sexta-feira, 14 de novembro de 2025

 Kodak: A Empresa que colocou o mundo a fotografar

    Poucas marcas conseguiram moldar o modo como vemos o mundo tanto quanto a Kodak. A empresa norte-americana, fundada no século XIX, não só democratizou a fotografia, como deu origem a uma nova linguagem visual que atravessou gerações.





    Hoje, mais de 140 anos depois, o nome Kodak continua a evocar o poder das imagens e a nostalgia dos “momentos Kodak” expressão que, durante décadas, simbolizou o prazer simples de captar um instante.

 

O visionário George Eastman


 

  A história começa com George Eastman, um jovem bancário de Rochester, Nova Iorque, apaixonado por tecnologia. Em 1880, Eastman decidiu simplificar o processo fotográfico, até então complexo e caro. Começou a fabricar placas secas de gelatina, uma inovação que substituía o pesado equipamento das câmaras tradicionais.

Três anos depois, juntou-se ao empresário Henry Strong e fundou a Eastman Dry Plate Company. O objetivo era claro: tornar a fotografia acessível a qualquer pessoa.

 

“You press the button, we do the rest”

 

    Em 1888, nascia a primeira câmara Kodak. Era pequena, leve e vinha carregada com um rolo de filme para 100 exposições. O utilizador só precisava de carregar num botãoo resto, garantiam os técnicos da empresa, seria tratado pela Kodak.

O lema publicitário“You press the button, we do the rest”  resumia a revolução. Pela primeira vez, fotografar deixou de ser privilégio de profissionais. Tornou-se um passatempo popular, ao alcance de famílias, viajantes e curiosos.

O nome “Kodak”, criado por George Eastman, foi escolhido por ser curto, fácil de pronunciar e visualmente marcante. “Começa e termina com um K, uma letra forte”, explicava o fundador.




 

O rolo de filme que mudou o mundo

 

    No ano seguinte, em 1889, a Kodak apresentou o primeiro filme transparente em rolo comercial. Foi essa inovação que permitiu o nascimento da indústria cinematográfica. Sem o filme Kodak, o cinema como o conhecemos talvez nunca tivesse existido.

Durante o século XX, a empresa tornou-se sinónimo de imagem: das câmaras domésticas às produções de Hollywood, dos registos médicos às missões espaciais. A tecnologia da Kodak esteve presente em tudoaté nas primeiras fotografias tiradas em Marte.

 

O desafio digital

 

    Mas o sucesso também trouxe complacência. Apesar de ter desenvolvido a primeira câmara digital em 1975, a Kodak hesitou em apostar nessa tecnologia por medo de comprometer o seu lucrativo negócio de filmes fotográficos.

Quando o digital se impôs, já era tarde. A empresa entrou em crise, perdeu terreno para concorrentes mais ágeis e acabou por se reestruturar profundamente na década de 2010.

Hoje, a Kodak procura reinventar-se como empresa tecnológica especializada em imagem, impressão e materiais avançados. O seu foco está em setores como a impressão comercial, a imagem industrial e as soluções sustentáveis.

 

O legado que perdura

 

    Mais do que uma marca, a Kodak representa uma ideia: a de que qualquer pessoa pode guardar o seu próprio olhar sobre o mundo.
Da simplicidade de uma câmara de 1888 às imagens que viajaram até Marte, a história da Kodak é, a história de todos nós, de como aprendemos a congelar memórias e a transformá-las em pedaços de eternidade.

 

 


terça-feira, 11 de novembro de 2025

A quiet invite to live: "Perfect Days", film by Wim Wenders

 A quiet invite to live: 

“Perfect Days”, film by Wim Wenders (2023)


“Next time is next time. Now is now.”


Hoje debruço-me sobre a narrativa de Wim Wenders, que  não é uma fórmula de como devemos viver, mas convida-nos a respirar fundo através da vida de Hirayama, um homem que vive a vida na sua forma mais simples, na sua rotina e nos seus hábitos, no entanto descobrimos ser muito especial. 


PERFECT DAYS - Official Trailer


O filme retrata duas semanas na vida de Hirayama, um higienizador de casas de banho públicas em Tokyo, um trabalho muito “invisível”, mas que exerce de forma exímia, como se fosse a sua obra de arte, e logo de caras deixa-nos a pergunta: Como é que podemos ter dias perfeitos quando o trabalho é limpar sanitas? Wenders explica-nos ao longo de duas horas: Ao apreciar tudo. Reparar e apreciar como o sol incide diretamente nas folhas dançantes das árvores e nas sombras que produzem e que se transformam,  ter prazer no trabalho que fazemos todos os dias, independentemente do que seja (numa das cenas, Hirayama usa um pequeno espelho para limpar a sanita em todas as zonas onde o olhar não chega) , e ao  aceitar aquilo que a vida nos dá: um dia, o teu colega de trabalho, está doente e trabalhas por dois, no outro, a tua sobrinha faz-te uma visita inesperada.


