domingo, 26 de outubro de 2025

Obsolescência programada: uma análise do consumo no século XXI

Num mundo marcado por incertezas crescentes e colapsos sociais, económicos e ambientais iminentes, a cultura do consumo acelerado, impulsionada por tendências efémeras e pela obsolescência programada, alimenta um ciclo contínuo de compra e descarte. Este processo mascara necessidades reais com desejos efémeros perpetuando-se um problema estrutural que não parece ter solução.

A paisagem cultural, as cidades, as estradas, as ruas, os meios de comunicação, estão repletos e saturados de mensagens publicitárias que incitam ao consumo. Um consumo obstinado, compulsivo e eticamente questionável, que prejudica o planeta enquanto enriquece as grandes corporações. De acordo com os dados do Banco Mundial, cerca de 20% da população consome 80% dos recursos disponíveis, concentrando a riqueza nas mãos de aproximadamente 300 a 400 famílias. Três das mesmas detêm, sozinhas, o equivalente ao PIB anual de 48 países africanos, com cerca 600 milhões de pessoas. Curiosamente, satisfazer os requisitos básicos de acesso a água potável e a saneamento por todos os países, custaria cerca de 13 biliões de euros, sensivelmente o mesmo valor que é gasto, todos os anos, em perfume na Europa e nos Estados Unidos.

Eventos como a Black Friday, criada nos Estados Unidos após o Dia de Ação de Graças e rapidamente globalizada, marcam tradicionalmente o início da época natalícia e representam o auge do consumo contemporâneo. As campanhas promocionais associadas ao evento, provocam emoções e a ilusão de uma “compra inteligente”, estimulando o consumo impulsivo. Sob o disfarce de uma narrativa de oportunidade e poupança, as empresas aumentam os lucros e renovam o mercado, evitando o desperdício dos produtos não vendidos durante a estação e garantindo a continuidade do ciclo de produção.

Em contrapartida, e como resposta crítica a esta lógica consumista, surge em 1992, no Canadá, o “No Buy Day”, um dia de abstinência à compra por 24 horas, com o propósito de gerar uma reflexão coletiva capaz de questionar os modelos de pensamento desumanos, chamando a atenção aos efeitos que estes hábitos podem ter a nível global, nomeadamente em países de terceiro mundo, onde é frequentemente enviado lixo eletrónico sob o pretexto de reutilização de equipamentos avariados ou em fim de vida.



Manifestação em São Francisco, Novembro de 2000


De acordo com um relatório da ONU, em 2022, foi produzido 62 milhões de toneladas de lixo eletrónico, grande porcentagem dos quais é depositada ilegalmente em países como Gana, retratada muitas vezes como a “Lixeira do Mundo”. Embora o envio de lixo eletrónico para países em desenvolvimento esteja proibido pela União Europeia, esta prática ilegal continua a ser recorrente, uma vez que muitas empresas encontram formas de contornar a legislação. Se a tendência da reparação e reutilização dos equipamentos nos países desenvolvidos não for efetivamente consciencializada, estima-se que o lixo eletrónico produzido globalmente possa atingir os 82 milhões de toneladas em 2030.


Lixeira de Agbogbloshie


Seria a solução, se a obsolescência programada deixasse, de facto, de existir? Como seria um mundo em que os produtos não tivessem prazo de validade? Embora tal cenário possa parecer utópico, as suas consequências seriam significativas para o próprio ser humano e para a estrutura social que o sustenta, isto é, o emprego. O filme “The Man in the White Suit” de 1951, é uma comédia britânica, que ilustra simbolicamente essa tensão. A narrativa companha um cientista que criou um tecido revolucionário, indestrutível e resistente a nódoas, fabricando assim a peça “perfeita”. A sua descoberta, em vez de celebrada, desencadeia hostilidade tanto dos donos das fábricas como dos operários, que temem a perda dos seus empregos. O filme é então um choque entre o progresso e interesses estabelecidos, implicando que o que o fim da obsolescência programada poderia gerar desemprego e instabilidade social.





Num tempo em que o consumo se tornou sinónimo de identidade e pertença, pensar alternativas éticas e sustentáveis implica repensar não apenas o que compramos, mas sobretudo por que e para quem compramos. A transição para um modelo de vida mais consciente requer uma mudança profunda de mentalidades, que ultrapassa a dimensão económica e se enraíza no campo cultural, social e moral. O No Buy Day torna-se, assim, mais do que um simples gesto simbólico: representa um convite à introspeção coletiva e à construção de um novo paradigma, em que o valor das coisas não reside na sua posse, mas na sua permanência, utilidade e impacto humano.