Dear mum, não é somente uma carta destinada à mãe, é para todos. Uma peça de dança contemporânea pelo novo criador luso-luxemburguês, William Cardoso.
Com formação em dança e coreografia na conceituada escola EPSE Danse, em Montepellier, William Cardoso trabalha atualmente com o Centro de Criação Coreográfica Luxemburguês (Trois C-L) onde desenvolveu Raum (duo), um projeto intenso acerca dos nossos demónios e cantos obscuros. Mais recentemente, estreado em 2022 no Trois C-L, Dear Mum. Raum e Dear Mum, foram apresentadas consecutivamente nos dias 19 e 20 de fevereiro em mais uma edição de Hors Circuits, que decorreu no Centro e Criação Coreográfica Bananefabrik no Luxemburgo.
foto: Marco Pavone |
Planeada e executada a solo Dear Mum, é uma peça que retrata um “coming-out” ou por outras palavras, a luta interior e constante de Um contra as pressões e expetativas dos que o rodeiam e amam. É assustador e libertador, um momento definidor.
Ao entrar na sala, deparamo-nos com o interprete, William, vestido de branco, num fundo preto, sentado numa cadeira de madeira. No chão, um misterioso copo de leite cheio, colocado ao lado da cadeira. Focos de luz iluminam a área, ruido musicado enche a audição, tudo é fluido e evolui numa experiência de luz e som que preenche os sentidos. De volta ao palco, William, continua parado.
A respiração de William parece não existir, bem como a nossa. De repente, o peito de William enche-se e nós respiramos. O ruido intensifica-se e William levanta-se, numa mistura de movimentos e extensões de músculos onde a retidão impera. Pela primeira vez, algo se levantara. É a descrição de um momento íntimo e de autodescoberta, um acordar que nunca mais dorme. A inocência do ato é vestida de branco, no entanto a sua tensa movimentação remete para a constrição da sua nova vida, sofrida.
foto: Marco Pavone |
A decoração é simples, o que não distrai o olhar. Somente aquele copo de leite nos atraía entre momentos. A música eletroacústica, de Guillaume Jullien, é colorida por pequenos toques de referências simbólicas - sinos, vozes, ruídos.
O tempo passa e vemos o interprete passar por várias etapas do seu caminho. Vemos movimentos e posturas semelhantes aos de um louco, aprisionado e em conflito consigo mesmo, no entanto, despido de branco e despido de culpa – as suas mãos limpas são-nos mostradas por ele- presenciamos uma nova fase, mais liberta, cansada, mas natural. Fita-nos, e nós sentados nas mesmas cadeiras, aproxima-se da sua cadeira e do copo de leite. A curiosidade paira no ar, o ruido musicado serena e dá espaço a uma melódica música que antecipa o passar do climax, da grande revelação. Resta apenas levantar-se da cadeira, com a sua nova face.
A audiência, na qual me insiro, não resiste em cair na tentação de prever um “standing up” sem amarras depois de um corajoso “coming out”, no entanto, e para surpresa minha e dos que me rodeavam, não é o caso. William, vê-se colado á cadeira, capaz de se mexer, mas na cadeira. Incapaz de verdadeiramente se levantar, como que preso a uma postura menor, corcunda, rebaixada.
Questionei-me se exemplificaria as barreiras e preconceitos que diariamente alguém pode ter que enfrentar na sociedade em que está inserido. Sinos de igreja ouvem-se, o que me parece ser a resposta que procurava.
De repente, os meus olhos tornam a captar movimentos no palco e sou atraída para a ausência do copo de leite. William tinha-o na mão. Não parecia querer beber, mas começou a fazê-lo enquanto nos fitava intensamente, sem desviar os seus olhos. A sua boca encheu, mas ele nada bebeu, tudo escorreu pelo seu peito e genitais, atingindo gota-a-gota o chão.
Mais tarde o artista explica-nos como esta imagem representa a rejeição do leite materno, que advém da procriação.
A imagem final é um William com o copo pousado no seu joelho, fitando-nos de novo, intensamente.
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