Também podemos deixar de parte o enredo principal e olhar aos detalhes: as cassetes de clássicos, o rádio, a modesta coleção de livros,  o simples candeeiro de secretária no chão, a almofada de trigo sarraceno, as moedas deixadas ao lado do relógio. Estes simples detalhes rotineiros mostram-nos a felicidade na simplicidade,  numa vida mais analógica. Mais do que uma história profunda, há um desejo da minha parte de passar horas a olhar para cada frame e ficar a  admira-lo, o sentimento inerente de beleza e calma invade-nos pelo ecrã e faz-me querer levá-las comigo para o meu dia.


 


Hirayama, interpretado por Kôji Yakusho, é um homem de espírito claro, grato àquilo que a vida lhe oferece e procura a beleza nessas pequenas rotinas e ações cotidianas. Vive a vida em repetições, quase que ritualísticas, mas bastante simples: acordar antes do nascer do sol, dobrar o futon, ir para tokyo no seu carro com uma cassete dos anos 70, no trabalho segue os mesmo passos todos os dias, ao chegar a casa, vai de bicicleta até aos banhos públicos, jantar num restaurante de rua local, ao chegar a casa, dedica-se à leitura. E assim repete todos os dias, a sua prática diária bem estruturada, da qual nutre imenso respeito.

Tudo é estética, a beleza na simplicidade da vida, como mencionei anteriormente, no entanto, o conceito de beleza é em si algo complexo, não é só a cinematografia e o visual que carrega esse peso, o nosso emocional procura muito mais do que nos leva a querer. Aqui podemos ver como Hirayama procurava a beleza nesses pequenos gestos, especialmente na natureza que o rodeia e nos atos mais mundanos. 



Isto faz-me repensar na forma como encaramos o ambiente em que existimos e no quão desligados estamos daquilo que já existe, enquanto tentamos procurar outras formas de alcançar a beleza, ou até mesmo a perfeição. Podemos ver isto como uma crítica à vida citadina na cidade de Tokyo, em como as pessoas vivem nela e como a habitam. No entanto acho que podemos inserir esta mesma  realidade também no nosso quotidiano citadino. Como não só os nossos comportamentos cada vez mais individualizados nos distanciam do espaço em que habitamos, mas também os próprios espaços são cada vez mais construídos e programados para serem externos e distintos a nós, em vez de serem uma extensão das pessoas, algo familiar e que desperte em nós uma sensação de realidade.


No filme, existe uma constante abstinência de qualquer objeto relacionado com a “cidade digital”, objetos como um telemóvel ou um algoritmo, um metropolitano que teletransporta as pessoas a altas velocidades por pequenas segmentações da cidade (isto mais na realidade da cidade de Tokyo do que na nossa), são tudo tecnologias que contribuiram para a digitalização da experiência urbana.

Tento com isto evidenciar a falta de sentido de continuidade, que muitas vezes nos passa despercebido de tão intrínseco que está no nosso dia a dia. Os dias passam a ser divididos em casa- trabalho; Humano e natureza; eu e tu; online e presente; entretido ou aborrecido, existe uma polarização da nossa própria existência com o nosso meio, e é engraçado porque muitas vezes falamos da cidade como um tecido urbano, o tecido é contínuo e esse tecido é interrompido quando temos estruturas que não têm em atenção a “alma da cidade”, que é feita por nós, cidadãos que a habitam.


Komorebi

Existe uma palavra chave relacionada com o filme (surgem até rumores de que este pudesse ter sido o nome do filme) KOMOREBI (木漏れ日). Esta palavra japonesa descreve um conceito que já mencionei ser retratado no filme: a luz solar que passa pelas folhas que balançam com o  soprar do vento e as sombras que elas criam no chão. Mais do que a definição de um efeito visual, é também um significado de momento único, que nos convida à contemplação, a capacidade de encontrar beleza no mundo que nos rodeia. Um conceito que reconhece tanto a luz como a sombra, como uma forma de mostrar os pequenos raios de luz em momentos que nos parecem cobertos de escuridão. No mundo atual, este conceito está adormecido, mas durante todo o enredo, vemos Hirayama colecionar diversos momentos destes na sua câmara analógica, durante as suas pausas de almoço junto ao jardim público mais próximo ou ao entardecer através da janela da sua casa de bairro.


O filme convida-nos a olhar à continuidade, que se estende do nosso meio para nós mesmos, nos lugares mais íntimos da nossa mente, e que dentro de tudo aquilo que nos mantêm completos, está também a nossa própria prática de habitar com o meio, e com escolhemos habitar cidade.


Durante o desenrolar do filme descobrimos através da interação com a sua sobrinha, um pouco do seu passado e do seu afastamento familiar, e com o pouco que Hirayama nos diz, presumimos que a sua família e não concorda com as suas escolhas de vida, a forma como vive (de forma mais frugal). Assim podemos ver que apesar de ter esta forma de encarar a vida, percebemos que é também uma parte vulnerável, e que também a si lhe surgem obstáculos que nos fazem pensar quando poderá vir a quebrar o controlo da vida que criou para si, no entanto é a forma como lida com os acontecimentos de maior tensão que lhe traz balanço. Não é sobre a ação que é tomada, é sobre aceitar o que está a acontecer como parte da experiência de viver.



