terça-feira, 3 de novembro de 2015

O Trespassar da Espada Impressionista

Adriano de Sousa Lopes (1879 - 1944). Efeitos de Luz
Exposição patente no Museu do Chiado até dia 8 de Novembro de 2015

    Tem estado presente no Museu do Chiado, no qual o próprio artista foi director, a mais recente exposição de Adriano de Sousa Lopes (1879 - 1944). Formado pela Escola de Belas Artes em Lisboa e, mais tarde, na Academia de Belas Artes de França, o notável pintor português, afirmado como o primeiro a registar a participação portuguesa na 1ª Grande Guerra, apresenta agora uma série de obras desse mesmo período e ainda, na sua maioria, um conjunto de trabalhos com uma influência do círculo impressionista.

    Logo à entrada da Galeria é-nos dado a contemplar o seu famoso quadro Ondinas (Figura 1), cujo título é baseado num poema de Heinrich Heine. Esta obra destaca-se imediatamente na exposição, assim como na própria biografia de Sousa Lopes, pois é apresentada pelo pintor no seu último ano de pensionato em Paris, em 1908, e cuja figura feminina, mais à direita, é elaborada a partir de estudos de modelo de Margarite Grou, sua futura mulher. Margarite continuaria a ser a sua Ondina, a sua musa inspiradora, desenhada e pintada inúmeras vezes... Não é por acaso que os curadores colocam um outro quadro à direita do das Ondinas - Retracto (Pérolas e Violetas) - cuja figura feminina apresenta uma posição e aparência semelhante. A modelo é claramente a mesma.
    É ainda curioso observar que o quadro funciona como uma espécie de eco às suas criações futuras, como é claro ao longo da exposição. O homem, como guerreiro caído, a mulher, como figura cintilante, e ainda o mar, continuariam a ser os motivos principais das suas obras.
    Aqui percebemos imediatamente que a exposição se organiza tematicamente e, em paralelo, cronologicamente. Estas primeiras grandes telas são então dedicadas à pintura histórica e literária, numa tradição poética influenciada por um simbolismo que navega entre a realidade e a mitologia (Figura 2).

Figura 1
Esquerda: Ondinas, 1908, Óleo sobre Tela.
Direita: Retracto (Pérolas e Violetas), c. 1909, Óleo sobre Tela.

Figura 2


    Continuando a caminhar pela exposição, entramos na “Sedução do Impressionismo”. 
    É no final de 1903 que Sousa Lopes é admitido na Academia de Belas Artes de França, e é lá que entra em contacto com o tratamento impressionista da luz e da cor. Em simultâneo com a motivação histórica e mitológica, o artista começa também a explorar a libertação do detalhe através de uma aplicação mais expressiva e plástica da cor (Figura 3), mas mantendo ainda, noutras certas composições e temáticas (como o retracto), a tendência realista (Figura 4).
    Ainda ao longo da sua estadia em Paris, Sousa Lopes propõe-se, em 1906, a fazer um plano de viagem por alguns Países Europeus. É nessa mesma viagem que vai realizar algumas das suas impressionantes impressionistas representações dos canais de luz de Veneza aqui também apresentados (Figura 5), empregando a inspiração Francesa de artistas como Monet, Renoir, Pissaro, Cezanne, entre outros...


Figura 3
Quadro mais à direita: Ala dos Namorados (Esquisse), 1908, Óleo sobre Tela
Conjunto de Três Quadros à Esquerda:
Topo à esquerda - O Palácio da Ventura (estudo), c. 1907, Óleo sobre Tela
Topo à Direita - Episódio do Cerco de Lisboa, c. 1906, Óleo sobre Tela
Em Baixo - Episódio do Cerco de Lisboa, c. 1906, Óleo sobre Tela


Figura 4
Esquerda: Retracto de Mme Hermine Landry, c. 1909, Óleo sobre Tela
Direita: Efeito de Luz, 1914, Óleo sobre Tela


Figura 5
Topo Esquerda: Veneza, c. 1907, Óleo sobre Tela
Topo Direita: O Canal de S. Gregório (Veneza), c. 1907, Óleo sobre Tela
Baixo Esquerda: Pôr de Sol no Canal (estudo), c. 1907, Óleo sobre Tela
Baixo Direita: Pôr de Sol no Canal Grande (estudo), c. 1907, Óleo sobre Tela


