No dia 2 de novembro fui à finissage da exposição de finalistas e bolseiros da ESAD - Caldas da Rainha, intitulada Ainda Há Sementes Para Serem Colhidas e Espaço no Saco de Estrelas, na Safra. Fui a convite de uma amiga que mostrava o seu trabalho, aproveitando para testemunhar a performance do artista João Soares que aconteceu no mesmo dia.
Num armazém repleto de obras de estudantes promissores, luzes fortes e um frio de meia estação, as peças de chão são arrastadas para fazer espaço, um espelho surge encostado a um plinto, as pessoas começam a falar mais baixo, algo acontecerá. As luzes apagam-se e um foco no chão deixa-nos alerta. Abre-se espaço, surge o artista. Ao longo de cerca de cerca de duas horas, das quais só me ausentei por dez minutos, existiu ali algo de inexplicável, algo que só tem a capacidade de existir num contexto físico para se poder conectar com o espiritual. A performance consistiu no artista a cobrir-se com pontos, criando uma paisagem no próprio corpo. Meditativo e intencional, cada movimento surgia como consequência do anterior. Foram momentos forçosamente introspetivos, alinhados com um domingo.
João Soares na performance O Meu Corpo, 2025
Não tenho um particular conhecimento sobre esta vertente artística e diria que é a capaz de ser das que me sinto menos confortável a desenvolver assunto, no entanto, aos poucos vai-se infiltrando nos meus interesses. Esta performance, a primeira que testemunhei com um tempo mais extenso, relembrou-me de uma obsessão que tive há uns meses. Trata-se de um jornal, de nome Coreia, e é desta iniciativa sobre a qual gostaria de articular. Uma iniciativa da Associação Parasita, o jornal Coreia tem como diretor editorial João dos Santos Martins e como designer gráfica Isabel Lucena.
“Coreia é uma publicação fundada em 2019 de carácter experimental, crítico e discursivo a propósito das artes em geral, firmada numa relação umbilical com a dança. De tiragem semestral, o jornal pretende ser um forum independente e internacionalista focado no discurso produzido pelas obras e pelos artistas, preocupado em divulgar formatos vários como partituras, manifestos, entrevistas, crónicas, ensaios, críticas e reflexões em língua portuguesa.”
Uma característica importante deste jornal é a sua acessibilidade. Tendo como objetivo o pensar e disseminar das artes do corpo, o jornal abre uma open call para textos relacionados com estes temas. O facto de qualquer pessoa poder desenvolver um artigo, sem ter acesso aos que o irão acompanhar, implica que este formato se inove a si mesmo de uma forma bastante orgânica. Existe, claro, uma seleção deliberada, no entanto, nota-se uma frescura a cada virar de página, assuntos que se superam. Esta dinâmica torna-se ainda mais sedutora quando aliada com o design de Isabel Lucena. Sentimos uma dança das próprias letras, palavras, frases. Um improviso premeditado que suspende o olhar.
Quando falo de acessibilidade, falo não só na produção, dando espaço crítico e criativo a diversos criadores, mas também numa liberdade educativa. São impressos 3500 exemplares de cada edição, e todos são distribuídos gratuitamente. Assim que uma nova edição é lançada, a edição anterior torna-se disponível online, o que faz com que tenhamos acesso a todo o arquivo. Já não me recordo ao certo como soube desta iniciativa, mas sei que imediatamente tomei como missão pessoal conseguir um dos exemplares do jornal assim que fossem disponibilizados. Consegui pela primeira vez o mês passado, a 13ª edição.
Usarei a mesma para exemplificar a diversidade do que podemos falar no que toca à performance e ao corpo. Começamos com um manifesto escrito pela Learning Palestine no contexto do Pavilhão Palestiniano na Bienal de Veneza, intitulado Que Futuro Para a Arte? Um Manifesto Contra o Estado do Mundo, que dialoga com uma ilustração de Pedro Barateiro. De seguida encontramos o editorial, escrito à mão, e prosseguimos com artigos acerca dos mais diversos assuntos. O fabrico do manto Tupinambá, nas tribos indígenas brasileiras, da sua utilidade ancestral até aos museus ocidentais, num contexto colonialista. Um ensaio de 1954 de Katherine Duhnam (1909 - 2006), bailarina, coreógrafa e ativista norte americana. Uma entrevista à artista Laura Salerno; vários artigos onde artistas apresentam os seus projetos e os integram em determinadas áreas de estudo, como a prática do vodu inspirou um determinado projeto artístico; a improvisação ligada às sensações; a ética na dança; e terminamos com um ensaio visual de uma conversa que deve ser interpretada por duas pessoas, em sussurro, criando assim uma performance do próprio leitor.
O formato de jornal permite não só esta acessibilidade tão necessária para a disseminação das artes, mas também permite o manuseamento livre de um objeto que permite essa mesma liberdade. Encontramo-nos quase a meio de um voo que nos cabe a nós interromper. Ritmo e interpretação são as palavras chaves para a fluidez que existe no discurso que dá uso à palavra criativa e ao conhecimento.
Em por exemplo a cadeira - ensaio sobre as artes do corpo, António Pinto Ribeiro, ao falar dos anos 60, explica que “A perfomance, por princípio, só acontece ao vivo e só o vivo é presente; não pode ser gravada, filmada, reproduzida, não pode entrar no circuito da representação das representações. A performance é não reprodutível, é esse o seu caráter ontológico.”, no entanto, quando termina o seu ensaio afirma o seguinte:
“O que constatamos é que a comunicação e a expressão corporal gozam de um estatuto de longevidade e de ‘durée’ — semelhantes àqueles que no passado eram reclamados pela Literatura, a Pintura e a Escultura — suficientes para que se considere que as Artes do Corpo já não são artes do efémero, são duradouras e, em confronto com a efemeridade das imagens audiovisuais, com a velocidade dos seus circuitos e com a sua total imaterialidade, tendem, cada vez mais, a ser uma resistência que opõe expressões lentas a este circuito audiovisual. As Artes do Corpo tornaram-se artes clássicas.”
Este ensaio é de 1997, altura em que começa a surgir o ‘boom’ tecnológico de que hoje somos reféns. Hoje em dia, as Artes do Corpo e a performance inserem-se neste universo digital que tem tanto de eterno como de efémero, sendo ainda verificável o que lemos neste ensaio. A performance tem de facto uma dimensão que nos obriga a abrandar, e é, a meu ver, na escrita que existe um lugar seguro de reprodução da mesma, entre a interpretação e o desejo da experiência.
referências:
por exemplo a cadeira - ensaio sobre as artes do corpo (1997), António Pinto Ribeiro.