Termino por acrescentar que com esta pesquisa vim a descobrir, que este filme foi projetado para ser um documentário em conjunto com a câmara municipal de Shibuya sobre as casas de banho públicas da cidade, de modo a promover um novo lado de um espaço normalmente associado a algo sujo e desagradável. Como uma forma de repensar e refletir sobre um mínimo detalhe que é tornar a cidade mais habitável e tornar esta narrativa numa forma de ver e viver. Questiono-me porque levamos a vida a correr, porque nunca estamos satisfeitos, porque competimos para ser melhores? E acima de tudo, porque normalizamos isto como uma forma diária de viver? É por isso que considero este filme como um marco na minha vida, um dos melhores filmes que já vi e que levo comigo sempre, porque me faz questionar a minha existência, não em forma de “crise existencial”, mas porque me abre uma janela para mim própria sempre que penso nele. O poder emocional que carrega não nasce de grandes acontecimentos e reviravoltas dramáticas, mas de uma série de pequenos, quase invisíveis convites para redescobrir e admirar uma forma  silenciosa de existir.



Referências que considero essenciais (e que valem a pena cada segundo):


Deixo aqui o link do website criado para o filme. Para quem gostaria de poder imergir um pouco neste contexto da vida de Hirayama. Uma recriação daquilo que seriam 365 dias na vida deste personagem num “scrolling book with sound”. Uma verdadeira atmosfera poética sobre aqueles que são os valores principais que o filme pretende captar. Um design que nos leva a aprofundar este universo. Também dentro do website podemos ter acesso a material expandido, como é o exemplo dos diários escritos que nos fazem querer que isto não seja apenas mais uma narrativa cinematográfica, mas sim um pequenas partes de um universo muito mais amplo.


Em auxílio ao texto deixo também alguns links: Um vídeo muito interessante, onde o diretor Wim Wenders fala sobre a sua inspiração para Hirayama, um personagem visto quase como um monge.


Punctuation, a complex and rigorous system, from the archives of the Library of Alexandria to our digital keyboards.

 I took many classes on the history of writing, from the earliest evidence of human traces to the Roman alphabet we use today. In these classes, I learned how different alphabets succeeded one another and evolved, but I never learned anything about punctuation. 


According to linguist Paolo Poccetti, the earliest traces of punctuation date back to the third and second millennia BCE. They took the form of vertical or horizontal dashes in cuneiform writing. Today, linguists debate this, preferring to agree that punctuation originated between the third and second centuries BCE in the Library of Alexandria. The purpose of punctuation was to organize writing. Texts were written in scriptio continua, i.e., without separating words and sentences, just lines of letters. Points were used, which were an evolution of the dash. There were three different types: the high point, the mid-point, and the low point, which today correspond to the full stop, semicolon, and comma. They were used to clarify texts but also to provide reading cues, allowing for spacing and pauses. Punctuation was thus separated from writing; it was not the author who formatted the text, but archivists or those who would read it aloud.

The use of punctuation spread with the production of the Vulgate in the 5th century. This is a copy of the Bible intended to be read aloud. It therefore requires the sentences and text to be structured, and in addition to periods, symbols were introduced to mark the importance of a word or the beginning of a section in the text. There was still no consensus on the use of punctuation, so each abbey had its own rules. Copyist monks introduced new symbols such as the comma, which was a slash, the comma, the ancestor of the colon, and the first question marks. They used the white space in the margins to comment on and embellish the texts they copied, which is known as glossing. It was also at this time that the distinction between upper and lower case letters appeared. It was Alcuin, a cleric of Charlemagne, who democratized the use of a capital letter to mark the beginning of a sentence. Gradually, a certain form of standardization of punctuation emerged, but this took place over several centuries. It was during the Renaissance and with the development of printing that rules were established.



In 1450, Gutenberg revolutionized printing in Europe by using movable metal type. This saved a huge amount of time in book production. For example, it took a monk three years to copy the Vulgate, whereas between 1452 and 1455 Gutenberg was able to produce around 180 copies of his famous Bible, the B42. This invention enabled the development of the book industry. The characters were standardized and had to be molded in advance, as did the punctuation. Venetian printers also contributed to the standardization of punctuation. Aldus Manutius popularized the use of periods and colons at the end of sentences and developed the use of semicolons, commas, and parentheses. In 1471, Jean Heynlin (philosopher and founder of the Sorbonne printing workshop) wrote the Compendiosus de arte punctandi dialogus, a fairly short treatise that explains, in the form of a dialogue between a master and his apprentice, how to use the virgula, the comma, the colon (full stop), the periodus (semicolon), and other signs that have since disappeared. The rise of writing also offered more freedom in layout, with more white space, resulting in better structured and organized texts. 

