Entre páginas que nos ensinam a dor humana e os seus limites, encontramos também amor, paixão e revolução. Houve algo que me fascinou especialmente nesta obra, algo que já tinha sentido em “Just Kids” de Patti Smith, experienciar, de uma forma extremamente íntima e honesta, a forma como as relações humanas podem definir alguém, e por consequência, a sua prática artística.
Marina e Ulay são possivelmente a dupla mais conhecida da arte imaterial, peças como “Relation in Space”, 1976 , “Imponderabilia”, 1977, ou “Rest Energy”, 1980, são apenas alguns exemplos que se tornaram incontornáveis quando se fala de performance. A sua dedicação à arte como território por descobrir espelha-se também na sua relação enquanto casal. Algo de mágico acontece quando duas pessoas são capazes de se desafiar e completar em simultâneo. Passam a existir num paradoxo, fonte das mais intensas e impensáveis criações.
Marina Abramović e Ulay
Relation in Space, 1976 / Imponderabilia, 1977 / Rest Energy, 1980
O mesmo acontece com Patti Smith e Robert Mapplethorpe. Patti havia-se mudado para Nova Iorque há pouco tempo quando, na descoberta da cidade e os seus acasos, se cruzou com Robert mais do que uma vez. Falavam brevemente, criando assunto para um próximo encontro que não sabiam se iria existir, mas a sorte tinha outros planos. Inevitavelmente tornaram-se amigos, e amantes e amigos novamente. Jovens e com um mundo por descobrir, as suas paixões foram-se entrelaçando, sem nunca se tornarem dependentes um do outro, pelo menos não no que toca à sua prática. O mesmo não se pode dizer em relação a Marina e Ulay, que ao longo do resto das suas vidas, se confrontaram com o desafio da divisão de direitos das obras. No entanto, ambas estas duplas descobriam a vida e a arte como quem ama, leve e livremente. Viviam juntos, escreviam, confessavam, fotografavam e, acima de tudo, criavam sem fim.
Patti é, hoje em dia, música, escritora e artista visual. Um marco da versatilidade artística. A sua conexão com Robert não é tão obvia quanto a de Marina e Ulay, mas mergulhando na sua obra, sentimos sem dúvida a sua influência. Os seus livros, que tocam num espaço muito especial entre a ficção e a autobiografia, tornam palpável o processo criativo. Acredito que seja isso que acontece quando a arte e a vida vivem em harmonia.
Capa do primeiro albúm de Patti Smith, Horses, 1975, fotografada por Robert Mapplethorpe
Tanto Patti como Marina tiveram relações que marcaram significativamente as suas carreiras, mas esses laços tornam-se quase sagrados quando se unem com a criação, o que faz com que o êxtase seja imenso e a dor de igual intensidade. Marina e Ulay distanciavam-se nos anos 80, acabando a sua relação com a famosa performance “The Lovers”, em 1988, onde cada um começava uma jornada em cada ponta da Grande Muralha da China. Quando esta ideia surgiu, a intenção era a de se casarem quando se encontrassem a meio da muralha, no entanto, as burocracias entre Amsterdão e China foram tantas, que quando lhes foi permitido caminhar a Muralha, a sua relação tinha atingido um ponto intolerável para ambos. A performance manteve-se, mas quando se encontraram deram um aperto de mão e cada um seguiu o seu caminho, dando por finalizada a sua relação pessoal e profissional.
O encontro de Marina e Ulay na Grande Muralha da China, 1988
Estas duplas deram aso a algo maior, provam que o acaso nos dá o que precisamos quando é de facto necessário, e o retira quando estamos a ganhar balanço. Estes quatro artistas tiveram carreiras extremamente influentes na arte contemporânea. Acho incrível como as inspirações de milhões podem começar graças à inspiração entre duas pessoas. A autobiografia de Marina continua por mais 178 páginas após este aperto de mão, mas “Just Kids” termina com a morte de Robert Mapplethorpe. Isto porque “Walk Through Walls” é uma história de resistência e o livro de Patti é uma carta de amor. A obra de Patti Smith continua em todos os outros planos. Em ambas as situações estas duas mulheres sofrem, por amor e muito mais, mas veem a sua sobrevivência na produção como força interior. O que nos permite hoje em dia termos obras e artistas que contam as alegrias e angústias da condição humana, sem necessidade de ler as suas biografias.
Ter ao lado alguém que vê a vida de forma semelhante à nossa faz com que as dúvidas se desdobrem num plano maior e se dissolvam num futuro esperançoso, permitindo aproveitar o presente por inteiro, sem nada a perder. Não tem necessariamente de haver romance na esperança, a arte é um movimento transversal no que toca ao amor.