sábado, 1 de junho de 2024

Viagem a um universo musical em expansão

Concerto Éme apresenta Disco Tinto
13 de abril 2024
Sala Lisa, Lisboa

Éme é o nome do projeto musical de João Marcelo, cantor e escritor de canções com pouco mais de 30 anos e no ativo há mais de uma década, embora se defina com bonomia como "dono de casa".

Éme é também um dos nomes ligados à editora Cafetra, um grupo de amigos que se distribuem e reconfiguram na formação de uma série de bandas, e que se mexem desde 2011 para organizar concertos coletivos, angariar fundos e editar CDs. Esta entidade híbrida, que contém projetos musicais como as Pega Monstro, Iguanas ou Sallim, inclui também elementos ligados à produção de objetos gráficos e à sua circulação. Foi nesse contexto, numa Feira Morta em 2014, que ouvi pela primeira vez Éme ao vivo, a tocar guitarra de pé ao fundo de uma sala cheia de gente, num piso, outrora consagrado à vida artística, de um edifício dos Restauradores.

Dentro do espírito do it yourself da comunidade Cafetra, faz todo o sentido que Éme tenha aprendido a tocar guitarra com tutoriais do Youtube ou com amigos que frequentavam aulas a sério. Falamos de um conjunto de pessoas que, sem grande pompa, utiliza e atualiza o que estiver ao seu alcance para fazer música, sejam instrumentos tradicionais portugueses como o adufe e o cavaquinho ou outros mais associados a fins educativos, como a melódica ou a flauta.

Dez anos, três álbuns e muitos concertos depois, encontramos Éme a apresentar o seu quinto trabalho de longa duração, "Disco Tinto", no pequeno palco da Sala Lisa, acompanhado por Moxila (que, como autora de banda desenhada, é conhecida por Mariana Pita), Miguel Abras, Lourenço Crespo e Francisca Aires Mateus. Nesta banda de cariz folk todos tocam vários instrumentos, e, na ausência de uma bateria, a percussão é de responsabilidade comum.


Fotografia: Filipa Aurélio

 
As canções de Éme são fortes o suficiente para brilharem quando interpretadas a solo e de modo acústico, mas tocadas ao vivo e em conjunto fazem transbordar a alegria e a cumplicidade, contagiando quem estiver em presença.

Embora não conheça as pessoas à minha volta, para além de esporádicos e breves contactos no tráfico de um ou outro fanzine, existe a clara sensação de estar entre amigos nesta viagem pelas canções de "Disco Tinto", com passagens pontuais por discos anteriores. Muitos de nós sabem as letras de cor, e ao meu lado um fã (roadie? amigo?) está de tal modo entusiasmado que, além de apontar a luz do telemóvel à cara dos músicos, causando-lhes óbvio desconforto, produz uma série ininterrupta de incentivos vocais, até o cantor lhe pedir gentilmente que se cale.

As letras das músicas contêm inúmeros relatos anedóticos de quem passa grande parte da vida, não "na estrada", mas em comboios a caminho de terras recônditas onde há gigs agendados. Sob a aparente comicidade dos tempos de espera passados em tascas e cafés, desencontros com produtores de espectáculos e contactos com pessoas locais, estão presentes alusões à falta de público, e, claro, à falta de dinheiro.

São histórias que vão ao âmago das preocupações de quem procura viver do trabalho autoral em Portugal, e que se revê na circunstância de "aos trinta ainda ser um indigente", como canta Éme em "Dores Laborais". E são pessoas cada vez menos jovens as que encontram nestas canções oportunidade de catarse.

O concerto na Sala Lisa terminou, apropriadamente, com a música "Lisa", que é também o nome da terra de João Marcelo. Viver na lisa remete também para essa falta de conforto material que é apanágio de uma sociedade do capitalismo tardio, cada vez mais desigual. Assim atestam a raiva e energia com que o refrão é gritado pelo público. 

Éme e Cafetra, nos gestos criativos que concretizam, cravam raízes na terra e fazem da resistência um modo de vida. Resistência à apatia, ao ressentimento, à fragmentação dos processos de produção cultural. Resistência que se materializa no trabalho consistente para um universo musical em expansão.

Nos limites da cidade

Exposição Cerco de Lisboa

Arquivo Municipal de Lisboa / Fotográfico
4 dezembro a 2 março 2024

Artistas: Augusto Brázio, Lara Jacinto, Mag Rodrigues, Paulo Catrica, Pedro Letria, São Trindade e Valter Vinagre.

Curadoria: Alejandro Castellote.

Direção de Produção: Nuno Aníbal Figueiredo (Associação Número – Arte e Cultura).


A exposição "O Cerco de Lisboa" no Arquivo Municipal de Lisboa reuniu sete artistas que interpretaram de forma única e pessoal o conceito de cerco, utilizando a fotografia como meio de expressão.

Dividida em dois pisos, a exposição oferecia no primeiro andar as fotografias dos artistas, enquanto o segundo piso estava destinado a duas salas de vídeo. A primeira exibia um vídeo de Valter Vinagre, intitulado “Aro”, acompanhando a vida diária de um grupo de pessoas em situação de sem-abrigo, num armazém abandonado. Já a segunda sala apresentava um vídeo que continha depoimentos dos artistas sobre os seus processos criativos, escolhas e interpretações do tema. Penso que foi a primeira vez que vi esta dissecação do pensamento do artista na própria exposição. Acredito que a visualização deste vídeo tenha tornado a experiência mais enriquecedora.

Descendo ao piso inicial, o das fotografias, o espaço estava organizado como um labirinto, com cada secção dedicada a um artista. Embora cada fotógrafo tivesse o seu próprio espaço, havia uma conexão subtil entre os trabalhos, criando um fio narrativo e visual que unia todos os sete cantos da exposição. Quase como um puzzle.

Este puzzle e esta viagem começa com "Chegada" de Lara Jacinto, cujas fotografias formavam uma vista panorâmica e fragmentada de pessoas e lugares. As fotografias estavam dispostas como uma linha horizontal que segue, mas que nos fazia parar e olhar não só para os pormenores, mas também para o conjunto de fotos como um todo. Esta série evocava a sensação de uma viagem, como se estivéssemos a observar a vida a passar através de uma janela de um carro. Não estamos a viver ou conhecer melhor o espaço, mas estamos a passar por ele. Dá a sensação de um olhar superficial do lugar, que não se aprofunda.





Seguindo para "Poder" de Augusto Brázio, encontramos uma interpretação do cerco da cidade através da Assembleia da República. Ao contrário do resto da exposição, interpretamos esta ideia através de um lugar de poder. As fotografias, individualmente, parecem não dizer nada. Vemos representados detalhes dos murais da assembleia, pormenores de quadros, alguns bustos intercalados com retratos de pessoas comuns. No entanto, quando olhamos para elas como um todo, e não como imagens individuais, revela-se diante de nós um diálogo sobre o colonialismo e os seus vestígios na sociedade contemporânea.
 