Punctuation underwent a similar evolution, becoming more precise. At the end of the 16th century, the punctuation marks we still use today began to emerge: the question mark, the exclamation mark, the period, the comma, quotation marks, etc. In 1527, Geoffroy Tory published his own treatise on punctuation, Champ Fleury, in which he presented eleven punctuation marks and was the first to replace the full stop used since ancient times with a classic period to end a sentence. The most famous treatise on punctuation is Etienne Dolet's De la punctuation de la langue francoise (1540). Punctuation finally became universal, with a name, usage, and properties for each symbol. This code became a reference for typographers.


When punctuation first appeared, it was not managed by the author but was introduced retrospectively, and was used to make reading aloud easier. With movable type printing, it was publishers and typographers who punctuated texts. But with the popularization of reading and silent reading, punctuation also came to be used as a stylistic tool.


Some authors (poets) eliminate all traces of punctuation marks and create graphic compositions by playing with white space and line breaks. Like Apollinaire with his Calligrammes, and Mallarmé with Un coup de dés jamais n’abolira le hasard. Apollinaire gave shape to his text by breaking free from the rules of composition. There are examples of poems in the shape of a cat or a human silhouette. In this work by Mallarmé, he completely removed punctuation and created a more airy and graphic composition.



During my research, I came across an article by France Culture that discusses non-standard punctuation. In the 19th century, to counter the influence of rules imposed by printers, some authors invented new punctuation marks, new symbols that express emotions or moods. They tried to restore a more oral style, as they considered the punctuation system to be too limited.

They invented punctuation marks for irony, contempt, anger, love, hate, joy, pain, and more. These new symbols did not become part of everyday punctuation usage. 





Today, punctuation still follows (very) strict rules, which vary from language to language. For example, French and English typographical rules use different symbols for quotation marks. Punctuation is no longer a point of contention between publishers and authors; it has become a playground for graphic designers and typographers. Thierry Fetiveau designed the Andersen typeface and introduced 13 new punctuation marks. This font is intended for reading children's stories. 





We are also seeing the development of new characters, emoticons, and emojis, which are disrupting the rules of punctuation. We see that periods are disappearing in text messaging language, where it is necessary to be quick, efficient, and use as few characters as possible. A new syntax is developing, words are abbreviated, and punctuation is disappearing. In our digital writing, they replace full stops and give indications of the intonation or tone of the text. They appeared on online forums between 1980 and 1990. Scott Fahlman invented the smiley by combining several punctuation marks; it is used to indicate humor or seriousness in a conversation. The smiley expresses different emotions using different combinations of symbols to represent the mouth. In Japan, emotions are expressed through the eyes, which is reflected in kaomoji (Japanese emoticons), which I find more complex and interesting than smileys. They allow nonverbal expression and avoid misunderstandings. In 1999, again in Japan, emojis were invented, a graphic version of emoticons. Are they a new evolution in punctuation? ¯\_()_/¯¯ We don't know, but they allow us to express emotions or tones, although they are not yet at the point of completely replacing traditional symbols.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Conclusões do Dia de Todos os Santos

 

Este texto não é para céticos, mas, talvez, os possa tornar um pouco menos. Sempre fui exposta a algum tipo de espiritualidade, fosse através da religião ou de terapias holísticas. Não há bem uma convenção padronizada para aquilo em que acredito. Mas acredito que existe uma dimensão maior que a humanidade, seja lá o que for. No início deste mês de Novembro estive presente num evento de Constelações Familiares cujo o tema era Espiritualidade na Prática, organizado pela Maria Gorjão Henriques e a sua equipa da Consciência Sistémica. As razões pelas quais fui ao evento não interessam realmente para o que quero expor neste texto. Interessa sim, para contexto, o pouco que sabia, e sei, sobre Consciência Sistémica, sobre Constelações Familiares, sobre Espiritualidade e sobre a própria Maria Gorjão. As perguntas que surgiram em mim ao decidir participar, ou não, neste evento, foram algo como: “Mas eu nem sei o que isto é” ou então “Espiritualidade? Na Prática? Nem sei a minha na teoria”. No final do evento, embora me tenha feito sentido estar lá todo o dia, haviam questões que não sabia responder, não tinha respostas para conceitos e não conseguia explicar nada — não que a teoria por trás da prática seja realmente importante para mim, pois o que experienciei será impossível de explicar a quem não esteja ligado ao assunto. No entanto, quando confrontada por pessoas do meu núcleo próximo com perguntas como: “Então o que é que foste fazer? Como é que foi?”. Enquanto tentava arranjar uma explicação para dar a pessoas mais duras que um pau, via-me perdida no limbo que separa a ciência, o factual, as terapias integrativas e holísticas, as minhas crenças e até ao extremo do esotérico. Era a definição real do velho ditado “quem conta um conto acrescenta um ponto”.

