(M2) Lançamento de disco com concerto e a coincidência da ilustração
Júlio Resende: “Filhos da revolução”
Maria Hesse: “Mulheres más”
FNAC Chiado, Lisboa
18 Abril 2024
Desta vez, ao sair da Faculdade, bastou-me descer o Chiado, e à hora certa, lá estava ele, no grande aglomerado comercial,
pronto a apresentar o seu mais recente trabalho.
Os Armazéns do Chiado arderam em direto na minha infância.
Voltar ali é sempre arrepiante. Recordo bem as imagens das labaredas a preto e
branco e as estruturas dos edifícios a serem esventradas por elas. Foi talvez a
maior catástrofe a que assisti antes da queda das Torres gémeas.
Estávamos em 1988 e lá em casa, apesar de há 8 anos já haver
emissão totalmente a cores na televisão, o nosso aparelho não acompanhava a enorme
evolução.
14 anos antes dera-se a revolução que pôs fim à ditadura em
Portugal e é com base nela que nasce o disco que hoje vi apresentar.
Chama-se “Filhos da Revolução” e é lançado no mês de abril, 50
anos depois do dia mais importante. Trata-se de um encontro entre o fado e o
jazz, onde se homenageia a liberdade repescando canções como “a rosinha dos
limões” ou “traz outro amigo também”, e sobre elas se acrescenta uma marca
contemporânea e um improviso já característico da linguagem do artista Júlio
Resende.
Desde 2007 que nos presenteia com discos originais, na sua maioria jazz, mas com apontamentos irreverentes de transformação do tradicional Fado. Este tópico deu até forma a um disco inteiramente dedicado a Amália Rodrigues, em que a sua apropriação das raízes musicais do fado e a sua criação transformadora, trazem esse género musical para a contemporaneidade com enorme genialidade, tendo conseguido o feito histórico de introduzir a voz da cantora pela primeira vez após a sua morte, quer no disco, quer no concerto ao vivo, a que tive o privilégio de assistir na Culturgest. A entrada da voz de Amália no decurso da viagem oferecida pela melodia exclusiva do piano é um momento que nos atravessa com tal intensidade que foi impossível deter as lágrimas da emoção.
Nesta apresentação de “Filhos da Revolução”, voltei a sentir
esse atravessamento emocionante, desta vez quando o guitarrista Bruno Chaveiro é
chamado a palco. Aí, a ocasião ganhou escala e profundidade. Nunca havia assistido
a uma tão rica demonstração de domínio de técnica aliada a uma criação
inovadora através da guitarra portuguesa. Arrisco afirmar que é muito
equiparável ao magnífico Carlos Paredes.
Domínio, destreza, velocidade, sonoridade, composição, melodia, intensidade….e
com isto, a fusão entre mãos de piano e de guitarra. Uma atuação que me trespassou
o coração e a alma.
Sigo o Júlio Resende há vários anos. Acompanho as suas
atuações “alternativas” na Fábrica Braço de Prata há mais de 10 anos. Com
ele, nesses momentos intimistas de pura entrega dos músicos em ambiente descontraído
e despretensioso, tenho conhecido muitos outros músicos de enorme calibre que
ele traz a palco com enorme generosidade e humildade.
O mesmo senti nesta apresentação quando Bruno Chaveiro começa a tocar. Não o conhecia. Mais um convidado que o Júlio traz a cena e que promete deixar marca forte nos nossos ouvidos. O Júlio tem um talento imenso, tendo construído a sua linguagem de forma distinta. O que mais saliento é o poder (e trabalho afincado com certeza) da improvisação, captação e transformação, com que nos surpreende em cada obra.
Volto o olhar para o espaço e reparo que esta experiência, como coincidência, ou não (desconheço as motivações da equipa FNAC), foi enriquecida com mais um par de mãos incríveis. Nas paredes da sala iluminavam o espetáculo as ilustrações de Maria Hesse. Só mulheres. “Mulheres más”, uma sátira ao poder do patriarcado. A escritora e ilustradora estava também a promover o seu mais recente trabalho no espaço de espetáculos da loja Fnac do Chiado para o efeito por via de uma exposição de reproduções das suas obras. Várias, cada uma com a sua forte identidade, espaçadas de palmo em palmo, como que a abraçarem a sala e a acolherem o momento. Encontro feliz este.
O Júlio, o Bruno e a Maria, com o piano, a guitarra e os desenhos, trouxeram uma luz especial a esta sala de espetáculos que foi outrora o Grande Armazém da minha infância.
Os espaços metamorfoseiam-se e quando
há lugar e liberdade para isso, a cultura faz a magia de os voltarmos a viver
(agora) de outra forma, com chamas de outra cor.
Tocam-me as memórias dos sítios. E também me tocam as mãos destes
artistas.
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