Em “Dentro de ti” de Valter Vinagre, tal como na “Chegada” de Lara Jacinto, parece haver uma ligação nas imagens, uma paisagem feita de várias fotografias que se interligam. No entanto, o sentimento já não é o de viajante que passa. Acabei por sentir que me demorava mais em cada imagem, havia mais pormenor e mais intimidade com o espaço e as pessoas. Senti quase como uma intromissão na privacidade de alguém. Como quem entra na casa de alguém, sem convite. Neste caso, de pessoas que não têm acesso à habitação.

 



"A Cor da Luz" de Mag Rodrigues abordava questões de identidade e exclusão, retratando pessoas com albinismo nos seus ambientes cotidianos.

Em “Malabar”, Pedro Letria fotografa artistas de rua que fazem malabarismo como forma de subsistência. A disposição das imagens na parede é feita tal qual o malabarismo, como se as imagens fossem as próprias bolas no ar, em grupos de três. Vemos uma interpretação de “cerco” como alguém que te pára na estrada, como uma cancela na entrada da cidade. Alguém que também vive nos limites da sociedade, na precariedade.





"Dos Passos em Volta" de São Trindade trazia uma perspectiva de uma caminhante que explora Lisboa, sem rumo, sem destino fixo ou hora para chegar. Pareceu-me uma análise mais pessoal e introspectiva, ao contrário das outras respostas, que fotografaram o outro. Senti que acompanhei o deambular de alguém.





A exposição terminava com "There’s more to the Picture than meets the eye. Benfica 2022-23" de Paulo Catrica, que explorava os limites da cidade através das Portas de Benfica. Paulo foca-se também mais no espaço, do que propriamente nas pessoas. Estas imagens foram as que me pareciam ter menos narrativa associada.

O que mais me marcou talvez tenha sido o vídeo “Aro”, de Valter Vinagre. Senti-me como se fosse um espectador da miséria. Como se a miséria quisesse ser “bela” de alguma forma. Certas imagens e interações pareciam pouco genuínas, quase encenadas. Será que o eram? Saí com algumas questões. Como se retrataria esta comunidade se lhe fosse dado um lugar de fala e de auto-representação? Quão diferente seria disto que vejo aqui? De que forma é que estas imagens os ajudam? Têm de ajudar? Para que servem? O que estão a dizer? Têm de dizer alguma coisa? Porque sinto este desconforto? Será que o objetivo era mesmo eu sair daqui com estas questões todas?





Ao deixar a exposição, tudo o que aqui vi continuava a ressoar na minha cabeça. Do Martim Moniz ao Cais do Sodré, senti que existiam duas Lisboas diferentes. Senti que existem, de facto, muitos muros invisíveis à nossa volta.

Talvez o maior mérito desta exposição seja chamar-nos à atenção para eles.




Há tanta gente como eu, tantos que pensam como eu

Concerto Sopa de Pedra

SMUP - Sociedade Musical União Paredense

27 de Abril de 2024

Cartaz: Madalena Matoso





Como celebração dos 50 anos do 25 de Abril, o grupo de investigação musical Sopa de Pedra proporcionou uma experiência de partilha e união a todos os presentes na SMUP, no dia 27 de abril de 2024.

Ao entrarmos no recinto, fomos recebidos por um palco decorado com cravos, já antecipando uma noite de celebração da música portuguesa e da história de luta e resistência que ela carrega. Este evento na SMUP foi o culminar de uma série de três concertos que passaram por Paris, no Theatre de la Ville - Festival la Place, e por Peniche, na inauguração do Museu Nacional Resistência e Liberdade. Os três P’s. Este último concerto, em Peniche, foi realizado no mesmo dia que o concerto na SMUP.

Apesar do desgaste que uma agenda tão intensa poderia causar, a energia emanada pelo grupo e pelo público era palpável, envolvendo-nos durante toda a atuação e revigorando-nos, tanto ao público (falo por mim) como aparentemente também a quem estava em palco.

No início do concerto, sete vozes entram em palco, faltando três para completar este grupo composto por dez mulheres. As vozes eram acompanhadas apenas por percussão e apenas em algumas músicas. O ambiente e as camadas que aquelas sete vozes criavam por si só, mesmo sem o elemento da percussão, transmitiam uma combinação única de doçura, inquietação e revolta. O repertório foi uma viagem pela música de intervenção e popular, com interpretações de canções de Amélia Muge, GAC - Vozes na Luta, Zeca e José Mário Branco, entre outros.

Um dos momentos que mudou a minha atenção durante o resto do espetáculo ocorreu durante uma interação com o público. Uma das artistas partilhou que aquela era a primeira vez que tocava em Lisboa com o grupo, mostrando surpresa pelo acolhimento caloroso e energia que estava a receber. A partir daí, prestei bastante atenção a este elemento do grupo, querendo captar as suas reações ao longo da atuação. Reações que faziam crer que o que estava a acontecer ali, naquela noite, era algo de novo. Algo que não costuma acontecer. Em palco, partilharam connosco o quanto estavam a precisar de um momento assim. Fez-me refletir sobre a dificuldade de ser artista em Portugal e a falta de valorização do nosso setor cultural. Acredito que quem corre por gosto também cansa. E se o cansaço nos impedir de correr, todos perdemos com isso.

A conexão entre quem estava no palco e quem estava na plateia era tão forte que, em muitos momentos, parecia que todos na sala partilhavam a mesma experiência. Como se aquele momento tivesse deixado de ser um concerto, transcendendo a tradicional separação entre artistas e audiência. Senti que não havia um entertainer e um espectador, apenas um grupo coeso, num momento de partilha. Se pudesse levar este sentimento para tantas outras esferas da nossa vida, se ele se materializasse noutros momentos. Mas por agora, existiu ali, de braços dados e a cantar em conjunto.

Já no final, com o palco vazio após a saída do grupo, a canção "Ó Minha Amora Madura" começa a ser cantada espontaneamente, no meio do público. De repente, toda a sala estava a cantar. As artistas regressaram e juntaram-se a este coro coletivo, mesmo na beira do palco, num dos momentos mais emotivos da noite.

Este concerto das Sopa de Pedra foi uma celebração da nossa cultura, da nossa história e da importância que temos uns para os outros.


Vida múltipla de 11 artistas gravadores

Exposição 11 Livros para 11 Artistas
Contraprova - Atelier de Gravura
9 de maio a 14 de junho 2024
Biblioteca de Alcântara

A Contraprova é um projeto associativo que agrega artistas cuja prática atravessa a gravura e a impressão artesanal. Um dos propósitos da sua fundação, em 2008, foi proporcionar um espaço de trabalho, totalmente equipado para a prática da gravura, mas também de encontro e de partilha de saberes, promovendo a divulgação e a aprendizagem das técnicas ali tornadas possíveis.

A exposição 11 Livros para 11 Artistas surge de um convite endereçado pela Biblioteca de Alcântara aos artistas da Contraprova, propondo a escolha individual de uma obra literária relacionada, por via da memória ou da imaginação, com a prática da gravura. As estampas aqui apresentadas são instâncias de materialização dessas relações, mas, tal como as estampas, as interpretações são múltiplas.