        Maria Gorjão Henriques é psicóloga de formação, escritora, terapeuta, professora e facilitadora de Consciência Sistémica há mais de 20 anos. Escreveu livros como “O despertar da Consciência com as constelações familiares” e “Relacionamentos Amorosos, o espelho das histórias e dos traumas familiares”. É, ainda CEO e fundadora da Consciência Sistémica Global e do Campos Físico da Consciência Sistémica em Portugal, ao qual deu o nome de Lagar da Alma. Dá aulas de Direito Sistémico no Brasil e enquanto facilitadora de Constelações fez a sua formação com Bert Hellinger, o primeiro a nível internacional a introduzir o tema das Constelações Familiares, entre muitas outras formações que realizou na área do desenvolvimento humano e espiritual. Foi pela Maria Gorjão que que me cruzei com os conceitos de Consciência Sistémica e Constelações pela primeira vez. E, foi a partir daí que começaram a surgir as dúvidas entre o que acabava de descobrir e aquilo que pela apropriação cultural já tinha vindo a conhecer. É por isto que este texto surge, para desmistificar todos estes termos e localizar a linha entre a ciência, a espiritualidade e as nossas (minhas, talvez) crenças.

        Foi só depois do evento e das perguntas desconfortáveis das pessoas “mais duras que um pau” que comecei a perceber que aquilo a que hoje chamamos de Consciência Sistémica não nasceu em salas perfumadas de incenso, nem em retiros xamânicos, nem em discursos sobre a alma. Nasceu muito antes, e muito mais perto da psicologia do que da espiritualidade. A Consciência Sistémica, nas suas raízes, tem a teoria dos sistemas familiares desenvolvida entre as décadas de 50 e 70 por nomes como Murray Bowen, Salvador Minuchin ou Ivan Nagy. A ideia era simples: ninguém é um indivíduo isolado. Somos e fazemos parte de um sistema, temos uma família, uma cultura e história onde emoções, papéis e padrões são passados de pessoa para pessoa, como quem herda uma quantidade exorbitante de dinheiro, sem sequer saber que pertencia à família, e tem de lidar com os seus pontos positivos e, claro, negativos também. É aqui que tudo começa. Não em chakras. Não em karma. Não em energias. Em ciência humana e observável.

        A Consciência Sistémica por mais mística que pareça quando dita numa sala com música de meditação nasceu longe de qualquer ritual ou linhagem espiritual. Nasceu na psicologia, com o estudo da família e da observação empírica do comportamento humano. Para Bowen, um indivíduo não é uma linha solta no espaço: é um nó numa teia, um elemento num sistema onde tudo o que acontece num ponto terá efeitos nos outros. Os medos, as lealdades, os padrões e as feridas, tudo se transmite de geração em geração, mesmo que ninguém tenha consciência disso. Bowen observou este “efeito dominó emocional” em centenas de famílias e chamou-lhe processo intergeracional. Depois veio Salvador Minuchin, que estudou a maneira como as famílias se organizam em papéis: o cuidador, o rebelde, o pacificador, o ausente, o forte e o frágil. Nada disto é espontâneo; tudo é resposta a algo que existiu antes. Ivan Nagy aprofunda o conceito de lealdades invisíveis: muitas vezes carregamos dores emocionais que nem nos pertencem, como se estivéssemos a “compensar” uma injustiça, uma perda ou um trauma dos nossos antepassados. Sem sabermos, vivemos histórias que não são nossas. Não há nada de esotérico aqui. É a vida. Se temos empatia com a história trágica de um completo desconhecido, a Vida da nossa mãe, avó, bisavó e por aí fora, terá impacto na nossa. Nos entretantos dos anos, a ciência moderna acrescentou ainda mais camadas. Nos últimos 20 anos, estudos com sobreviventes do Holocausto, mães grávidas presentes no 11 de Setembro e vítimas de guerras, demonstraram que o trauma altera a expressão de certos genes e essas alterações passam para os filhos e netos. É laboratório. A isto chama-se epigenética transgeracional e é uma das bases mais sólidas da Consciência Sistémica biológica. A ciência também já sabe que emoções reprimidas, stress prolongado ou conflitos internos ativam a inflamação, a disfunção imunológica, as tensões musculares, as alterações hormonais e sintomas físicos reais. O corpo não mente. O corpo manifesta. O corpo completa aquilo que a psique não consegue integrar. A isto chama-se somatizaçãomais um pilar da Consciência Sistémica a nível fisiológico. Estudos mais recentes mostram que o trauma não resolvido altera a perceção, o comportamento, as relações e a capacidade de estar presente. E, sim, altera até a forma como respiramos, como nos movemos, como nos defendemos dos outros. É neurobiológico. Somos feitos de heranças emocionais, movimentos que não começámos, histórias que nos antecedem. Padrões que se repetem até alguém ter a coragem de lhes dar nome. Silêncios que ecoam nas gerações. Medos que se instalam sem nunca terem sido nossos. E é aqui que a prática espiritual moderna entra, não para dominar a teoria, mas para lhe dar outra camada de linguagem, a camada do sentido. A ciência descreve. A espiritualidade interpreta. E nós, no meio das duas, tentamos compreender.

