sábado, 26 de novembro de 2016

Francisco Afonso Chaves: dos Açores para o mundo.

A Imagem Paradoxal: Francisco Afonso Chaves (1857-1926) 
Museo Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
12/10/2016 - 26/02/2017 

Biólogo, geólogo, geofísico, vulcanologista, sismólogo, meteorologista, fotógrafo. As muitas vidas de Francisco Afonso Chaves (1857 – 1926), nascido em Lisboa, mas que viveu praticamente toda a sua vida nos Açores, foram dar ao Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, numa exposição com curadoria de Victor dos Reis e Emília Tavares. 


O início da exposição no mês de Outubro de 2016, coincidiu de forma propositada com uma conferência organizada pela Universidade Lusófona e pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, intitulada Estéreo e Meios Imersivos, não fosse passar a oportunidade de associar o trabalho de Francisco Afonso Chaves, que fotografou quase exclusivamente com câmaras estereoscópicas, às mais avançadas técnicas imersivas de som e de imagem.

A fotografia estereoscópica, muito em voga na segunda metade do Séc. XIX e na primeira metade do Séc. XX, tem sido objecto recente de uma atenção particular por parte de curadores e académicos, que se têm debruçado sobre o interesse imagético e estético de um meio que foi considerado como pouco importante para a história da arte e da fotografia ao longo do último século. Prova-o a exposição feita em 2015 também no âmbito da conferência desse ano Estéreo e Meios Imersivos, no Arquivo Municipal de Lisboa, intitulada A Terceira Imagem: A fotografia estereoscópica em Portugal e o desejo do 3D. Também no Arquivo Municipal de Lisboa, no mesmo ano, pudemos assistir a uma exposição com curadoria do fotógrafo Rodrigo Peixoto, que tem estudado e trabalhado a questão da fotografia estereoscópica ao longo dos últimos anos, sobre a colecção de fotografias estereoscópicas que herdou do avô: A Grande Guerra em fotografia estereoscópica: A colecção de Sousa Guimarães.

 
Foi nesta última exposição que tive a oportunidade de experimentar pela primeira vez uns óculos especiais para ver fotografias estereoscópicas impressas. Ao início os olhos tendem a focar o plano em que se encontra o papel que suporta as imagens, criando alguma confusão acerca do efeito pretendido, e passado alguns momentos de paciência, o olho descobre sozinho que o ponto de focagem deve ficar no infinito, e tal como numa câmara fotográfica, rodamos a lente do olhar para o infinito e há toda uma linha de fuga que percorremos ao mesmo tempo que somos invadidos por todos os planos da imagem. É nesta altura que os filmes 3D que o cinema oferece tornam-se particularmente bidimensionais quando comparados com a sensação de ver uma fotografia estereoscópica bem trabalhada. Quando os pontos de fuga são bem aproveitados, e a imagem contém vários elementos entre o primeiro e o último plano, somos imergidos onde quer que a fotografia nos queira levar. E as trincheiras da Grande Guerra são um local particularmente arrebatador para se ser levado. As imagens que Francisco Afonso Chaves tirou com as suas câmaras estereoscópicas não contêm cenas de guerra, mas também são particularmente arrebatadoras. 

A disposição das duas salas para exposições temporárias do Museu do Chiado já nos habituou a uma certa familiaridade. O jogo entre os dois locais, não rara vezes é bem aproveitado e pensado pelos curadores, fora de uma lógica de narrativa cronológica ou meramente sequencial. Recordo a mesa gigante cheia de livros que Daniel Blaufuks encheu em 2014 para a sua exposição Toda a Memória do Mundo, em que dividia connosco a sua experiência de trabalho antes de partirmos para o trabalho propriamente dito. Nesta exposição, a primeira sala serve como uma espécie de sinédoque, em que o apetite pelos vários percursos de Francisco Afonso Chaves é logo aguçado à partida, e somos recebidos por um fac-símile de um Kaiserpanorama, uma estrutura circular onde podemos ver várias imagens estereoscópicas à volta de uma só estrutura.


O Kaiserpanorama, comercializado na Europa a partir de 1883, permitia ao espectador sentado num dos seus 25 visores individuais ver cerca de 50 imagens que iam rodando. O fac-símile apresentado, apesar de não ser rotativo, apresenta algumas das imagens mais interessantes de Francisco Afonso Chaves. Por exemplo, esta imagem tirada no topo de uma carruagem em movimento na Londres de 1903. 


A utilização dos vários planos da imagem e a distribuição de pessoas e carruagens ao longo da linha de fuga em contexto imersivo, inicialmente provoca uma certa confusão, mas rapidamente nos apercebemos que é a mesma confusão de quem ia efectivamente sentado naquela carruagem (autocarro?), sentido a vertigem do que seria deslizar pela loucura da Londres do início do Séc. XX.

É precisamente a forma como Francisco Afonso Chaves mistura a figura humana e a paisagem, que o catapultam para um lugar especial, se não na história da fotografia, pelo menos enquanto fotógrafo com uma sensibilidade particular. Fugindo à tentação do cientista biólogo/geólogo, Francisco Afonso Chaves apercebe-se da importância da figura humana na paisagem, não só porque tal como Vivant Denon nos primeiros desenhos sobre o Egipto, fornece uma ideia de escala, mas também porque o significado daqueles locais naquelas ilhas, ficaria incompleto sem aquelas figuras do Séc. XIX que se passeiam pelas montanhas. E tal como o fotógrafo, estes transeuntes deixam-se deslumbrar pela paisagem, tanto que muitas vezes nos viram as costas. Porque o importante ali é que todos vejamos a magnificência daquela paisagem, espectador, fotógrafo e fotografados.




A possibilidade de se ver a fotografia estereoscópica nos seus vários estádios é interessante: a chapa original positiva, a estereoscopia montada e as ampliações em papel fotográfico. Ainda assim teria sido interessante uma espécie de montagem lado a lado para algumas imagens: a mesma imagem em modo imersivo e também na ampliação em papel.




A exposição passeia por vários temas que Francisco Afonso Chaves fotografou, assim como objectos pertencentes ao espólio, associados à sua actividade fotográfica. Entre os vários temas apresentados também é de destacar a importância que atribuia à fixação do movimento, na senda de outros contemporâneos seus como Eadweard J. Muybridge e Étienne-Jules Marey.



A capacidade imersiva da fotografia estereoscópica adquire um fascínio particular no trabalho de Francisco Afonso Chaves. O cuidado com a composição e a exposição das imagens, o rigor técnico sempre a par do estético, fazem com que cada imagem seja uma pequena viagem no tempo. Como se estivéssemos a observar a realidade numa cápsula espacio-temporal, mas com os movimentos congelados e a preto e branco. Todo este espólio e cronologia de Francisco Afonso Chaves inculcam no visitante o mesmo fascínio que ele teve por todas as coisas que o rodeavam, por todas as ciências e instrumentos com que ele tomou a temperatura da terra e de todos os fenómenos que conseguiu registar, analisar, medir e fotografar. E de certa forma, a imagem imersiva é a mais apropriada para transmitir aquilo que foi certamente a relação dele com este universo que o apaixonava e também, de certeza, submergia. É caso para dizer que Alexander von Humboldt era uma espécie de Francisco Afonso Chaves que não sabia fotografar.

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