domingo, 20 de novembro de 2016

Quando a quimera vem à tona, [Ama-San, por Cláudia Varejão]




Ama-San é o último trabalho de Cláudia Varejão e a sua primeira longa-metragem. Resulta de duas viagens ao Japão, a primeira em 2013 e a segunda em 2014. Foi filmado na vila piscatória de Wagu e produzido por Terratreme Filmes.

Apesar de No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos, também uma longa-metragem da realizadora, ter estreado antes, Ama-San foi terminado primeiro.

Num trabalho que se perde entre a realidade a ficção, o mais importante para a realizadora era enriquecer a realidade de quem o vê, dando a conhecer um mundo tão diferente e mágico. 


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Ama significa pessoas do mar, em japonês, e refere-se às mergulhadoras que caçam segundo uma tradição milenar, nas ilhas de Okinawa e na península de Ise (Japão). Este trabalho é só exercido por mulheres. O único homem que pode estar no barco é o comandante, que as leva para alto mar.
No século XVII, a profissão ficou sob protecção imperial, pelo seu potencial económico. Primordialmente, caçavam ostras pelas suas pérolas. Hoje em dia, as ostras são produzidas em aquicultura e as Ama vivem sobretudo da pesca dos abalones, búzios, ouriços e algas.

A primeira vez que encontrei as Ama foi numa série fotográfica de Yoshiyuki Iwase, um fotógrafo japonês, tiradas nos anos 50.  Encontrei depois fotografias do italiano Fosco Maraini, também da mesma época. Fiquei estupefacta. As mulheres surgiam nuas, com um pano a proteger-lhes o sexo e um outro na cabeça, carimbado com os símbolos de templos para as proteger. Pareciam imagens saídas de um livro de contos de fadas.



Yoshiyuki Iwase (~1950s)



Fosco Maraini (~1950s)




Anos mais tarde, volto a deparar-me com as Ama. Desta vez na programação do DocLisboa.
Nos dias 22 e 24 de Outubro o documentário Ama-San, de Cláudia Varejão, passaria, respectivamente, no Cinema São Jorge e na Culturgest. As duas sessões esgotaram imediatamente.
Num duplo golpe de sorte, consegui o último bilhete para dia 24 e a realizadora esteve presente na sessão, pelo que foi possível uma conversa entre ela e o público depois do visionamento.

A primeira pergunta que lhe fiz foi: Como soube da existência das Ama?
Soube-o através de um livro de poesia japonês, que fazia referência a estas históricas mergulhadoras. Depois de alguma pesquisa, a cineasta descobriu que não havia nenhum documentário feito sobre elas. “Não há? Então faço-o eu.”, rematou.

Ama-San debruça-se sobre o quotidiano, em mar e em terra, de três Ama em particular, que representam três gerações de mergulhadoras: Masumi Shibahara, Mayumi Mitsuhashi e Matsumi Koiso. 

Numa conversa posterior com a realizadora, foi possível obter alguma informação sobre as três ‘personagens’.
Masumi Shibahara é a mais nova das três. Tinha 38 anos na altura das filmagens e terá agora 40. Tem três filhos e é a que tem uma vida mais estável financeiramente, graças ao rendimento do seu marido.
Mayumi Misuhashi é a do meio. Viúva. Tem dois filhos e uma série de netos.
Por último, Matsumi Koiso, a mais velha. Viúva e com uma vasta família. É a única das três que vive fora de Wagu, a vila onde foi filmado o documentário.
                                                                                                              
Ao contrário do que acontece normalmente, estas mulheres não vão perdendo os 'encantos' à medida que envelhecem. Quanto mais velhas, mais experientes são, maior capacidade pulmonar e destreza têm. A idade é, de certa maneira, valorizada neste emprego. 