        Depois de compreender tudo isto sobre a Consciência Sistémica, surgiram-me outras grandes questões por responder: “O que são Constelações Familiares e como é que estão ligadas à Consciência Sistémica?”. Porque uma coisa é a teoria dos sistemas, outra é assistir a um grupo de pessoas completamente desconhecido a interpretar membros de uma família, que nunca conheceram e da qual nada sabem, e, mesmo assim, surgirem emoções que parecem encaixar na perfeição com uma precisão perturbadora. Mas bastou-me escrever “Constelações Familiares” num motor de busca para surgir o nome de Bert Hellinger, que, aliás, aparece em tudo o que é curso, livro e conversa sobre o tema. Hellinger, missionário, filósofo, terapeuta e psicanalista da terapia familiar sistémica e de várias abordagens humanistas, criou, as Constelações Familiares. São o culminar de três grandes ideais: A Psicologia Sistémica — a ideia de que ninguém é individual e fazemos parte de algo contínuo; O Psicodrama — que faz uma representação teatral das emoções e relações humanas; A Fenomenologia — que observa sem julgamentos e interpretações, apenas deixa que algo se revele através do fenómeno. O resultado foi algo que não é ciência pura, mas também não é misticismo completo. Cria-se um campo fenomenológico, a partir de um ponto, o indivíduo, que se expande para uma teia sequencial de interações onde o foco é analisar aquilo que se revela através da imagem que vemos. Parte de uma ideia radical, mas verdadeira e simples: quando o sistema é colocado no campo, o inconsciente torna-se visível. E esta é talvez a razão pela qual tanta gente, eu incluída, sai de um evento de Constelações Familiares com tantas perguntas por responder e com o pensamento que não conseguimos evitar: “Sim, eu acredito, mas o que raio é isto e o que é que acabou de acontecer?”. Mas a verdade que ninguém quer calar é que qualquer coisa aconteceu. E não é um ritual, não é a música, nem o incenso. É a imagem do sistema, do nosso sistema, representado fora de nós, onde finalmente conseguimos ver o que no, nosso, interior estava confuso. Hellinger foi o criador do método, mas a Maria Gorjão é uma das vozes contemporâneas que não se limitou ao método, mas fê-lo crescer e criou uma abordagem que integra a Consciência Sistémica, as Constelações, o desenvolvimento humano, a filosofia, a espiritualidade a linguagem simbólica e as práticas relacionais. E é neste momento que quem não estudou nada disto e não conhece os alicerces da casa, como eu, começa a misturar tudo. Pois muitos facilitadores de Constelações, tal como a Maria, tem inúmeras outras formações. A prática das Constelações foi absorvida por muitos contextos como a psicologia, o coaching, terapias integrativas, espiritualidade contemporânea, abordagens energéticas, medicina holística e a lista continua. É claro que, isto tudo, para nós, humanos, que somos especialistas em misturar linguagens quando estamos a tentar compreender aquilo que não sabemos nomear, começa a parecer coisa do diabo e da bruxaria.

        Fica ainda um dilema por resolver: “Onde entra a espiritualidade no meio disto tudo? É naquilo que parece meio mágico e feitiço porque não sei o que é?” É que, na prática, por ter sido absorvida por tantos contextos quando alguém diz que foi a Constelações, a reação mais comum é pôr tudo no mesmo saco: Numerologia, Human Design, Física Quântica, Reiki, Meditação, crenças de várias religiões, Astrologia, Cristais e por aí fora. Isto não é um agrupamento teórico, não pertence tudo à mesma coisa, mas é cultural. Tudo o que não é medicina convencional científica é empurrado para o mesmo sítio: “coisas alternativas”. E muitos terapeutas ajudam a que esta confusão se propague. Por terem formações em muitas destas ferramentas distintas, nas suas terapias, utilizam uma vasta variedade de métodos, crenças e filosofias (e quase nunca vem acompanhado de uma explicação sobre o que estão a fazer). Não é que sejam mal-intencionados, de todo, mas porque trabalham o mesmo terreno em simultâneo: o invisível e espiritual. Resumidamente, quase todas as abordagens utilizam imagens como metáforas visuais para pensar em experiências emocionais. Exploram ligações, repetições, ciclos, energia, padrões. Curiosamente todas estas abordagens são procuradas pelo mesmo público, o que não encontra respostas no tradicional e quer significado, cura emocional e compreensão para aquilo que a lógica não consegue explicar. É natural que isto tudo acabe num só pacote com o rótulo “espiritual” ou “holístico”. Temos três formas de ver o invisível, através da psicologia, — que reconhece os padrões, repetições e traumas — das práticas não convencionais — que nos mostram como nos podemos libertar do padrão — e da espiritualidade — que aceita que a alma escolheu certos contextos para poder evoluir através deles.  Nenhuma destas camadas é substituível. Nós, algures no meio delas, escolhemos o que ressoa connosco, mantendo uma certa lucidez sobre o que é estudo, experiência e crença.