Vista da galeria da Biblioteca de Alcântara.


Começo por me deter no trabalho da artista Sofia Morais, uma gravura em linóleo com sobreposição de duas matrizes, em que um tronco castanho de mulher parece debruçar-se sobre nós, apoiando os cotovelos no passe-partout, ao mesmo tempo que pássaros se libertam do seu interior. Neste corpo condensam-se opressão e leveza, fazendo eco da dureza e precisão das palavras de Maya Angelou, autora do livro escolhido pela artista gravadora.

Sofia Morais, "O canto dos pássaros"


Susana Romão apresenta, em diálogo com um poema de Adília Lopes, uma gravura colorida cuja expressão lúdica não deixa adivinhar a complexidade do processo de produção. Trata-se de uma água forte em chapa de zinco, com mordedura profunda, a que acrescentou elementos em Tetrapak, posteriormente intervencionada em pequenos detalhes com trabalho de pincel e tintas acrílicas.

Susana Romão, "Mais vale baratas que DDT"


Refiro ainda o trabalho da artista Joanna Latka, que a partir d'O homem duplicado de José Saramago apresenta um tríptico de provas feitas a partir da mesma matriz criada com verniz mole – em que cada uma das imagens idênticas é prolongada pelo desenho, ganhando vida para além dos limites da chapa e ocupando lugares contíguos num universo comum. Apetece percorrer sem pressa as linhas sinuosas do já familiar desenho de Joanna Latka, e ensaiar leituras imaginadas nos arabescos contidos em folhas de papel esvoaçantes. A figura triplicada consome-se no exercício da escrita com a mesma entrega que é necessária à prática da gravura.

Joanna Latka, "Vida dupla de um escritor"


O facto de estas estampas estarem apenas fixadas à parede, sem vidro de entremeio, beneficia a sua visualização, num espaço em que entradas de luz natural, iluminação artificial e revestimentos polidos geram uma profusão de reflexos.

Por ter também uma ligação à impressão artesanal, tenho para mim que a gravura em metal é uma arte pesada. Da preparação e polimento das chapas à gravação mecânica (no caso da técnica de ponta seca), passando pela toxicidade da caixa de resina ou dos vapores dos ácidos corrosivos (no caso da água forte e águas tintas), todo o processo requer um certo amor ao perigo e ao que é difícil. Nada que a acuidade e delicadeza das marcas que aqui aparecem replicadas no papel deixem transparecer.

Vista da galeria da Biblioteca de Alcântara.


Dureza, precisão, complexidade e multiplicidade são conceitos que nos permitem viajar entre o universo das letras e o dos traços e sulcos da gravura, mas que não esgotam a miríade de possibilidades que estas obras fazem presentes. Por isso, e para contemplar o trabalho dos restantes artistas da Contraprova – Alexandre Jorge, Ana Neto, Daniela Crespi, Luís Fernandes, Marcela Manso, Margot Kick, Marija Tošković e Ricardo Campos – nada melhor que fazer uma visita à galeria da Biblioteca de Alcântara até dia 14 de junho.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

(M2) Lançamento de disco com concerto e a coincidência da ilustração

Júlio Resende: “Filhos da revolução”
Maria Hesse: “Mulheres más”

FNAC Chiado, Lisboa
18 Abril 2024

Desta vez, ao sair da Faculdade, bastou-me descer o Chiado, e à hora certa, lá estava ele, no grande aglomerado comercial, pronto a apresentar o seu mais recente trabalho.

Os Armazéns do Chiado arderam em direto na minha infância. Voltar ali é sempre arrepiante. Recordo bem as imagens das labaredas a preto e branco e as estruturas dos edifícios a serem esventradas por elas. Foi talvez a maior catástrofe a que assisti antes da queda das Torres gémeas.

Estávamos em 1988 e lá em casa, apesar de há 8 anos já haver emissão totalmente a cores na televisão, o nosso aparelho não acompanhava a enorme evolução.

14 anos antes dera-se a revolução que pôs fim à ditadura em Portugal e é com base nela que nasce o disco que hoje vi apresentar.

Chama-se “Filhos da Revolução” e é lançado no mês de abril, 50 anos depois do dia mais importante. Trata-se de um encontro entre o fado e o jazz, onde se homenageia a liberdade repescando canções como “a rosinha dos limões” ou “traz outro amigo também”, e sobre elas se acrescenta uma marca contemporânea e um improviso já característico da linguagem do artista Júlio Resende.


Desde 2007 que nos presenteia com discos originais, na sua maioria jazz, mas com apontamentos irreverentes de transformação do tradicional Fado. Este tópico deu até forma a um disco inteiramente dedicado a Amália Rodrigues, em que a sua apropriação das raízes musicais do fado e a sua criação transformadora, trazem esse género musical para a contemporaneidade com enorme genialidade, tendo conseguido o feito histórico de introduzir a voz da cantora pela primeira vez após a sua morte, quer no disco, quer no concerto ao vivo, a que tive o privilégio de assistir na Culturgest. A entrada da voz de Amália no decurso da viagem oferecida pela melodia exclusiva do piano é um momento que nos atravessa com tal intensidade que foi impossível deter as lágrimas da emoção.

Nesta apresentação de “Filhos da Revolução”, voltei a sentir esse atravessamento emocionante, desta vez quando o guitarrista Bruno Chaveiro é chamado a palco. Aí, a ocasião ganhou escala e profundidade. Nunca havia assistido a uma tão rica demonstração de domínio de técnica aliada a uma criação inovadora através da guitarra portuguesa. Arrisco afirmar que é muito equiparável ao magnífico Carlos Paredes. Domínio, destreza, velocidade, sonoridade, composição, melodia, intensidade….e com isto, a fusão entre mãos de piano e de guitarra. Uma atuação que me trespassou o coração e a alma.

Sigo o Júlio Resende há vários anos. Acompanho as suas atuações “alternativas” na Fábrica Braço de Prata há mais de 10 anos. Com ele, nesses momentos intimistas de pura entrega dos músicos em ambiente descontraído e despretensioso, tenho conhecido muitos outros músicos de enorme calibre que ele traz a palco com enorme generosidade e humildade.


O mesmo senti nesta apresentação quando Bruno Chaveiro começa a tocar. Não o conhecia. Mais um convidado que o Júlio traz a cena e que promete deixar marca forte nos nossos ouvidos. O Júlio tem um talento imenso, tendo construído a sua linguagem de forma distinta. O que mais saliento é o poder (e trabalho afincado com certeza) da improvisação, captação e transformação, com que nos surpreende em cada obra.


Volto o olhar para o espaço e reparo que esta experiência, como coincidência, ou não (desconheço as motivações da equipa FNAC), foi enriquecida com mais um par de mãos incríveis. Nas paredes da sala iluminavam o espetáculo as ilustrações de Maria Hesse. Só mulheres. “Mulheres más”, uma sátira ao poder do patriarcado. A escritora e ilustradora estava também a promover o seu mais recente trabalho no espaço de espetáculos da loja Fnac do Chiado para o efeito por via de uma exposição de reproduções das suas obras. Várias, cada uma com a sua forte identidade, espaçadas de palmo em palmo, como que a abraçarem a sala e a acolherem o momento. Encontro feliz este.