    Como seria inevitável numa exposição que reúne obras de todo o percurso artístico de Sousa Lopes, a pintura e o desenho de guerra afirmam também a sua presença na galeria.
    É após a sua primeira exposição individual na Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1917, que Sousa Lopes se candidata como pintor voluntário para os Serviços Artísticos do Exército Português na Flandres (França).
    Obtendo então o grau de artista oficial do Exército, Sousa Lopes torna-se assim no primeiro pintor português a experienciar e a registar a brutalidade da 1ª Guerra Mundial, salientando-se como um figura importantíssima para a pintura histórica Portuguesa e do Mundo ao elaborar um conjunto de obras que captam a magnitude e o impacto de tamanha monstruosidade.
    Os seus esboços, apontamentos, desenhos e pinturas, muitos deles realizados na própria linha de fogo das trincheiras em pleno campo de batalha e, mais tarde, elaborados detalhadamente em serenas e monumentais composições, servem não apenas como um mero registo documental de um determinado acontecimento histórico - a Primeira Grande Guerra - mas sim, também, como um testemunho em primeira mão de uma vivência individual (do próprio pintor) e colectiva (dos soldados e da relação do pintor entre os mesmos) da auto-destruição do Homem (Figuras 6, 7 e 8). 
    Ora, imaginar o pintor a desenhar friamente, no calor infernal da guerra, todo aquele acto de violência... A tela é o campo de lama pisado pelos corpos tombados, pincelada pela tinta vermelha escorrida, as balas de canhão disparadas...
    É ainda com as representações de guerra, assim como com alguns retractos, que Sousa Lopes se vai afirmar como um mestre da água-forte.

Figura 6
Os Very-Lights, c. 1918,
água-forte e água-tinta sobre papel


Figura 7
A Rendição no Inverno de 1917 (estudo para a Rendição)
1918, Óleo sobre Tela
Este quadro é um estudo para uma obra maior - a Rendição -,
cujas figuras são elaboradas em tamanho real numa tela colossal, presente
no Museu Militar de Lisboa (junto a Santa Apolónia).


Figura 8
Esquerda: Maqueiros, 1918, carvão sobre papel
Topo Direita: Estudo para Destruição de um Obus, c. 1919, carvão sobre papel
Baixo Direita: Soldado Morto, c. 1918-19, lápis sobre papel

    
    Nos anos 20 a Luz Impressionista vai trespassar o ambiente trágico e violento da Grande Guerra, voltando em força à pintura de Sousa Lopes. 
    O pintor, como que isolado das grandes vanguardas internacionais, irá agora dedicar-se à representação do espírito do modernismo através da graciosidade do modelo - de novo a sua esposa, Margarite Grou - assim como do navegar da cor na infinita fusão entre o mar e o céu.
    Na secção da galeria dedicada aos retractos de Margarite Grou, há que salientar pelo menos dois.
    Primeiro, o Retracto de Mme Sousa Lopes (Figura 9). O olhar sereno que é lançado pela eminência do rosto caloroso da mulher naquela penumbra mística, fixa-nos num silêncio duma hipnose onírica... O pintor partilha connosco um retracto com um carácter de tal maneira íntimo, como que evocando parte dessa essência transcendente da fusão entre o olhar suspenso de dois corpos - o seu, e da sua esposa -, fazendo com que este seja, sem dúvida, um dos quadros a destacar-se em toda a exposição.
    Em segundo, A Blusa Azul (Figura 10). A representação da figura feminina é, mais uma vez, fascinante. O olhar, azul, centro ardente da chama, aquece-nos o corpo, e os cabelos, vermelhos, a bola de fogo que ilumina toda a galeria. O respirar leva o seu tempo ao admirar destas obras.
    Após o retracto, uma imensa sala dedicada às inúmeras pinturas e desenhos do mar, dos oceanos, das redes, dos barcos a serem lançados. É talvez aqui que se observa as suas pinturas de representação directa ao ar livre mais espontâneas, de uma sincera expressividade emotiva, onde o esplendor da luz do sol mergulha na tela pelo pincel do artista (Figura 11 e 12).
    Por último, as paisagens, quase à semelhança de Van Gogh, a transbordar de tinta. Manchas largas e espessas de cor que se elevam da tela, quase querendo pintar o observador (Figura 13).


    Toda a exposição é deveras deslumbrante. Não só nos revela o olhar sobre a obscuridade da guerra, por que tanto é valorizado e respeitado em ter representado, testemunhado, vivido, mas primazia sim, ao mesmo tempo, a contemplação modernista que o pintor tinha sobre a luz e a cor do pós-guerra. O seu trabalho torna-se quase como que um olhar incorpóreo, alegórico, sobre os dois pólos da efervescência espiritual da condição do ser humano. Por um lado a dimensão caótica, a morte, a decomposição, a lama moribunda, o barulho dos canhões, por outro, o prazer de viver, o amor, o silêncio feminino, a luz, o reflexo dos céus no mar...


Figura 9
Retracto de Mme Sousa Lopes, 1927, Óleo sobre Tela


Figura 10
A Blusa Azul, c. 1927, Óleo sobre Tela

Figura 11
Luz nas Águas, c. 1922-26, Óleo sobre Madeira


Figura 12
Efeitos de Sol, 1927, Óleo sobre Madeira

Figura 13
Outono em Castelo de Vide, c.1925, Óleo sobre Madeira

Imagens: Fonte Própria

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