        Eu, sinto-me nesse meio, valorizo a ciência, a epigenética, a Consciência Sistémica, mas acredito também em algo maior, que não sei bem nomear. Há quem chame de energia, intuição, alma, ou simplesmente Vida com V. Honestamente, não há bem uma necessidade de definir onde começa uma coisa e acaba a outra. Talvez, seja exatamente nesse entre que acontece a Espiritualidade na Prática. E, agora, quando alguém me perguntar: “Então, o que foste fazer naquele evento? Acreditas mesmo nessas coisas?” já não tento convencer ninguém de nada, já não procuro a resposta perfeita, o que tenho é isto:


Fui olhar para uma coisas, que sempre estiveram lá e que estou a tentar ver melhor.

Fui pôr uma imagem naquilo que o meu corpo já carregava. 

Fui ouvir histórias que começaram antes de mim, mas que eu continuo a escrever. 

Saí de lá com mais perguntas do que respostas, mas, ainda assim, mais em paz. 

 

Este texto não é para céticos, mas, talvez, os possa tornar um pouco menos. Não porque prova alguma coisa, mas porque mostra que, atrás dos grandes palavrões misteriosos, há algo a acontecer. E a partir daí, talvez, consigam escolher com um bocadinho mais de clareza como querem continuar a viver.

Há algo de irónico, e de bonito, no facto de tudo isto ter começado no Dia de Todos os Santos. Um dia dedicado a quem já foi, que nos antecede, nas presenças que não vemos, mas que de alguma forma acreditamos. Talvez, faça sentido ter sido nesse dia que olhei para os “santos” do meu próprio sistema. Também eles, fazem parte desta Constelação a que chamo Vida. 



Francesco Careri e o livro Walkscapes: O Caminhar como Prática Estética

 


O livro Walkscapes: O Caminhar como Prática Estética, de Francesco Careri, publicado em 2002, é uma das obras mais influentes na reflexão contemporânea sobre as relações entre a arte, a arquitetura e o território. O autor propõe compreender o ato de caminhar não apenas como deslocamento físico, mas como uma prática estética, crítica e projetual, capaz de gerar novas formas de leitura e intervenção no espaço urbano e paisagístico.

O autor: Francesco Careri

Francesco Careri (1966) é arquiteto, professor e investigador italiano, atualmente docente na Università degli Studi Roma Tre, onde integra o Laboratório de Arte Cívica. É também cofundador do grupo Stalker/Osservatorio Nomade, um coletivo interdisciplinar dedicado à exploração dos territórios urbanos e às práticas que envolvem a participação social.
A sua investigação aborda a arquitetura como experiência e o caminhar como instrumento de conhecimento e projeto, propondo uma abordagem sensível e performativa à construção do espaço.

Walkscapes

Em Walkscapes, Careri propõe uma leitura do caminhar enquanto ato criativo e estético que ultrapassa a função prática do deslocamento. O livro retrata o ato de caminhar como prática artística ao longo da história, desde os rituais de peregrinação das sociedades antigas até às vanguardas do século XX, nomeadamente o Dadaísmo, o Surrealismo e o Situacionismo.

Ao longo da obra, o autor demonstra que o ato de andar sempre foi um meio de construção simbólica do espaço, e que nas vanguardas artísticas o caminhar reaparece como estratégia crítica e poética, desafiando as normas do urbanismo e do ritmo da vida moderna.

Careri recupera especialmente as ideias da Teoria da Deriva do pensador Situacionista Guy Debord, nas quais o passeio urbano transforma-se num processo de exploração emocional e subjetiva da cidade. Esta abordagem inspira a noção contemporânea de caminhar como projeto, em que o território é observado, interpretado e transformado pela presença e pelo movimento do próprio corpo.

O caminhar como prática estética e projetual

Para Careri, o ato de caminhar é simultaneamente estético, político e arquitetónico. Assim, o autor sugere que a arquitetura não se limita ao edifício, mas inclui também ações, percursos e narrativas. O espaço deixa de ser apenas um objeto físico para se tornar um processo em constante transformação, ativado pela presença humana e pela deambulação.

Esta obra influenciou diversos campos desde a arte contemporânea, urbanismo, geografia cultural, até à antropologia. O livro contribuiu para reconhecer o “walking art” como forma de expressão artística e consolidar o conceito de práticas espaciais como modos de agir no território que misturam simultaneamente o corpo, o movimento e a experiência.

Artistas como Richard Long, Hamish Fulton e Janet Cardiff são frequentemente referidos como exemplos de criação através da caminhada, transformando os seus trajetos em obras que interrogam o espaço, o tempo e a percepção.