O Júlio, o Bruno e a Maria, com o piano, a guitarra e os desenhos, trouxeram uma luz especial a esta sala de espetáculos que foi outrora o Grande Armazém da minha infância.

Os espaços metamorfoseiam-se e quando há lugar e liberdade para isso, a cultura faz a magia de os voltarmos a viver (agora) de outra forma, com chamas de outra cor.

Tocam-me as memórias dos sítios. E também me tocam as mãos destes artistas.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Twenty Two Less Two, Michelangelo Pistoletto

 Twenty Two Less Two, de Michelangelo Pistoletto


Na cerimónia de abertura da Bienal de Veneza de 2009, Michelangelo Pistoletto apresentou uma performance na sua instalação Twenty-Two Less Two. Ao longo das paredes de uma grande sala situada no início do percurso pelo Arsenale, foram colocados 22 grandes espelhos de 3 por 2 metros perante uma multidão de visitantes e fotógrafos que registavam  a ação e que, por sua vez, se viam reflectidos nos espelhos.  Pistoletto começou então a bater e a estilhaçar os espelhos com um grande martelo, criando grandes buracos negros de diferentes formas nas suas superfícies.  A perspectiva de quem o observa mudou a partir do momento em que os espelhos eram partidos com o golpe do martelo. O som e a visualidade entraram em jogo. Uma vez que com o martelo, o artista retira da obra o reflexo do espectador ao criar estas “fendas” que não são nada mais nada menos que buracos vazios, negros, com formas. 

A relação da performance com o ato de pintar são explícitas. Numa tela o pintor acrescenta a mancha de tinta, aqui, Michelangelo está também a pintar,  perfurando a tela. As formas que constrói não são com um pincel mas com um martelo. Para o espectador, o seu reflexo começa a ser coberto por uma mancha negra. No contexto italiano da Arte Povera dos anos 60 e sobretudo desde o surgimento da obra urinol de Duchamp, "é fácil jogar com a identidade entre realidade-objecto e arte-objecto. Uma 'coisa' não é arte, a ideia dessa mesma 'coisa' pode ser arte.”1 (...) Um conceito válido, também, no caso de uma pintura que representa o seu reverso. “2

Michelangelo Pistoletto acredita que a primeira experiência figurativa real do homem é o reconhecimento da sua própria imagem no espelho: a ficção que mais se aproxima da realidade. Mas que não demora muito para que o reflexo comece a desenvolver as mesmas incógnitas, as mesmas perguntas e os mesmos problemas que a própria realidade."Na pintura de espelho temos uma imagem fotográfica fixa, que não muda, mas que coexiste com o presente em contínua mudança. [...] Em Veneza o espelho estava só, sem figura fixa, isto é, sem memória, um presente que se expandia ad infinitum. Este presente precisava de memória. Ao "esmagar" o espelho, introduzi nele um elemento, o preto que estava atrás. Este assumiu instantaneamente uma forma fixa que tinha o mesmo valor que a fotografia. A obra documenta um ato que foi o presente e que permanece como memória: uma fotografia gestual."

No final da ação, os espelhos e os pedaços partidos que caíram no chão foram deixados em exposição como uma instalação. A relação que se criou em cada espelho partido entre a superfície reflectora remanescente e a superfície negra produzida pela quebra propôs desafiar a dinâmica entre uma imagem (refletida) e imagem real. 

PISTOLETTO, Michelangelo. I plexiglass. Turin: Galleria Sperone, 1964

Ibidem.

Atravessar Uma Ponte Em Chamas - Exposição de Berlinde de Bruckere N 12695




 

Atravessar Uma Ponte Em Chamas - Exposição de Berlinde de Bruckere



É logo após mostrar o bilhete que somos recebidos pela primeira obra de berlinde de Bruyckere, Letsel I (2008) montada por cima das escadas de acesso às exposições. A obra, que serve de prenúncio à exposição da artista, mostra-nos o que parece um corpo ou uma parte de um corpo, transfigurado de tal forma que se torna indecifrável para o visitante.


Pessoalmente, ao ver a obra, ocorreu-me as pinturas de Francis Bacon, que tratava o corpo e a carne de uma forma visceral, deformando-a, e, tratando o ser humano apenas como um corpo, apenas como carne e nada mais. O facto da obra da artista estar pendurada por um gancho de carne/ açougue remete para a carne suspensa nos talhos, acontece que aqui, não se trata de carne, mas sim de cera, moldada e trabalhada para que se pareça o mais semelhante possível, conseguindo assim, causar o mesmo impacto nos visitantes.

O título da exposição temporária de Berlinde De Bruyckere que inaugura o Museu de Arte Contemporânea/CCB, foi retirado de um conto do escritor chileno Roberto Bolaño. Imagem poderosa e sugestiva do risco da passagem de uma margem a outra, é também simbólica da atração pelo outro e do medo do outro, da transformação e da metamorfose, e do trauma que qualquer processo de migração implica.

Ancorada na história da arte — nomeadamente na pintura renascentista —, a obra de Berlinde De Bruyckere liga arquétipos existentes a novas narrativas, redescobrindo temas, obsessões ou recorrências do mundo das imagens que povoam a nossa memória coletiva e desenvolve assim, o trabalho em torno de temáticas marcantes na arte: morte, da redenção, sexo, dor e memória. Inspirada na figura intermediária do anjo, esta exposição propõe uma reflexão sobre a relação com o outro, seja como transcendência, como fisicalidade do toque ou como projeção pessoal.

Primeira Sala



Ao entrar na primeira sala da exposição sentimo-nos arrebatados pela monumentalidade do espaço. As duas figuras escultóricas presentes na primeira sala intituladas de Arcangelo I e Arcangelo II causam-nos alguma estranheza por se assemelharem, numa primeira instância a um corpo humano coberto por um manto de pele, aqui, Berlinde de Bruyckere explora a figura do anjo como símbolo de mediação entre o humano e o divino e por esse motivo ambas representam um anjo caído, uma entidade que passou da transcendência à imanência. 


Ainda na mesma sala encontram-se justapostas às esculturas as colagens/obras de parede da série It Almost seemed a Lily, desenhos expostos em molduras iguais em sequência que explora a temática do desejo e da sublimação. Na sequência das obras na sala da exposição, esta série da artista é o primeiro momento em que se vê, de forma muito clara, através do desenho, da colagem e até da cor utilizada, o caráter erótico presente na composição de cada uma das obras. A artista explora estes temas em diferentes momentos do seu trabalho e de uma forma muito ambígua, por vezes quase imperceptível, no entanto, a potência erótica, no caso destas cinco obras está claramente presente.

Segunda Sala


Na segunda sala, entre o desenho, a escultura e a instalação, a cera emerge como um material essencial na construção das diferentes narrativas a escultura Palindroom, 2019, de aparência fálica mas natureza feminina, enfrenta um conjunto de esculturas de parede feitas de couro e cera denominadas Met Tere Huid, 2014, poderosas evocações de formas vulvares. 

