Se tal coisa for possível, gostava que este texto seguisse directamente do meu texto acerca dos gatafunhos, garatujas e outros rabiscos. Tanto o presente texto como o anterior partilham a natureza do seu motivo e do seu tema.
Diz Max Brod, o amigo de Franz Kafka a quem devemos a sobrevivência dos manuscritos daquele que é um dos mais importantes escritores da cidade de Praga e autor de algumas das obras fundamentais do modernismo europeu, que o Kafka teve sempre, pelo menos desde que foram colegas na Universidade, o hábito de desenhar nas margens dos seus cadernos de apontamentos.
Estes rabiscos sobreviveram duplamente às intenções do esquecimento, graças ao mesmo Max Brod que desobedeceu ao pedido do seu amigo e não lançou ao fogo os papéis que Franz Kafka lhe confiou para destruição. E, contra todas as probabilidades, chegaram até nós as pequenas figuras e rabiscos que povoam as margens dos seus manuscritos, cartas e cadernos de notas. Exercícios distraídos, esboços feitos para quebrar a monotonia ou aliviar o aborrecimento, que não foram feitos com esperança de imortalidade.
Não temos reais motivos para dizer que Kafka alguma vez se tenha considerado um desenhador. Há passagens dos seus diários, que são raras e não reflectem mais que um exagero da expressão, que à primeira vista podiam contradizer esta afirmação: “Há momentos em que sinto que não compreendo absolutamente nada da pintura ou do desenho, e por vezes sinto que uma actividade desse género seria o meu verdadeiro talento.” (Diários, 1911). A verdade biográfica é, porém, que Kafka não acreditava que os seus traços pudessem ter valor artístico. E, todavia, desenhava — discretamente, quase às escondidas — figuras humanas reduzidas à sua expressão mínima, seres alongados e frágeis, equilibrados num gesto ou suspensos num passo interrompido. São desenhos de uma simplicidade desconcertante, e é precisamente nessa simplicidade que reside a sua força: nelas parece haver o eco de uma luta interna.
Leia-se o que Max Brod escreve na biografia que dedicou ao seu amigo: “Ele desenhava ininterruptamente, frequentemente nas margens dos seus manuscritos. Ele rasgava as páginas ou escondia-as. Eu tive de resgatar o pouco que podia ser salvo depois da sua morte. Ele dizia-me que desenhar era uma tentação para fugir à escrita e que ele lutava para lhe resistir” (Max Brod, Franz Kafka: Uma Biografia, 1937).
Há nos sinais de compulsão e liberdade com que o Kafka produzia estes desenhos uma afinidade com a experiência dos alunos de desenho de que falava antes: aquele momento em que o gesto, antes de obedecer à ideia de perfeição, cria a sua própria legitimidade, mesmo na sua fragilidade. O desenho de Kafka participa desse mesmo princípio: o de deixar fluir o traço como ele é, com as suas falhas, tremores e desvios, e de o transformar em forma que só posteriormente será reconhecida e validada. Ele próprio parece ter intuído que nesses pequenos exercícios de papel havia qualquer coisa de vital — uma pulsação que a escrita, por vezes, asfixiava.
“A minha caneta não se move facilmente quando escrevo; mas quando desenho, avança livremente, sem esforço. Depois, porém. O que sai é sem sentido, linhas que não têm sentido.” (Dários, 1911)
Muitos desses desenhos mostram figuras em queda, corpos inclinados, cabeças desproporcionais, gestos que parecem deter-se a meio. São imagens que não pretendem resolver nada, que não ilustram nem comentam o texto ao lado. São antes a sombra de um movimento interior, a prova material de que a mão pensa, e de que o pensamento pode, por instantes, dispensar a palavra. A margem torna-se, assim, o espaço de uma respiração paralela: onde o sentido se suspende, mas o ser continua a agir.
Muitas das figuras que Kafka desenhou parecem ter surtido efeito entre o público que veio a conhecer as suas obras literárias, reconhecendo neles um espírito gémeo. Muitas das edições da sua obra têm capas frequentemente adornadas com estes desenhos, e não é invulgar encontrá-los a ilustrar livros dedicados ao clima da Europa que produziu o Modernismo e o Expressionismo Alemão. Por alguma razão misteriosa eles conseguem transportar a mesma aura do tempo que produziu Kafka e do mesmo Kafka que produziu o seu tempo.
Um pequeno desvio, nada mais, teria sido o suficiente para criar no Kafka um desenhador (que escrevia sem ambição de ser escritor) em vez de um escritor (que desenhava sem ambição de ser desenhador)?




