sábado, 1 de junho de 2024

Vida múltipla de 11 artistas gravadores

Exposição 11 Livros para 11 Artistas
Contraprova - Atelier de Gravura
9 de maio a 14 de junho 2024
Biblioteca de Alcântara

A Contraprova é um projeto associativo que agrega artistas cuja prática atravessa a gravura e a impressão artesanal. Um dos propósitos da sua fundação, em 2008, foi proporcionar um espaço de trabalho, totalmente equipado para a prática da gravura, mas também de encontro e de partilha de saberes, promovendo a divulgação e a aprendizagem das técnicas ali tornadas possíveis.

A exposição 11 Livros para 11 Artistas surge de um convite endereçado pela Biblioteca de Alcântara aos artistas da Contraprova, propondo a escolha individual de uma obra literária relacionada, por via da memória ou da imaginação, com a prática da gravura. As estampas aqui apresentadas são instâncias de materialização dessas relações, mas, tal como as estampas, as interpretações são múltiplas.

Vista da galeria da Biblioteca de Alcântara.


Começo por me deter no trabalho da artista Sofia Morais, uma gravura em linóleo com sobreposição de duas matrizes, em que um tronco castanho de mulher parece debruçar-se sobre nós, apoiando os cotovelos no passe-partout, ao mesmo tempo que pássaros se libertam do seu interior. Neste corpo condensam-se opressão e leveza, fazendo eco da dureza e precisão das palavras de Maya Angelou, autora do livro escolhido pela artista gravadora.

Sofia Morais, "O canto dos pássaros"


Susana Romão apresenta, em diálogo com um poema de Adília Lopes, uma gravura colorida cuja expressão lúdica não deixa adivinhar a complexidade do processo de produção. Trata-se de uma água forte em chapa de zinco, com mordedura profunda, a que acrescentou elementos em Tetrapak, posteriormente intervencionada em pequenos detalhes com trabalho de pincel e tintas acrílicas.

Susana Romão, "Mais vale baratas que DDT"


Refiro ainda o trabalho da artista Joanna Latka, que a partir d'O homem duplicado de José Saramago apresenta um tríptico de provas feitas a partir da mesma matriz criada com verniz mole – em que cada uma das imagens idênticas é prolongada pelo desenho, ganhando vida para além dos limites da chapa e ocupando lugares contíguos num universo comum. Apetece percorrer sem pressa as linhas sinuosas do já familiar desenho de Joanna Latka, e ensaiar leituras imaginadas nos arabescos contidos em folhas de papel esvoaçantes. A figura triplicada consome-se no exercício da escrita com a mesma entrega que é necessária à prática da gravura.

Joanna Latka, "Vida dupla de um escritor"


O facto de estas estampas estarem apenas fixadas à parede, sem vidro de entremeio, beneficia a sua visualização, num espaço em que entradas de luz natural, iluminação artificial e revestimentos polidos geram uma profusão de reflexos.

Por ter também uma ligação à impressão artesanal, tenho para mim que a gravura em metal é uma arte pesada. Da preparação e polimento das chapas à gravação mecânica (no caso da técnica de ponta seca), passando pela toxicidade da caixa de resina ou dos vapores dos ácidos corrosivos (no caso da água forte e águas tintas), todo o processo requer um certo amor ao perigo e ao que é difícil. Nada que a acuidade e delicadeza das marcas que aqui aparecem replicadas no papel deixem transparecer.

Vista da galeria da Biblioteca de Alcântara.


Dureza, precisão, complexidade e multiplicidade são conceitos que nos permitem viajar entre o universo das letras e o dos traços e sulcos da gravura, mas que não esgotam a miríade de possibilidades que estas obras fazem presentes. Por isso, e para contemplar o trabalho dos restantes artistas da Contraprova – Alexandre Jorge, Ana Neto, Daniela Crespi, Luís Fernandes, Marcela Manso, Margot Kick, Marija Tošković e Ricardo Campos – nada melhor que fazer uma visita à galeria da Biblioteca de Alcântara até dia 14 de junho.

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