
Este texto não é para céticos, mas, talvez, os possa tornar um pouco menos. Sempre fui exposta a algum tipo de espiritualidade, fosse através da religião ou de terapias holísticas. Não há bem uma convenção padronizada para aquilo em que acredito. Mas acredito que existe uma dimensão maior que a humanidade, seja lá o que for. No início deste mês de Novembro estive presente num evento de Constelações Familiares cujo o tema era Espiritualidade na Prática, organizado pela Maria Gorjão Henriques e a sua equipa da Consciência Sistémica. As razões pelas quais fui ao evento não interessam realmente para o que quero expor neste texto. Interessa sim, para contexto, o pouco que sabia, e sei, sobre Consciência Sistémica, sobre Constelações Familiares, sobre Espiritualidade e sobre a própria Maria Gorjão. As perguntas que surgiram em mim ao decidir participar, ou não, neste evento, foram algo como: “Mas eu nem sei o que isto é” ou então “Espiritualidade? Na Prática? Nem sei a minha na teoria”. No final do evento, embora me tenha feito sentido estar lá todo o dia, haviam questões que não sabia responder, não tinha respostas para conceitos e não conseguia explicar nada — não que a teoria por trás da prática seja realmente importante para mim, pois o que experienciei será impossível de explicar a quem não esteja ligado ao assunto. No entanto, quando confrontada por pessoas do meu núcleo próximo com perguntas como: “Então o que é que foste fazer? Como é que foi?”. Enquanto tentava arranjar uma explicação para dar a pessoas mais duras que um pau, via-me perdida no limbo que separa a ciência, o factual, as terapias integrativas e holísticas, as minhas crenças e até ao extremo do esotérico. Era a definição real do velho ditado “quem conta um conto acrescenta um ponto”.
Maria Gorjão Henriques é psicóloga de formação, escritora, terapeuta, professora e facilitadora de Consciência Sistémica há mais de 20 anos. Escreveu livros como “O despertar da Consciência com as constelações familiares” e “Relacionamentos Amorosos, o espelho das histórias e dos traumas familiares”. É, ainda CEO e fundadora da Consciência Sistémica Global e do Campos Físico da Consciência Sistémica em Portugal, ao qual deu o nome de Lagar da Alma. Dá aulas de Direito Sistémico no Brasil e enquanto facilitadora de Constelações fez a sua formação com Bert Hellinger, o primeiro a nível internacional a introduzir o tema das Constelações Familiares, entre muitas outras formações que realizou na área do desenvolvimento humano e espiritual. Foi pela Maria Gorjão que que me cruzei com os conceitos de Consciência Sistémica e Constelações pela primeira vez. E, foi a partir daí que começaram a surgir as dúvidas entre o que acabava de descobrir e aquilo que pela apropriação cultural já tinha vindo a conhecer. É por isto que este texto surge, para desmistificar todos estes termos e localizar a linha entre a ciência, a espiritualidade e as nossas (minhas, talvez) crenças.
Foi só depois do evento e das perguntas desconfortáveis das pessoas “mais duras que um pau” que comecei a perceber que aquilo a que hoje chamamos de Consciência Sistémica não nasceu em salas perfumadas de incenso, nem em retiros xamânicos, nem em discursos sobre a alma. Nasceu muito antes, e muito mais perto da psicologia do que da espiritualidade. A Consciência Sistémica, nas suas raízes, tem a teoria dos sistemas familiares desenvolvida entre as décadas de 50 e 70 por nomes como Murray Bowen, Salvador Minuchin ou Ivan Nagy. A ideia era simples: ninguém é um indivíduo isolado. Somos e fazemos parte de um sistema, temos uma família, uma cultura e história onde emoções, papéis e padrões são passados de pessoa para pessoa, como quem herda uma quantidade exorbitante de dinheiro, sem sequer saber que pertencia à família, e tem de lidar com os seus pontos positivos e, claro, negativos também. É aqui que tudo começa. Não em chakras. Não em karma. Não em energias. Em ciência humana e observável.