 O caso da obra Palindroom é particularmente significativo: um palíndromo é o termo dado a uma palavra, ou a um grupo de palavras, que pode ser lido na sua ordem normal, bem como do fim para o princípio. A escultura apresentada mimetiza ummodelo utilizado para a reprodução de cavalos. Embora a sua configuração evoque um pénis, a sua função é precisamente a contrária, a de ser penetrado. De uma forma complexa, trata-se de um palíndromo entre o interior e o exterior, o objeto que aparenta penetrar é na verdade penetrado, um objeto quase hermafrodita na simbologia que convoca.

Terceira sala 

Na terceira sala a característica de exposição até então transforma-se completamente. Aqui as paredes da sala são pintadas de negro e a sala está completamente fechada, não existindo nenhuma fonte de luz natural, apenas dois holofotes que incidem diretamente sobre as duas obras existentes, resultando na concentração do destaque somente nas obras e não onde estão inseridas. Como foi antes referido, a obra artística de Berlinde de Bruyckere é muito ligada ao diálogo criado entre diferentes tempos históricos da arte. Para si, existem diálogos que podem ser criados entre duas peças mesmo que entre elas se passem 500 anos. 

Para a concretização desse diálogo entre tempos históricos, o Museu Nacional de Arte Antiga cedeu a pintura de Lucas Cranach Salomé com a cabeça de São João Batista, 1510, que confronta a obra Infinitum II, 2017–2019. 

Ainda que contraditório o enquadramento da obra na exposição Contemporânea , na verdade uma obra para se definir Contemporânea é porque a sua importância ou o seu significado pode ser aplicado intemporalmente, até nos dias de hoje, e a obra de Salomé com a cabeça de São João Batista consegue estar ao lado das obras de Berlinde de Bruyckere e mais importante, acrescentar e dialogar com o conceito da exposição.

Quarta sala

Na quarta sala somos confrontadas com esculturas colossais verticais com aparência de escudos intituladas Penthesilea (a rainha amazona morta por Aquiles), ostentam moldes de cera de peles de animais que, abertas e drapeadas,  remetem-nos para a pintura de Piero della Francesca, Madonna del parto, 1460. Estas esculturas pretendem fazer sentir que é na verdade a pele que serve  de escudo para o corpo.

O fascínio pelo método de trabalho de Berlinde de Bruckere prende-se exatamente no seu processo de criação e dos materiais que usa para as suas obras. É precisamente nesta sala que se verifica o fascínio em decifrar de que material é feito esta "pele" que está a proteger estes escudos. À primeira vista, todos os sinais remetem-nos para pele animal, as cores, os pelos, no entanto, e é exatamente este o objetivo da artista, nem tudo o que parece o é, e haver este lado ambíguo em todas as suas peças é propositado. Estas "peles" são na verdade feitas em cera, e coloridas com a cor vermelha azul e cinzenta para parecer carne viva e assim, causar certas emoções, como o desconforto, ao espectador.

Quinta Sala 




 Na quinta e última sala o espectador é novamente surpreendido pela dimensão da sala e pelas obras nela inserida, o ambiente criado por de Bruyckere apela à reflexão e ao silêncio. Em termos de iluminação, é a sala mais iluminada de toda a exposição, com candeeiros presos ao teto que incidem sobre toda a sala e projectam uma forte luz branca que é intensificada ao ser refletida pelo sal branco colocado sob as obras e sob o chão.

A última sala da exposição apresenta a instalação ALETHEIA (on-vergeten), 2019, palavra grega que significa desvelamento, ou o que não está oculto. O espectador pode deambular entre os depósitos de peles de animais moldadas em cera e empilhadas em paletes de madeira, alegoria das inúmeras camadas de sentidos e possíveis interpretações que reverberam nas várias situações que a exposição propõe. As obras nela inseridas são side-especific, ou seja, foram feitas mesmo para esta sala de exposições do MAC. As obras são camadas de cera, a imitar peles, estendidas ao sol e cobertas de sal grosso, fazendo referência à tradição portuguesa para conservar a carne, o peixe e a comida. Na última sala da exposição compreende-se que já não existe corpo, as peles estão libertas de um corpo e apresentam-se no seu estado final, mortas. No entanto a escolha da utilização do sal remete para esta conservação da carne,  para que possa, a partir daqui,  surgir de uma nova maneira a uma nova vida. 






domingo, 26 de maio de 2024

As pinturas dos tetos do Museu Militar - Obras escondidas

Este ano, tive a oportunidade de conhecer o Museu Militar de Lisboa (MML) pela primeira vez, graças a um trabalho realizado no âmbito da cadeira "Educação Artística em Museus e Centro de arte". Antes desta experiência, nunca havia sequer cogitado em visitá-lo, mesmo tendo um pai na área militar, confesso que o assunto nunca foi algo que despertasse particularmente o meu interesse. No entanto, ao entrar no MML pela primeira vez, fui surpreendida e encantada pelo o que encontrei no seu interior.

Este museu tem um acesso relativamente fácil, situado mesmo em frente à estação de Santa-Apolónia, facilitando o acesso para quem vem de metro ou comboio, então não há desculpas para nunca o ter ido visitar em 22 anos de vida.

A primeira associação que fazemos ao pensar num museu militar é, naturalmente, relacionada a objetos históricos militares: armas, espadas, uniformes, capacetes e outros artefactos de guerra. Esta era exatamente a minha expectativa inicial. Porém o que realmente me cativou e impressionou foram os magníficos tetos do MMl. Nunca imaginei que um museu militar pudesse abrigar tamanha riqueza artística e detalhamento no seu interior, de facto estava à espera de encontra algumas pintura de reis e militares importantes, mas cada teto deste museu é rico com pinturas deliciosas de se ver.

Apesar de cada pintura ser um verdadeiro deleite para quem aprecia este tipo de arte, gostaria de destacar a pintura do teto da sala dedicada a D. Maria II (sala onde estive a realizar a atividade referida acima) e a pintura da sala Luís de Camões.

Infelizmente, devido à falta de tempo, não me foi possível averiguar os autores de ambas as pinturas quando estive de visita ao museu e, curiosamente, também não encontrei informações online que me pudessem auxiliar. No entanto, a riqueza dos detalhes e a profundidade das cenas representadas merecem ser descritas com atenção.

No centro da sala D. Maria II, encontra-se uma impressionante pintura de temática alegórica. A cena central é dominada pro uma figura feminina vestida de azul, cor que simboliza a fé, harmonia e tranquilidade. Esta figura está equipada com uma armadura, um capacete, um escudo e uma lança na mão direita, remetendo a uma representação clássica de uma deusa ou uma figura de autoridade militar. Ela está cercada por diversas figuras femininas e masculinas que seguram objetos específicos, como por exemplo:

  • Na esquerda observamos um homem de manto vermelho que parece estar a escrever um livro, possivelmente a representar a sabedoria e a documentar o acontecimento retratado na pintura;
  • Acima do primeiro homem, há outro personagem que segura numa espada e numa balança, sugerindo uma alusão à justiça e ao equilíbrio;
  • Já à direita, uma mulher segura num jarro, enquanto outra segura numa chave. 