Fotograma de Ama-San/Ama-San film still
[Masumi, Mayumi e Matsumi fazem uma oferenda aos deuses e abençoam o barco, para uma boa apanha]


O trabalho de casting dá uma nova dimensão subtil à longa-metragem, “como se fosse uma obra de ficção com grandes actrizes, exímias na arte com que transmitem a melancolia de todos os dias”. Apesar da direcção pontual da realizadora, é a brutalidade da sua naturalidade que sobressalta, elas são mulheres de carne e osso com vidas simples.
Vidas simples…? Pode dizer-se que sim. Mesmo sendo um trabalho perigoso e por vezes incompreendido, não há uma divinização do mesmo. As próprias mergulhadoras não se vêem como pessoas fora do normal e isso transparece no filme. Elas têm consciência que são muito respeitadas na sua vila, mas para elas é um trabalho igual aos outros.

Curiosamente, o documentário é passado maioritariamente em terra e creio que isso contribui para a desmistificação destas mulheres: O que são as mergulhadoras fora de água?
Vemo-las nas suas cozinhas, com os filhos e com os netos; no cabeleireiro a partilhar bisbilhotices; a ir buscar os filhos à escola ou a ver os seus ensaios para recitais; a cantar karaoke juntas para treinar os pulmões; a acompanharem-se no almoço todos os dias de trabalho.

É um relato sobre a banalidade, maravilhoso e tocante.

Apesar de Cláudia ter tido um tradutor japonês, nem sempre era preciso um diálogo directo entre a realizadora e as ‘agentes’ da história. Ela crê mesmo que, pelo facto de não falar a sua língua, elas se sentiam mais à vontade com sua presença e a da câmara.
Na cena em que Mayumi está com o neto na banheira, Cláudia não fazia ideia do que estavam a falar, mas sentiu a necessidade de filmar. Mais tarde, descobriu o porquê dessa urgência. Acabou por captar um dos diálogos mais marcantes do documentário, onde a experiente avó fala com o curioso neto sobre natação e mergulho.

Fotograma de Ama-San/Ama-San film still
[Mayumi e o seu neto falam, enquanto a mesma lhe dá banho]


A linguagem visual é muito importante. Não há grandes movimentos da câmara, não há floreados. É bastante simples e limpo. Duma forma sonante com a cultura japonesa, as próprias imagens falam por elas próprias e não é preciso dar-lhes mais “força” porque elas próprias já contêm a força da natureza e do dia-a-dia. Less is more.


Durante os mergulhos, as Ama de hoje ainda usam o pano branco carimbado na cabeça, por tradição. Crê-se, também, que o branco espanta tubarões. O pano que protegia o sexo foi substituído por um fato térmico, obrigatório.

Os mergulhos são feitos de Março a Setembro e costumam durar quatro horas por dia: duas de manhã e duas à hora de almoço. Entre esses dois momentos, juntam-se no Amagoya (casa pequena improvisada). Com a lareira acesa e os cabelos enrolados em toalhas, as colegas falam, enquanto comem e recuperam o fôlego, sobre o que fizeram na sua folga, sobre os filhos e netos, sobre os seus novos cortes de cabelo... É muito tocante a relação entre elas.

Fotograma Ama-San/Ama-San film still
[Masumi descansa entre mergulhos]



Estão muito atentas umas às outras e nunca mergulham sozinhas. Antes de entrar em água, assobiam para encher os pulmões e lá vão elas. Não é raro que uma mergulhadora morra durante uma caçada, normalmente presa nas compridas algas. Daí a importância de nunca irem sozinhas. Elas olham umas pelas outras.

O filme inicia-se pelo seguinte relato, de Matsumi: "Há todo um mundo maravilhoso por entre as rochas. Mas é preciso coragem para o conhecer. Sem monstros não haveria aventura. As mulheres dizem que o trabalho de ama é o inferno. Muitas vezes pergunto-me por que escolhi um trabalho tão duro. Já aconteceu tanta coisa. Ao olhar para trás, vêm-me as lágrimas aos olhos. Em japonês a isto chama-se harabanjo. São os mares agitados que sobem e descem, e que podem levar-nos a todos. Todos os dias são difíceis, mas todos os dias aprendo".