A Consciência Sistémica por mais mística que pareça quando dita numa sala com música de meditação nasceu longe de qualquer ritual ou linhagem espiritual. Nasceu na psicologia, com o estudo da família e da observação empírica do comportamento humano. Para Bowen, um indivíduo não é uma linha solta no espaço: é um nó numa teia, um elemento num sistema onde tudo o que acontece num ponto terá efeitos nos outros. Os medos, as lealdades, os padrões e as feridas, tudo se transmite de geração em geração, mesmo que ninguém tenha consciência disso. Bowen observou este “efeito dominó emocional” em centenas de famílias e chamou-lhe processo intergeracional. Depois veio Salvador Minuchin, que estudou a maneira como as famílias se organizam em papéis: o cuidador, o rebelde, o pacificador, o ausente, o forte e o frágil. Nada disto é espontâneo; tudo é resposta a algo que existiu antes. Ivan Nagy aprofunda o conceito de lealdades invisíveis: muitas vezes carregamos dores emocionais que nem nos pertencem, como se estivéssemos a “compensar” uma injustiça, uma perda ou um trauma dos nossos antepassados. Sem sabermos, vivemos histórias que não são nossas. Não há nada de esotérico aqui. É a vida. Se temos empatia com a história trágica de um completo desconhecido, a Vida da nossa mãe, avó, bisavó e por aí fora, terá impacto na nossa. Nos entretantos dos anos, a ciência moderna acrescentou ainda mais camadas. Nos últimos 20 anos, estudos com sobreviventes do Holocausto, mães grávidas presentes no 11 de Setembro e vítimas de guerras, demonstraram que o trauma altera a expressão de certos genes e essas alterações passam para os filhos e netos. É laboratório. A isto chama-se epigenética transgeracional e é uma das bases mais sólidas da Consciência Sistémica biológica. A ciência também já sabe que emoções reprimidas, stress prolongado ou conflitos internos ativam a inflamação, a disfunção imunológica, as tensões musculares, as alterações hormonais e sintomas físicos reais. O corpo não mente. O corpo manifesta. O corpo completa aquilo que a psique não consegue integrar. A isto chama-se somatização, mais um pilar da Consciência Sistémica a nível fisiológico. Estudos mais recentes mostram que o trauma não resolvido altera a perceção, o comportamento, as relações e a capacidade de estar presente. E, sim, altera até a forma como respiramos, como nos movemos, como nos defendemos dos outros. É neurobiológico. Somos feitos de heranças emocionais, movimentos que não começámos, histórias que nos antecedem. Padrões que se repetem até alguém ter a coragem de lhes dar nome. Silêncios que ecoam nas gerações. Medos que se instalam sem nunca terem sido nossos. E é aqui que a prática espiritual moderna entra, não para dominar a teoria, mas para lhe dar outra camada de linguagem, a camada do sentido. A ciência descreve. A espiritualidade interpreta. E nós, no meio das duas, tentamos compreender.
Depois de compreender tudo isto sobre a Consciência Sistémica, surgiram-me outras grandes questões por responder: “O que são Constelações Familiares e como é que estão ligadas à Consciência Sistémica?”. Porque uma coisa é a teoria dos sistemas, outra é assistir a um grupo de pessoas completamente desconhecido a interpretar membros de uma família, que nunca conheceram e da qual nada sabem, e, mesmo assim, surgirem emoções que parecem encaixar na perfeição com uma precisão perturbadora. Mas bastou-me escrever “Constelações Familiares” num motor de busca para surgir o nome de Bert Hellinger, que, aliás, aparece em tudo o que é curso, livro e conversa sobre o tema. Hellinger, missionário, filósofo, terapeuta e psicanalista da terapia familiar sistémica e de várias abordagens humanistas, criou, as Constelações Familiares. São o culminar de três grandes ideais: A Psicologia Sistémica — a ideia de que ninguém é individual e fazemos parte de algo contínuo; O Psicodrama — que faz uma representação teatral das emoções e relações humanas; A Fenomenologia — que observa sem julgamentos e interpretações, apenas deixa que algo se revele através do fenómeno. O resultado foi algo que não é ciência pura, mas também não é misticismo completo. Cria-se um campo fenomenológico, a partir de um ponto, o indivíduo, que se expande para uma teia sequencial de interações onde o foco é analisar aquilo que se revela através da imagem que vemos. Parte de uma ideia radical, mas verdadeira e simples: quando o sistema é colocado no campo, o inconsciente torna-se visível. E esta é talvez a razão pela qual tanta gente, eu incluída, sai de um evento de Constelações Familiares com tantas perguntas por responder e com o pensamento que não conseguimos evitar: “Sim, eu acredito, mas o que raio é isto e o que é que acabou de acontecer?”. Mas a verdade que ninguém quer calar é que qualquer coisa aconteceu. E não é um ritual, não é a música, nem o incenso. É a imagem do sistema, do nosso sistema, representado fora de nós, onde finalmente conseguimos ver o que no, nosso, interior estava confuso. Hellinger foi o criador do método, mas a Maria Gorjão é uma das vozes contemporâneas que não se limitou ao método, mas fê-lo crescer e criou uma abordagem que integra a Consciência Sistémica, as Constelações, o desenvolvimento humano, a filosofia, a espiritualidade a linguagem simbólica e as práticas relacionais. E é neste momento que quem não estudou nada disto e não conhece os alicerces da casa, como eu, começa a misturar tudo. Pois muitos facilitadores de Constelações, tal como a Maria, tem inúmeras outras formações. A prática das Constelações foi absorvida por muitos contextos como a psicologia, o coaching, terapias integrativas, espiritualidade contemporânea, abordagens energéticas, medicina holística e a lista continua. É claro que, isto tudo, para nós, humanos, que somos especialistas em misturar linguagens quando estamos a tentar compreender aquilo que não sabemos nomear, começa a parecer coisa do diabo e da bruxaria.