Infelizmente, pela falta de informação, não me é possível falar com certezas sobre os simbolismos e as personagens presentes nesta obra. O que posso dizer, com certeza, é que é uma pintura magnifica que passa despercebida aos olhos de muitos visitante.

Agora, passemos para a pintura na sala dedicada a Luís de Camões. A primeira vez que visitei o MML, grande parte das pinturas dos tetos passaram-me despercebidas. Foi só durante a atividade referida em cima que, numa conversa com o meu pai, que estava de visita ao museu, que ele chamou-me à atenção para um detalhe escondido. 


O teto desta sala é adornado com quatro esculturas nos cantos, que se intercalam com pinturas tão habilmente executadas que, à primeira vista, parecem esculturas. Esta ilusão é causada através da representação de pequenos querubins pintados, que se misturam com os ornamentos. Pintados de branco sobre um fundo amarelo, esses querubins parecem saltar da parede. A maestria técnica empregada na pintura cria uma ilusão de tridimensionalidade, dando vida e dinamismo à decoração do teto.

Os tetos do MML são verdadeiras obras de arte, com detalhes ornamentais que revelam um cuidado estético minucioso, obras escondidas do olhar comum que apenas observa o que está no seu campo de visão. Estes elementos, não só embelezam o espaço, como também narram histórias e tradições, proporcionando uma experiência imersiva através da habilidade artística e a atenção ao detalhe  com que foram feitos.

A minha visita ao museu mudou a minha visão sobre o que um espaço que supostamente era dedicado à história militar, na verdade vai muito mais além que isso, mostrando-me que mesmo os temas que não me atraem podem revelar tesouros surpreendentes. Foi uma descoberta inesperada e gratificante, perceber que o Museu Militar de Lisboa é um lugar onde a arte e a história se entrelaçam de maneira tão harmoniosa.

 


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Performance review 69562


Name of the show: existência / existence_reprise
Concept and direction: João Fiadeiro
Performers and researchers: Sílvia Pinto Coelho, Luca Bellezze, Luara Learth Moreira, Julia Salem, João Estevens, Joana Von Mayer Trindade, Iván Haidar and Julián Pacomio
Place of the performance: premiered in Paris 2002, mentioned in CCB’s João Fiadeiro. INTROSPECTIVE
Opening time of the show: May 5th – September 22nd, 2024




The opening act of a show begins with the monologue about a body and a museum wall. We observe a body, crushed to the ground and struggling to get up in an attempt to gain consciousness over situation. As we watch the body struggle we can draw a parallel with struggles of the narrator to identify a connection between a body and a room.

Given the complete freedom in a white cube, what does a body do to experience the space? Nature says it acts like a gas, trying to fill all the void and every crevices, trying to feel every surface. The interpreters are interacting with the interior of an empty exhibition space trying to mimic the body of a museum and get as close as they can to becoming one with it.

As a social institution with rich ever-developing history, a museum already has its own rituals and practices, yet João Fiadeiro here attempts to invent a completely new way of existing within a space usually curated for still images and breathless figures by breaking the rules and the routes of the exhibition parkour. Testing the limits to the point of overstimulating and overwhelming the bodies and the space. Using everything that an empty hall of a white cube has to offer we get to notice those specific features of a space. The museum space is now filled with character, playfulness and creates a dialogue with creatures filling its walls.

What adds to the flow of the performance is that it made as a Real time composition. With no score or direction of action, performer’s only goal was to enchant the viewer into the dramaturgy, to gain the viewers trust and for them together to get lost within the space. This practice is supposed to bring you to the true definition of presence and so it does as the narrative writes itself on stage and with each performance it allows for a new scene to be depicted.

From my perspective this performance talks about a relationship of a human body with a body of a museum. Expanding on what place does a performing body takes in a modern museum of arts. Questioning boundaries and connections between an organism and an institution.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Luta Armada - Companhia de Teatro - Hotel Europa

 M2 - Recensão (Artes Performativas)




Luta Armada - Companhia de teatro - Hotel Europa

De André Amálio e Tereza Havlíckova


Espaço da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo 

(CPBC), em Lisboa


4 Abr - 14 Abr 2024

18:00H


Ciclo Abril Abriu, do Teatro D. Maria II

**


Criação – André Amálio e Tereza Havlíčková
Elenco – André Amálio, Mara Nunes, Mariana Sardinha, 

Mauríca Barreira Neves, Mbalango, Paulo Quedas
Criação Musical – Edison Otero
Cenografia – Ana Paula Rocha
Desenho de Luz – Pedro Guimarães

Desenho de Som - Miguel Reis
Produção Executiva – Ruana Carolina, Catarina Sobral
Assistência de Encenação - Biatriz Alves Ribeiro
Comunicação – Patrícia Cuan
Assistência Cenografia e Figurinos - Ricardo Varela

Designer – António Gomes

Co-Produção: Teatro Nacional D. Maria II, FITEI, 

Teatro Académico Gil Vicente
Co-Produção das Residências: DeVIR CAPa

**


O revolucionário é um homem que faz o sacrifício da sua vida, não tem assuntos nem interesses pessoais, nem sentimentos, nem ligações, nem propriedade, nem mesmo um nome. Tudo nele é absorvido por um só interesse exclusivo, um só pensamento, uma só paixão: a Revolução.


O revolucionário é um homem que fez o sacrifício da sua vida, e que, em consequência, não pertence a si próprio (...) Entre ele e a sociedade trava-se um combate de morte, uma luta aberta ou clandestina, sem tréguas e sem perdão.


O Catecismo ou «As regras nas quais se deve inspirar o Revolucionário»

Livro “Força Armada” Isabel do Carmo


Dedico este livro:


À memória de Carlos Curto, aliás Luís, e Arlindo Garrett, aliás Ernesto, que deram a vida pela liberdade e pela igualdade.

Ao Carlos Antunes, aliás Sérgio, que ligou o primeiro detonador e fez o primeiro assalto e sem o qual não teria havido Brigadas Revolucionárias.

Com esperança que os nossos netos venham a ler o que aqui fica escrito.

Aos velhos operários Artílio Baptista e Gabriel Pedro, que teimaram e estiveram nas primeiras acções das Brigadas Revolucionárias e da ARA.

Aos meus filhos Isabel Lindim e Sérgio Antunes, que são guardadores de histórias e fazem perguntas.

Ao Roger Claustre, que acompanhou a trajectória deste livro, e às nossas intermináveis conversas.