Francesco Careri, em Walkscapes: O Caminhar como Prática Estética, propõe uma redefinição do papel do artista e do arquiteto: mais do que construir, trata-se de perceber, experienciar, revelar e registar o espaço através do caminhar.
A obra demonstra que andar é um ato de conhecimento e criação, um modo de pensar e projetar o mundo. Ao transformar este gesto quotidiano numa prática artística e investigativa, Careri amplia os limites da arquitetura e da arte, convidando-nos a habitar o território com um olhar crítico, poético e sensível.

Franz Kafka, Desenhador


Se tal coisa for possível, gostava que este texto seguisse directamente do meu texto acerca dos gatafunhos, garatujas e outros rabiscos. Tanto o presente texto como o anterior partilham a natureza do seu motivo e do seu tema.

Diz Max Brod, o amigo de Franz Kafka a quem devemos a sobrevivência dos manuscritos daquele que é um dos mais importantes escritores da cidade de Praga e autor de algumas das obras fundamentais do modernismo europeu, que o Kafka teve sempre, pelo menos desde que foram colegas na Universidade, o hábito de desenhar nas margens dos seus cadernos de apontamentos.

Estes rabiscos sobreviveram duplamente às intenções do esquecimento, graças ao mesmo Max Brod que desobedeceu ao pedido do seu amigo e não lançou ao fogo os papéis que Franz Kafka lhe confiou para destruição. E, contra todas as probabilidades, chegaram até nós as pequenas figuras e rabiscos que povoam as margens dos seus manuscritos, cartas e cadernos de notas. Exercícios distraídos, esboços feitos para quebrar a monotonia ou aliviar o aborrecimento, que não foram feitos com esperança de imortalidade.



Não temos reais motivos para dizer que Kafka alguma vez se tenha considerado um desenhador. Há passagens dos seus diários, que são raras e não reflectem mais que um exagero da expressão, que à primeira vista podiam contradizer esta afirmação: “Há momentos em que sinto que não compreendo absolutamente nada da pintura ou do desenho, e por vezes sinto que uma actividade desse género seria o meu verdadeiro talento.” (Diários, 1911). A verdade biográfica é, porém, que Kafka não acreditava que os seus traços pudessem ter valor artístico. E, todavia, desenhava — discretamente, quase às escondidas — figuras humanas reduzidas à sua expressão mínima, seres alongados e frágeis, equilibrados num gesto ou suspensos num passo interrompido. São desenhos de uma simplicidade desconcertante, e é precisamente nessa simplicidade que reside a sua força: nelas parece haver o eco de uma luta interna.

Leia-se o que Max Brod escreve na biografia que dedicou ao seu amigo: “Ele desenhava ininterruptamente, frequentemente nas margens dos seus manuscritos. Ele rasgava as páginas ou escondia-as. Eu tive de resgatar o pouco que podia ser salvo depois da sua morte. Ele dizia-me que desenhar era uma tentação para fugir à escrita e que ele lutava para lhe resistir” (Max Brod, Franz Kafka: Uma Biografia, 1937).

Há nos sinais de compulsão e liberdade com que o Kafka produzia estes desenhos uma afinidade com a experiência dos alunos de desenho de que falava antes: aquele momento em que o gesto, antes de obedecer à ideia de perfeição, cria a sua própria legitimidade, mesmo na sua fragilidade. O desenho de Kafka participa desse mesmo princípio: o de deixar fluir o traço como ele é, com as suas falhas, tremores e desvios, e de o transformar em forma que só posteriormente será reconhecida e validada. Ele próprio parece ter intuído que nesses pequenos exercícios de papel havia qualquer coisa de vital — uma pulsação que a escrita, por vezes, asfixiava.

“A minha caneta não se move facilmente quando escrevo; mas quando desenho, avança livremente, sem esforço. Depois, porém. O que sai é sem sentido, linhas que não têm sentido.” (Dários, 1911)



Muitos desses desenhos mostram figuras em queda, corpos inclinados, cabeças desproporcionais, gestos que parecem deter-se a meio. São imagens que não pretendem resolver nada, que não ilustram nem comentam o texto ao lado. São antes a sombra de um movimento interior, a prova material de que a mão pensa, e de que o pensamento pode, por instantes, dispensar a palavra. A margem torna-se, assim, o espaço de uma respiração paralela: onde o sentido se suspende, mas o ser continua a agir.



Muitas das figuras que Kafka desenhou parecem ter surtido efeito entre o público que veio a conhecer as suas obras literárias, reconhecendo neles um espírito gémeo. Muitas das edições da sua obra têm capas frequentemente adornadas com estes desenhos, e não é invulgar encontrá-los a ilustrar livros dedicados ao clima da Europa que produziu o Modernismo e o Expressionismo Alemão. Por alguma razão misteriosa eles conseguem transportar a mesma aura do tempo que produziu Kafka e do mesmo Kafka que produziu o seu tempo.


Um pequeno desvio, nada mais, teria sido o suficiente para criar no Kafka um desenhador (que escrevia sem ambição de ser escritor) em vez de um escritor (que desenhava sem ambição de ser desenhador)?