Fica ainda um dilema por resolver: “Onde entra a espiritualidade no meio disto tudo? É naquilo que parece meio mágico e feitiço porque não sei o que é?” É que, na prática, por ter sido absorvida por tantos contextos quando alguém diz que foi a Constelações, a reação mais comum é pôr tudo no mesmo saco: Numerologia, Human Design, Física Quântica, Reiki, Meditação, crenças de várias religiões, Astrologia, Cristais e por aí fora. Isto não é um agrupamento teórico, não pertence tudo à mesma coisa, mas é cultural. Tudo o que não é medicina convencional científica é empurrado para o mesmo sítio: “coisas alternativas”. E muitos terapeutas ajudam a que esta confusão se propague. Por terem formações em muitas destas ferramentas distintas, nas suas terapias, utilizam uma vasta variedade de métodos, crenças e filosofias (e quase nunca vem acompanhado de uma explicação sobre o que estão a fazer). Não é que sejam mal-intencionados, de todo, mas porque trabalham o mesmo terreno em simultâneo: o invisível e espiritual. Resumidamente, quase todas as abordagens utilizam imagens como metáforas visuais para pensar em experiências emocionais. Exploram ligações, repetições, ciclos, energia, padrões. Curiosamente todas estas abordagens são procuradas pelo mesmo público, o que não encontra respostas no tradicional e quer significado, cura emocional e compreensão para aquilo que a lógica não consegue explicar. É natural que isto tudo acabe num só pacote com o rótulo “espiritual” ou “holístico”. Temos três formas de ver o invisível, através da psicologia, — que reconhece os padrões, repetições e traumas — das práticas não convencionais — que nos mostram como nos podemos libertar do padrão — e da espiritualidade — que aceita que a alma escolheu certos contextos para poder evoluir através deles. Nenhuma destas camadas é substituível. Nós, algures no meio delas, escolhemos o que ressoa connosco, mantendo uma certa lucidez sobre o que é estudo, experiência e crença.
Eu, sinto-me nesse meio, valorizo a ciência, a epigenética, a Consciência Sistémica, mas acredito também em algo maior, que não sei bem nomear. Há quem chame de energia, intuição, alma, ou simplesmente Vida com V. Honestamente, não há bem uma necessidade de definir onde começa uma coisa e acaba a outra. Talvez, seja exatamente nesse entre que acontece a Espiritualidade na Prática. E, agora, quando alguém me perguntar: “Então, o que foste fazer naquele evento? Acreditas mesmo nessas coisas?” já não tento convencer ninguém de nada, já não procuro a resposta perfeita, o que tenho é isto:
Fui olhar para uma coisas, que sempre estiveram lá e que estou a tentar ver melhor.
Fui pôr uma imagem naquilo que o meu corpo já carregava.
Fui ouvir histórias que começaram antes de mim, mas que eu continuo a escrever.
Saí de lá com mais perguntas do que respostas, mas, ainda assim, mais em paz.
Este texto não é para céticos, mas, talvez, os possa tornar um pouco menos. Não porque prova alguma coisa, mas porque mostra que, atrás dos grandes palavrões misteriosos, há algo a acontecer. E a partir daí, talvez, consigam escolher com um bocadinho mais de clareza como querem continuar a viver.
Há algo de irónico, e de bonito, no facto de tudo isto ter começado no Dia de Todos os Santos. Um dia dedicado a quem já foi, que nos antecede, nas presenças que não vemos, mas que de alguma forma acreditamos. Talvez, faça sentido ter sido nesse dia que olhei para os “santos” do meu próprio sistema. Também eles, fazem parte desta Constelação a que chamo Vida.