Livro “Força Armada” Isabel do Carmo



Isabel do Carmo conheceu Carlos Antunes em Paris e rapidamente perceberam que existia entre eles uma afinidade política. O ano era 1970. Ela concluía um estágio em medicina e ele estava na clandestinidade, já depois de ter saído de Portugal e de ter entrado em cisão com o Partido Comunista Português (PCP), devido a divergências com Álvaro Cunhal. É esse encontro que está na origem das Brigadas Revolucionárias (BR), organização que ao longo dessa década – mais tarde deu origem ao Partido Revolucionário do Proletariado (PRP) – realizou uma série de operações focadas no derrube do regime. Entre muitas outras organizações que surgiram antes e depois do 25 de abril, traça-se uma história de décadas de luta contra a opressão e de ativismo político. É a este universo que regressamos agora em Luta Armada, a nova criação da companhia Hotel Europa.

Não Matarás

Truque inoxidável

faca

repito faca

escrevo faca pelo corpo, desenho faca no 

peito da noite

desembaraço-me do sumo inoxidável doutra faca

faca

sorrio faca no escuro dum beco

  • Hoje não matarás!

Al Berto, O Medo, Assírio e Alvim

A polarização do panorama político, com o crescente poder da extrema-direita, debates cada vez mais violentos e o crescimento dos discursos de ódio foram alguns dos motivos que levaram André Amálio e Tereza Havlíčková a emergir no passado recente de Portugal, dos 20 anos que se seguiram ao 25 de Abril, e que foram também de posições políticas extremadas, violência, luta armada e rede bombista. É daqui que nasce “Luta Armada”, a nova criação de teatro documental do projeto artístico que André e Tereza dirigem, Hotel Europa, apresentada no ciclo “Abril Abriu” do Teatro Nacional D. Maria II.


A Luta Armada continua a investigação da Hotel Europa sobre o passado recente, analisando os projectos políticos que recorreram a acções violentas como assaltos a bancos, colocação de bombas, sabotagens, entre outros, como forma de luta. Este projecto tem como ponto de partida uma extensa recolha de testemunhos de pessoas que militavam nessas organizações, assim como a pesquisa de documentos sobre as suas acções, criando um espectáculo de teatro documental multidisciplinar. Este trabalho começa por descrever as ações de grupos que viam na luta armada a única forma de acabar com o fascismo e o colonialismo português como a LUAR, Brigadas Revolucionárias e ARA; em segundo lugar os grupos de extrema direita que ficaram conhecidos como rede bombista e que atuaram no período do PREC entre 1974 e 1975, tais como o ELP, MDLP e o Movimento Maria da Fonte que alegadamente combatiam a ameaça da instauração de um regime comunista no país, mas também os movimentos independentistas dos Açores e da Madeira, que optaram por ações violentas, como é o caso da FLA e da FLAMA; terminando com o último grupo que começou a sua actividade a partir de 1980 as FP-25 que lutavam para repor o socialismo.


“Há sempre alguém que resiste / Há sempre alguém que diz não”

De volta a Luta Armada, esta nova peça da companhia Hotel Europa, começa numa roda de conversa, com testemunhos dos intérpretes (atores) sobre as suas histórias pessoais e a importância que o 25 de abril de 1974, teve nas suas vidas, principalmente pelas mudanças que trouxe ao país em termos sociais e económicos. As palavras dos filhos da revolução servem igualmente de lugar comum para uma reflexão sobre o que ainda está por fazer. Que valores faltam ainda cumprir. “50 anos depois do 25 de Abril, continua a existir pobreza, continua a existir misoginia, continua a existir homofobia, continua a haver racismo, mas não consigo deixar de pensar que apesar disso tudo, estamos muito melhor do que estávamos antes do 25 de Abril”, diz um dos atores.

Ao entrarmos no espaço da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, encontramos um ambiente de pouca luz, com algumas cadeiras, sofás e poucas mesas. As pessoas que lá se encontram, conversam descontraidamente. A sensação é que acabámos de entrar numa sala privada onde já tudo aconteceu e essa sensação é, de certa forma, constrangedora, porque não nos sentimos pertencentes a um grupo já composto. Rapidamente encontramos um espaço onde nos fixamos e que não dá muito nas vistas. Não queremos chamar a atenção, nem interromper o que parece que já começou. O relógio marca dezoito horas, em ponto e começamos a ouvir alguém a falar no que pensamos nós, num volume de voz acima do esperado. Afinal o que pensávamos ser espectadores como nós, eram na verdade os atores, misturados entre todos. Fazem uma apresentação da sua história pessoal e encaminham-nos para um local onde nos pedem a identificação e só depois de mostrarmos o nosso cartão de cidadão nos deixam avançar para um outro espaço onde encontramos uma correnteza de cadeiras para nos instalarmos confortavelmente. O ambiente permanece escuro e de certa forma ameaçador. Sentamo-nos e preparamo-nos para assistir à peça Luta Armada.

A partir daí, mergulhamos no passado, já depois de seguirmos os atores num corredor onde somos interrogados, como se estivéssemos prestes a ser detidos pela PIDE. Chegamos, entretanto, ao ano de 1961, sentados, assistimos a uma espécie de concerto-performance que nos leva nessa viagem à história daqueles que fizeram das suas vidas um veículo de luta contra a ditadura salazarista. “Na noite de 21 para 22 de janeiro de 1961 dá-se uma ação armada de enorme espetacularidade”, começa por contar André Amálio, referindo-se ao assalto ao paquete Santa Maria em 1961, a chamada Operação Dulcineia, liderada por Henrique Galvão. Foi a semente plantada para o que iria surgir depois.

André Amálio - Encenador, ator e fundador da companhia de teatro, Hotel Europa.

Artista, ator e encenador tem criado espetáculos à volta de temas como a identidade cultural e a história recente de Portugal e recentemente tem desenvolvido trabalho dentro da área de teatro documental. Formou-se enquanto ator e criador na ESTC e na Goldsmiths, University of London e está neste momento a desenvolver um MPhil/PhD na University of Roehampton. Lecionou no curso de Teatro da ESAD e na HAMU (Faculdade de Artes Performativas de Praga). Participou em espetáculos dirigidos por Ajay Kumar, Anna Furse, Antónia Terrinha, António Feio, Francisco Alves, Giacomo Scalisi, Joana Craveiro, João Brites, Lúcia Sigalho, Luis Castro, Madalena Vitorino, Marie-Gabrielle Rotie, entre outros. Fundou com Tereza Havlickova a companhia HOTEL EUROPA para a qual co-criou os espetáculos FÉ, Kino Waltz e criou PORTUGAL NÃO É UM PAÍS PEQUENO,  Passa-Porte e Libertação. Está neste momento a terminar a sua tese de doutoramento com o título Re-Escrever a História Colonial Portuguesa Através do Teatro Documental.

