas formas, mas a curiosidade surge no mistério da página selecionada e o porquê da mesma fazer sempre sentido. A intenção da folha em ser escolhida, como se o folhear de um livro fosse um jogo de roleta, com poderes inimagináveis. A capacidade de uma frase ser tudo o que está por criar em cada pessoa que a poderá ler.
Moving Through Images, David Gallo
Moving Through Images, David Gallo
O livro Moving Through Images - Explorations into Visual Reproduction, Perception and Randomness de David Gallo é composto por dois objetos. De forma muito descomplexada, podemos assumir um volume como sendo as “instruções” e o outro como um “produto” dessas mesmas instruções.
Moving Through Images (dois volumes), David Gallo
Esta publicação, de 2025, trata o tema da perceção e entendimento de imagens e espaços que navegamos no dia a dia. Explorando a forma como tudo isto nos afeta, o autor incentiva o leitor a analisar o que o rodeia. Somos encorajados a levar para as ruas da cidade estas instruções, cuja aparência se assemelha a um diário ou caderno de anotações. As pistas ou sugestões que podemos seguir surgem em seis formatos diferentes:
A - Direção, Fluxo, Padrão
B - Duração, Tempo
C - Atividade, Tarefa, Foco
D - Acústica, Som
E - Objeto, Material, Textura
F - Ambiente, Sensação
Estas letras são utilizadas ao longo de ambos os volumes para identificar o tipo de consciência utilizado em cada página. Isto ajuda a filtrar algum tipo de estímulo específico que possamos procurar. Retirando o elástico que o sustenta, o formato do livro permite-nos reorganizá-lo da forma que entendermos, ou sermos surpreendidos pela aleatoriedade.
Convidando-nos à deambulação, vejo nesta publicação o espírito "flâneur", com objetivos mais delineados que um simples passeio. Ao abrir-mos numa página aleatória, temos sugestões de orientações. Estas podem ser para nos deslocarmos fisicamente ou para guiar uma certa linha de pensamento. Como se um fósforo se acendesse no escuro, são formas de dar luz ao que temos ao nosso redor.
Prompt Book - Moving Through Images, David Gallo
Página esquerda
Look for the letter X.
Where can you see it? hear it? perceive it?
What does it tell you?
Does it limit you in certain activities?
Página direita
Turn around. Then take the second left and move straight ahead until you reach a vacant lot (or a similar kind of open space).
O que mais me interessou nesta publicação, para além do seu elemento interativo (que facilmente cria uma relação de interesse egocêntrico com o leitor/intérprete), foi na verdade o estudo de si mesmo. No volume principal podemos encontrar o editorial e uma série de ensaios relacionados com a forma de perceção do mundo no quotidiano moderno, a forma como a digitalização da imagem modifica a nossa relação com as mesmas. A distinção entre um lugar e a reprodução do mesmo. Quanto podemos tirar de uma imagem? Para além disto, vemos também variadas imagens recolhidas pelo autor através da utilização das "instruções", com letras que nos indicam o tipo de consciência utilizada ao existir naquele lugar e números que nos levam a um índice no final do livro que nos diz o exato local e data onde aquela imagem foi capturada. Somos convidados a experienciar a vivência de outro alguém, deixando-nos no desconhecido e abstrato, o que só por si é também um exercício.
E - Objeto, Material, Textura / 03 - 48º12'12.9''N 16º 21'33.6''E Museumsplatz1, 1070 Vienna. Visited and documented on March 18, 2023.
Moving Through Images, David Gallo
Este livro é um excelente exemplo da importância da colaboração para a saúde do imaginário. O universo das ideias é de cada um, mas sem os outros não nos encontramos a nós mesmos. É importante alimentar um ecossistema entre autor, leitor, intérprete e interpretado. No livro Uma Onda Na Mente - Textos seleccionados de Ursula K. Le Guin (Sr Teste Edições), a autora define a leitura como uma performance oculta. Afirma o seguinte:
"Ler é performance. O leitor — a criança debaixo do cobertor com uma lanterna, a mulher na mesa da cozinha, o homem na biblioteca — executa a obra. A performance é silenciosa. Os leitores ouvem os sons das palavras e o compasso das frases apenas no ouvido interior. Tamborileiros silenciosos em tambores mudos. Uma performance espantosa num teatro espantoso."
Este livro junta diversos textos e ensaios da autora de ficção científica onde, entre muitos assuntos, reflete sobre a ideia de imaginação, perceção e comunicação. Faz-nos compreender, em diversos instantes, o conceito de que os limites da imaginação e o que define uma regra de leitura está encarregue do autor claro, mas acima de tudo do leitor.
"O leitor, tal como o escritor, pode distorcer os termos deste contrato, lendo um romance como se fosse um relato de acontecimentos reais, ou um texto jornalístico como se fosse pura invenção."
Esta afirmação dá ao leitor um poder que ele desconhece, esta ideia de que o texto está nas suas mãos, no entanto, sempre refém do tempo, do espaço e do sujeito, três noções em constante mutação.
Tendo isto em conta, sabemos que da interpretação, seja ela aleatória ou premeditada, existe sempre a possibilidade da criação e isto implica um sentido de responsabilidade. Cai agora sobre o inspirado, a oportunidade de ser inspiração ao criar algo real e palpável, capaz de ser interiorizado pelo outro. Do mundo para o mundo, de boca em boca, assim é a liberdade da imaginação no quotidiano. O livro Moving Through Images desbloqueou em mim a tal magia, onde, de repente, tudo faz sentido, pois no acaso, na página aleatória, está a resposta a tudo aquilo que já sabemos em nós mesmos. Assim compreendemos a importância da escrita, no geral e do livro, em particular. Só assim se é inovador, a partir de tudo o que já foi feito.