As cenas de baixo de água são de cortar a respiração. Diria que não chegam a ocupar 20 minutos do filme, mas cada segundo arrasa com o espectador.
Estamos no barco com elas, a fazer a viagem até ao alto mar e, depois de elas mergulharem, entramos num novo mundo. Aí, elas já não são Masumi, Mayumi e Matsumi - elas são Amas, as mergulhadoras milenares. 
Com uma fotografia maravilhosa, as longas algas quase as engolem enquanto elas procuram abalones e búzios. A sala é invadida pelo silêncio e pelo azul que rompe o ecrã e deixa toda a gente calada, intimidada com a verdadeira essência e coragem destas mulheres.

Fotograma de Ama-San/Ama-San film still
 [Masumi apanha um polvo]

Creio que existem apenas duas cenas de baixo de água, ao longo dos 112 minutos.

Quando vi o documentário, numa primeira instância, pensei que seria interessante ter mais cenas dentro do mar. Depois compreendi que não era necessário, que desta forma ganhavam um peso maior. Na verdade, o que nós precisamos de ver não são as míticas sereias, mas sim as verdadeiras mulheres que as encarnam.

Vendo o documentário, não podemos deixar de nos perguntar determinadas coisas, principalmente se não conhecemos previamente o assunto.

Porquê que são mulheres a fazer este trabalho tão duro?
Uma das explicações é a maior tolerância ao frio, graças a uma maior camada de gordura. Por outro lado, num país muito patriarcal, os trabalhos mais pesados costumam ser deixados para as mulheres.
Porquê que mergulham sem garrafas de ar comprimido?
Porque dão continuidade a uma tradição milenar, a um mergulho artesanal. Mesmo sendo um país tão avançado e tecnológico, no Japão há a consciência de que aquilo que é feito artesanalmente tem melhores resultados.

Infelizmente, o número de mergulhadoras tem diminuído. Em 1972, havia mais de quatro mil Ama. Recentemente, os números contam-se abaixo dos oitocentos. A média de idades de mergulhadoras actuais situa-se entre os 50 e os 85 anos. [Mais dados sobre isso nesta reportagem, em inglês.]


Este documentário marcou-me muito. No final, ao votar, queria que escrever no papel ’20 valores’, apesar da escala ir de 0 até 4.

Em primeiro lugar, foi maravilhoso ver as Ama ganhar vida; uma realidade que eu guardei no meu imaginário e à qual regresso vezes e vezes, num misto de curiosidade, admiração e respeito.
Em segundo lugar, tem um valor estético enorme. Não sendo uma expert, não encontro falhas técnicas crassas ou escolhas menos acertadas quanto à linguagem visual ou sonora. A escolha da música, da linguagem e do silêncio foi muito bem feita. Para mim, os momentos de silêncio jogam sempre um papel muito importante e neste trabalho têm um valor ainda mais precioso, como o silêncio subaquático, a título de exemplo.
Em terceiro, vem pôr em causa a ideia generalizada de submissão da mulher japonesa, tantas vezes representada pelas Gueishas.
Por último, traz uma nova luz sobre as Ama, que muitas pessoas desconhecem. Seja para quem nunca ouviu falar delas, seja para quem já conhecia a sua existência quimérica e quase irreal, desenha um retrato muito íntimo sobre as mergulhadoras que também são como nós: mulheres do quotidiano, mulheres mães, mulheres avós, mulheres de existência material e carnal.

Como a realizadora disse, no dia 24, no Pequeno Auditório da Culturgest, este documentário é sobre o tempo: o tempo de chegar a alto mar; o tempo durante o qual sustêm a respiração, enquanto caçam; o tempo entre mergulhos; o tempo partilhado em família; o tempo das preces e rezas; o tempo que levou a fazer o documentário; o tempo que leva vê-lo. É um retrato em movimento sobre o tempo, com todas as suas nuances e subtis dimensões.

Recomendo este filme a quem quiser ser surpreendido por uma realidade tão diferente e, também por isso, tão rica.


Depois da sua passagem pelo DocLisboa, onde ganhou o Prémio Íngreme/Melhor Filme na Competição Portuguesa, a realizadora discute a possibilidade de Ama-San passar em algumas salas de cinema em Lisboa. Em princípio, no final deste ano ou início do próximo.





Que continuem a existir as Ama. Que a tradição não se extinga.

Maria F. de Abreu-Afonso

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