“Considero-me mesmo um filho da revolução. Se não se tem dado o 25 de Abril, eu não estaria aqui de certeza hoje a fazer este espetáculo, porque a ditadura fascista tinha uma série de características que marcaram profundamente a minha família, como o facto de não haver um serviço nacional de saúde, por exemplo, na família do meu pai nos anos 50, o meu avô tem um problema de saúde, uma coisa relativamente simples, uma úlcera, mas isso foi suficiente para a família do meu pai ter que se endividar para pagar essa conta e ter imensa dificuldade para pagar a dívida com que ficaram. Do lado da minha mãe, a minha tia mais velha, ela não sabe ler nem escrever, ela assina de cruz e a minha mãe para ter um pouco mais de escolaridade, foi forçada a ir para as freiras para também escapar à pobreza que existia ali naquela aldeia e consegue estudar até ao quinto ano, equivalente hoje ao nono ano. Mas parte da família da minha mãe é forçada a emigrar para França, com naquela leva de portugueses que nos anos 60 emigra para fora do país e outra parte vai viver para Lisboa. Mas vão viver para um bairro de lata na zona da Ajuda e é para lá que a minha mãe vai viver quando sai das freiras e ficam lá a viver até ao 25 de Abril. Agora, 50 anos passados do 25 de Abril, nenhuma pessoa da minha família vive em nenhum bairro de lata. Já somos assim todos super classe média, mas bem ao lado do sítio onde eu vivo, existe um bairro de lata. Bem ao lado do sítio onde foi criado este espectáculo e onde foi ensaiado, existem dois bairros de lata. Continua a haver bairros de lata em Portugal, 50 anos depois do 25 de Abril, continuamos a não ser capazes de contar a nossa história colonial de uma forma inteira, precisamos ainda de fingir que não fizemos coisas que fizemos e não somos capazes ainda de escrever nos nossos livros de história, nos livros que ensinamos às nossas crianças na escola, os nomes das pessoas que lutaram e sacrificaram e que foram presas para que nós pudéssemos estar aqui hoje. De muitas maneiras, o 25 de Abril continua ainda por cumprir”.

Ainda sobre a Luta Armada, em 1967, alguns dos militantes que apoiavam Henrique Galvão e Humberto Delgado vão encontrar-se em Paris para formar uma nova organização que se dá pelo nome de A.R.D. — Ação Revolucionário Democrática. Depois de um assalto ao Banco de Portugal, logo adotam o nome Liga de Unidade de Ação Revolucionária – LUAR. 

Toda a história se faz cronologicamente. Ainda antes do 25 de Abril, aborda-se a criação da Ação Revolucionária Armada (ARA), o braço armado do PCP, da BR, fala-se dos movimentos e partidos entretanto formados nas antigas colónias, como a Frelimo, o MPLA e o PAIGC. Mas a história não fica por aí.

Já em pleno Verão Quente, de 1975, vem ao assunto, a Flama — Frente de Libertação do Arquipélago da Madeira e a FLA — Frente de Libertação dos Açores. “Ambos de extrema-direita e muito violentos. Colocação de bombas, agressão a pessoas. O objetivo era ganhar a independência face ao continente devido ao que diziam ser a ameaça comunista”, explica um dos atores. Por outro lado, assiste-se ao surgimento do ELP, Exército de Libertação Nacional, ou o MDLP, Movimento de Libertação de Portugal, e também o movimento Maria Da Fonte. É uma história de violência. Dos atentados perpetrados por Ramiro Moreira à morte do Padre Max, em 1976, a peça constrói uma genealogia de acontecimentos, mas também aborda as diferentes formas de violência armada que marcaram Portugal na sua transição à democracia. Na continuação e chegados à década de 1980, aborda-se os atentados das FP-25 e reflete-se sobre a forma como o país lidou com estes movimentos extremistas, da esquerda à direita. Paira no ar a dúvida: 

“Talvez seja a questão que todos devemos fazer a todo o momento, como é que podemos cumprir Abril? O que é que falta para cumprir a revolução?”.

“Apesar de tudo, temos uma posição e não somos completamente neutros. Alguns movimentos extremistas foram silenciados na nossa história recente, daí ser importante mostrá-los, até porque muitas destas pessoas ainda estão no nosso espaço público, quando muitas das pessoas que lutaram contra o fascismo são postas de lado”, sustenta André Amálio. 

Há sempre formas de se olhar para a história e para o passado, através do qual vamos sempre, inevitavelmente, ver diferentes lados da barricada. Pelo caminho, o importante – explica a companhia – é que se acabe com os mitos. “A ideia de que a ditadura portuguesa foi suave, como se o 25 de Abril e o PREC tivesse sido um período de loucura, comparativamente à guerra colonial ou à ditadura em si. Tentamos desmistificar e trazer estas visões múltiplas, mas nas quais se demonstram como teve de haver muitas pessoas a resistir para podermos chegar até aqui, em democracia”.

Finalmente, escreve-se uma frase na parede, verso da célebre canção de Adriano Correia de Oliveira: “Há sempre alguém que resiste/ Há sempre alguém que diz não”, como espelho de uma história que não é pacífica. E assim termina a peça, Luta Armada.

… Pergunto ao vento que passa

Notícias do meu país

E o vento cala a desgraça

O vento nada me diz.

O vento nada me diz.

… La-ra-lai-lai-lai-la, la-ra-lai-lai-lai-la,

La-ra-lai-lai-lai-la, la-ra-lai-lai-lai-la.

La-ra-lai-lai-lai-la, la-ra-lai-lai-lai-la,

La-ra-lai-lai-lai-la, la-ra-lai-lai-lai-la.

… Pergunto aos rios que levam

Tanto sonho à flor das águas

E os rios não me sossegam

Levam sonhos deixam mágoas.

… Levam sonhos deixam mágoas

Ai rios do meu país

Minha pátria à flor das águas

Para onde vais? Ninguém diz.

… Se o verde trevo desfolhas

Pede notícias e diz

Ao trevo de quatro folhas

Que morro por meu país.

… Pergunto à gente que passa

Por que vai de olhos no chão.

Silêncio -- é tudo o que tem

Quem vive na servidão.

… Vi florir os verdes ramos

Direitos e ao céu voltados.

E a quem gosta de ter amos

Vi sempre os ombros curvados.

… E o vento não me diz nada

Ninguém diz nada de novo.

Vi minha pátria pregada

Nos braços em cruz do povo.

… Vi minha pátria na margem

Dos rios que vão pró mar

Como quem ama a viagem

Mas tem sempre de ficar.

… Vi navios a partir

(Minha pátria à flor das águas)

Vi minha pátria florir

(Verdes folhas verdes mágoas).

… Há quem te queira ignorada

E fale pátria em teu nome.

Eu vi-te crucificada

Nos braços negros da fome.

… E o vento não me diz nada

Só o silêncio persiste.

Vi minha pátria parada

à Beira de um rio triste.

… Ninguém diz nada de novo

Se notícias vou pedindo

Nas mãos vazias do povo

Vi minha pátria florindo.

… E a noite cresce por dentro

Dos homens do meu país.

Peço notícias ao vento

E o vento nada me diz.

… Quatro folhas tem o trevo

Liberdade quatro sílabas.

Não sabem ler é verdade

Aqueles pra quem eu escrevo.

… Mas há sempre uma candeia

Dentro da própria desgraça

Há sempre alguém que semeia

Canções no vento que passa.

… Mesmo na noite mais triste

Em tempo de servidão

Há sempre alguém que resiste

Há sempre alguém que diz não.


Trova do Vento que Passa

Adriano Correia de Oliveira