segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Gatafunhos, Garatujas e outros Rabiscos


A experiência de dar aulas de ilustração a alunos que, na sua maioria, têm uma aprendizagem muito reduzida na técnica do desenho faz-me frequentemente chocar com o facto de todos nós carregarmos preconceitos e expectativas acerca do que deve ser a “boa” arte ou o “bom” desenho (ou, às vezes, tão somente daquilo que deve contar como arte) que tendem a funcionar como elementos inibidores e paralisantes da criação e da criatividade.


Forçar estes alunos a desenharem apesar dos seus entraves, apesar dos seus critérios de perfeição, é quase sempre uma experiência inicialmente frustrante ou mesmo dolorosa. Mas quando o processo corre bem é quase sempre porque se deu uma reconciliação com o que o aluno via como um defeito, uma insuficiência. Como se a dado momento o desenhador se passasse a identificar com as suas imperfeições naturais e passasse a ver nas suas idiossincrasias e nos seus trejeitos naturais uma forma de expressão pela qual se pode responsabilizar e passar a cultivar. Neste processo eu acho que encontramos um acto figurativo de dar à luz, de fazer um objecto passar de um mundo a outro, passar de um mundo de objectos acidentais para o mundo dos objectos intencionalmente artísticos.


À maneira de método maiêutico do Sócrates de Platão, o papel do professor de desenho também tem qualquer coisa de parteira, ajudar o aluno a reconhecer os seus gestos e os seus traços no papel como sendo unicamente seus, criaturas suas, e transportá-los para o mundo dos objectos da arte.


O mundo está cheio de linhas e traços que foram deixados órfãos, que nunca ninguém perfilhou ou neles reconheceu um acto criativo, e nesse sentido é quase sempre encantador encontrarmos espalhados em cadernos e papéis soltos os rabiscos que a humanidade sempre produz quando está entediado numa sala de aula, a conversar ao telefone ou sentado numa mesa de um café à espera de alguém. São milhões de folhas e folhinhas, post-its e caderninhos, margens de jornal ou talões de supermercado, que acabam órfãos num qualquer caixote do lixo próximo. Mas quantos daqueles gatafunhos não conterão linhas e arranjos originais, modos de traçar, preencher e texturar que nunca ninguém tinha feito antes? Quantas dessas garatujas nas mãos do artista certo não teriam motivado movimentos estéticos e artísticos inteiros? Um mistério de estatística incerta.



Felizmente, alguns desses rabiscos são acidentalmente preservados por motivos insuspeitados e que nada têm que ver com o mundo da arte. É o caso dos rabiscos que se encontram no Arquivo Histórico do Banco de Nápoles e que adornam centenas de páginas de extratos contabilísticos e outros documentos bancários.


Os chamados scarabocchi (a expressão inglesa doodles é já quase universalmente reconhecida para nomear estas marcas no papel) deixados pelos contabilistas e guarda-livros dos séculos XVII e XVIII, encontram-se por todo o lado nestes documentos, entalados entre colunas de números, nas guardas das capas, nas margens das folhas.




Estes rabiscos não nasceram de um impulso artístico no seu sentido convencional, nasceram antes da monotonia e do aborrecimento. Os escriturários e contabilistas dos banco públicos de Nápoles -  funcionários destacados com a função de registar e copiar as mesmas transacções dia após dia - viviam um universo de tédio e de repetição. E, aqui, os desenhos parecem exercer uma função de libertação, de mergulho parcial num qualquer outro mundo que comunica com a nossa rotina trivial sem darmos por isso.



Não é minha pretensão convencer ninguém que leia este modesto texto de que os arquivos escondem grandes e geniais obras de arte. Provavelmente nem uma. O meu objectivo é antes apontar para a ténue membrana que pode separar a intenção de produzir arte do fluir espontâneo e desinteressado da nossa mão. Essa membrana é ténue de facto e, para ser rompida, não precisa de muito mais que um acto voluntário nosso de tomarmos responsabilidade pelo que surgiu acidentalmente e cultivarmos como nossas as descobertas que daí seguem.



(Infelizmente não consegui reunir muitas imagens significativas para ilustrar este texto. O que aqui figura é, na sua maioria, tirado do livro de Giuseppe Zevola, Piaceri de Noia, publicado em Milão em 1991.)