domingo, 26 de outubro de 2025

ENTRE A VIOLÊNCIA OCULTA E A VISCERALIDADE VISUAL

Recentemente chegou ao fim a exposição “Paula Rego e Adriana Varejão: Entre os vossos dentes” no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.

Paula Rego nasceu em Lisboa em 1935 e Adriana Varejão, no Rio de Janeiro em 1964. Rego saiu de Portugal em direção à Inglaterra aos 17 anos, incentivada pelo pai a seguir com a formação artística na Slade School of Fine Art, em Londres. Varejão passou boa parte da infância em Brasília, mas retornou ao Rio de Janeiro nos anos 1980, onde estudou em cursos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Até fixar residência em Londres em 1976, Rego e sua família viveram entre Portugal e o Reino Unido. Varejão atualmente reside no Rio de Janeiro, mas já passou temporadas em diversos lugares do Brasil e do mundo: de Maceió a China.

Artistas que parecem distantes, de gerações e continentes distintos, se cruzam e dialogam harmoniosamente a partir de visualidades viscerais e críticas profundas, como a mostra do CAM revela. A obra de Varejão, a qual eu já conhecia e tinha visto de perto outras vezes, com referências à carne, ao sangue e ao contraste entre ambientes assépticos e elementos carnais, invoca, a partir de sua constituição visual e física, sentimentos fortes, que perpassam a náusea, a repulsa, o medo e o fascínio. O trabalho de Rego, que eu não conhecia antes de visitar essa exposição, aprofunda as discussões trazidas por Varejão através de obras multifacetadas e sensíveis, abordando, por exemplo, a condição feminina frente à complexidade da violência de gênero. 

Na sala “Rituais de Limpeza”, uma série de gravuras de Rego que representam mulheres em situação de consumação do abordo são colocadas ao lado de obras de Varejão que retratam espaços estéreis com vestígios de sangue, fios de cabelos e fluídos corporais. Rego oferece uma plataforma a mulheres que são invisibilizadas em um procedimento doloroso que é feito às escondidas e é criminalizado pelo Estado. Varejão mostra um espaço paradoxo, onde a higiene absoluta encontra vestígios de uma atrocidade. Enquanto Rego é direta e literal em sua crítica, Varejão constrói uma ambientação sinistra e misteriosa que, quando se junta às obras de Rego, ganha uma nova dimensão e revela uma violência oculta que não é dita, mas é sentida profundamente.

  

Essas obras me remeteram imediatamente ao filme “A Substância” de 2024, da diretora francesa Coraline Fargeat, em que uma celebridade estadunidense, interpretada pela atriz Demi Moore, ao ser demitida devido a idade, decide tomar uma droga clandestina que promete criar temporariamente uma versão mais nova e aprimorada de si mesma. No filme, um banheiro de azulejos brancos, muito semelhante ao pintado por Varejão, é o cenário onde ocorrem as cenas mais brutais e difíceis de assistir: a protagonista sofre ferimentos terríveis e enfrenta dores inimagináveis para satisfazer as expectativas de uma sociedade machista e etarista. No filme, assim como nas obras expostas no CAM, a violência de gênero é traduzida em uma visualidade visceral, que incomoda o espectador e incita reações intensas. 

Nesse sentido, o que essas artistas revelam é que a experiência da violência de gênero atravessa gerações e oceanos. Ao abordar aspectos sombrios dessa dura realidade, tanto Paula Rego e Adriana Varejão, quanto Caroline Fargeat nos ensinam que a cultura visual, utilizada de maneira consciente e intencional, pode ser um instrumento valioso e potente para a produção de uma arte crítica. O uso do sangue, da carne, do terror, do sofrimento de mulheres contorcidas constrói uma dimensão visual impactante que busca refletir uma sociedade cruel, que criminaliza o aborto, nega às mulheres o direito ao próprio corpo e julga-as por causa de sua aparência, idade, comportamento e decisões de vida. Na luta contra essas violências, a arte de Rego, Varejão e Fargeat é uma arma poderosa, capaz de transformar a visualidade em crítica e a imagem da dor em resistência.