terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Caminhar na Ficção - "Mezzocane" de Enzo Cucchi e Bruno Marchand

    Em 2023, no museu MAXXI, em Roma, visitei a exposição “Il poeta e il mago” (O Poeta e o Mágico) de Enzo Cucchi. Um professor da faculdade onde fazia Erasmus levou a turma a visitar este espaço, falando-nos sobre a importância do trabalho deste artista, enquanto eu aos poucos interiorizava a grandeza do que estava a testemunhar. E assim começou uma saudável obsessão.

O trabalho de Cucchi é uma poesia visual, repleta de mitos e fantasias, capaz de criar novas narrativas através dos mais diversos meios. Enzo acredita que o mito tem “a alma das coisas e o cheiro dos factos”, sobrepondo-se à História, que pode ser alterada e vive no perigo da sua veracidade. Desta forma é capaz de criar objetos que se sustentam de forma individual mas que se reinventam a cada exposição. As suas mostras tornam-se poemas e contos pelos quais podemos vaguear. 



imagens de peças presentes na exposição "Il poeta e il mago", MAXXI, Roma, 2023.

Cerca de um ano mais tarde, surge em Lisboa, na Culturgest uma exposição do mesmo artista. Algumas obras repetiam-se, mas a arquitetura do espaço e a vontade de Enzo criavam ali uma nova história. 

Em ambas as exposições existia uma parte dedicada aos trabalhos editoriais de Cucchi, que tem também um percurso dentro do design gráfico. No caso da Culturgest foram expostos na Galeria 3, espaço normalmente dedicado a exposições de objetos editoriais ou desenhos. Notamos que a disposição de objetos é extremamente importante no trabalho deste artista, como se da composição de um texto se tratasse, algo ritmado e cuidado. Cucchi vive para a ficção, para a sua disseminação em todos os meios, mostra nestas exposições objetos como livros de artista, experiências tipográficas e cadernos, sendo a página e o livro uma forma de partilha que não só permite construir narrativas, como também experimentar novas formas de imaginar. Tendo isto em conta, gostaria de falar sobre o livro "Mezzocane", objeto realizado por Bruno Marchand (curador da exposição em Lisboa) e pela ilhas studios, a pedido de Enzo Cucchi, com a intenção de ser um catálogo de exposição diferente do habitual. 



edições de artista de Enzo Cucchi em exposição no MAXXI (esquerda) e na Culturgest (direita)


O artista pediu que fosse construída uma narrativa a partir do conto do "meio cão", que também deu origem ao nome da exposição. A lenda conta que uma civilização antiga utilizava o corpo de um cão cortado ao meio com a intenção de afugentar inimigos de determinado território. A natureza do "quem conta um conto acrescenta um ponto" e o facto de haver uma barreira linguística entre Bruno e Enzo, levou a que esta história fosse apenas um ponto de partida, tanto para a exposição como para o objeto que surgiu da mesma. 
Renegando os textos académicos e factuais de interpretação das obras, houve total liberdade para a criação de uma história fictícia e manipulação das imagens das obras. O resultado foi um objeto extremamente denso e intrigante, um portal para a imaginação.


Capa do livro "Mezzocane", 2024, por ilhas studios

   A história, com descrições ligeiramente perturbadoras, está dividida em três momentos que são visualmente distinguíveis apesar de não haver uma identificação explícita de capítulos. As imagens das obras surgem por entre o conto, sendo, claramente, também parte da história. Apesar de existirem algumas imagens a cores, muitas das peças são mostradas a negativo, o que faz com que o livro seja maioritariamente preto, branco e vermelho. A liberdade criativa dada ao ilhas studios permitiu-lhes utilizar vários tipos de papéis e impressão e desafiarem a utilização da tipografia e layout num objeto tão pequeno. O seu formato lembra uma pequena bíblia ou livro de orações que podemos carregar no dia a dia.




Miolo do livro "Mezzocane", 2024, por ilhas studios

Este livro é sem dúvida uma das minhas mais estimadas aquisições pelo tanto que me dá num só artefacto. É um catálogo, livro de ficção e livro de artista, tudo em simultâneo. Existe num espaço ambíguo onde moram também a poesia, o oculto e o imaginário de Enzo Cucchi, esse lugar tão sagrado.